A “matriz” deixada por Balsemão, um “bom patrão dos media”

Carla Borges Ferreira,

O Expresso e a SIC foram os dois grandes projetos de Balsemão que, até mais do que marcas de media, foi decisivo para a construção da liberdade de informar e ser informado.

“Nos últimos anos, Pinto Balsemão, quando lhe perguntavam o que fazia, dizia a rir-se: ‘Agora apresento-me como podcaster’”. A revelação foi feita por Ricardo Costa, na emissão especial que se seguiu à notícia da morte de Francisco Pinto Balsemão, esta terça-feira, aos 88 anos. Pode parecer um pormenor, uma brincadeira, mas é significativo. Se atendermos à forma como se consome media, o podcast é dos formatos que mais está a crescer, em Portugal e um pouco por todo o mundo, e o seu potencial, em termos de alcance e de monetização, está ainda em curva ascendente e, tanto quanto se pode antecipar, longe do pico.

Ora, há dois anos, davam os grupos de media os primeiros passos neste formato de áudio, Francisco Pinto Balsemão lança um dos primeiros podcasts do Expresso, “Deixar o Mundo Melhor”. Aproveitando os 50 anos do semanário, Balsemão, então com 85 anos, entrevistou 50 personalidades dos mais diversos setores da sociedade.

Seguiu-se em 2024 o podcast “IA – A próxima vaga”, uma série de debates sobre o impacto atual e futuro da Inteligência Artificial, e em 2025 o seu terceiro podcast, com a leitura do livro “Memórias”, editado em 2021, o primeiro livro em Portugal com voz clonada por inteligência artificial. “Utilizei o que se poderá chamar a minha inteligência natural para escrever as mais de 1.000 páginas das minhas memórias. Achei que, para as ler para este novo podcast, já podia e devia contar com uma ajuda da inteligência artificial”, afirmava na altura sobre este novo projeto.

Aos 85 anos, o “patrão dos media” foi então para o estúdio e agarrou o que era ainda um formato inovador, até no universo do grupo. Cinquenta anos antes, então com 35 anos, tinha lançado o Expresso e em 1992, aos 55 anos, o primeiro canal de televisão privado em Portugal, a SIC.

“Na origem da conceção e do arranque do Expresso estava a minha vontade de provar a mim próprio, à família e ao mundo que era capaz de lançar e fazer triunfar um projeto inovador na área de Imprensa”, recorda Balsemão no seu livro Memórias. À família porque queria “sair das suas asas protetoras”. Queria também, conta no livro, demonstrar ao “tio Xico” que era capaz de singrar por si próprio, que as suas opções políticas, que no caso nos media se traduziam na proposta de Lei de Imprensa, que apresentara, estavam certas e que “era viável lançar um novo título sem ter de se esperar pela benção do Governo”.

“É raro um Governo de direita ser derrubado pelas suas próprias Forças Armadas. Em 25 de Abril de 1974 isso sucedeu em Portugal. Nas ruas, nos cafés, nos transportes coletivos, o ambiente é de alegria. O semblante normalmente triste dos portugueses resplandece com as perspetivas de «libertação do País do regime que há longo tempo o domina». O Programa do Movimento das Forças Armadas Portuguesas parece, na verdade, satisfazer todas ou quase todas as aspirações de um povo que durante largos anos viveu «em crescente desenvolvimento de uma tutela de que resulta constante apelo a deveres com paralela denegação de direitos»”.

As palavras são do então diretor do Expresso, Francisco Pinto Balsemão, no editorial de 27 de abril de 1974, um sábado, dia em que o título lançado no ano anterior chegou às ruas. “Naquela quinta-feira, as coisas ainda não estavam claras sobre quem mandava e com que objetivos. Decidi, por isso, contra a vontade de alguns dos meus companheiros do Expresso, não avançar com uma edição especial na sexta-feira e decidi que o jornal sairia, normalmente, no sábado“, recorda o sempre jornalista no livro.

Foi no número 69 do Expresso, jornal que custava então cinco escudos, o equivalente a dois cêntimos, em euros. Foi também a primeira edição sem censura. Nas 68 anteriores, submetidas ao lápis azul, o semanário leva mais de quatro mil cortes, em quase dois mil textos, conta o jornalista José Pedro Castanheira, em janeiro de 2013, num texto que assina os 40 anos do título da Impresa.

Francisco Pinto Balsemão, Marcelo Rebelo de Sousa, Augusto de Carvalho, José António Saraiva, Henrique Monteiro, Ricardo Costa, Pedro Santos Guerreiro e, desde 2019, João Vieira Pereira foram os oito diretores do semanário que nasceu com a assinatura “Expresso, o jornal dos que sabem ler” e que 50 anos depois, para assinalar o 25 de Abril, adota como claim “Liberdade para pensar”.

A 28 de outubro de 2006, o jornal atinge o seu recorde absoluto de circulação, ao vender 202.108 exemplares em banca, no final de uma oferta de DVD aos leitores. Dezanove anos depois, o contexto é diferente e os desafios dos media também, mas o Expresso continua a ser, na soma das vendas do papel com as digitais, o jornal com maior circulação paga do país: 83 mil, de acordo com dados da Associação Portuguesa para o Controle da Tiragem e Circulação, no segundo trimestre de 2025.

“Não há muitos jornais que tenham nascido antes da revolução e continuado com boa vida”, comentava Gustavo Cardoso, diretor do OberCom, quando se comemoravam os 50 anos do 25 de abril. “O Expresso cresceu bem em termos de idade e soube aproveitar a passagem do papel para o digital, tornando-se também transmedia”, apontava o diretor do Observatório da Comunicação, referindo-se à aposta nos podcast ou à presença em formatos de televisão com o nome associado.

Foi um jornal atual em 1973 e é hoje um jornal no qual todos os políticos gostam de aparecer, um jornal de referência na sociedade portuguesa“, prosseguia em conversa com o +M, salientando a sua “capacidade de continuar a existir – olhando para os dados, não está em vias de extinção – e de ter sobrevivido às mudanças de tempos”.

O sucesso do Expresso deve-se precisamente à democracia. É preciso o projeto casar com o tempo, e surge com o ‘ar do tempo’, que é o ar de mudança. E soube adaptar-se a essa mudança

Gustavo Cardoso

Coordenador da participação portuguesa no Observatório Ibérico de Média Digital

“O sucesso do Expresso deve-se precisamente à democracia. É preciso o projeto casar com o tempo, e surge com o ‘ar do tempo’, que é o ar de mudança. E soube adaptar-se a essa mudança”, concluía Gustavo Cardoso, a propósito de “um jornal do seu tempo, mas que conseguiu ganhar alguma intemporalidade“.

O segundo grande pilar do grupo que “nasceu com o Expresso, cresceu com a SIC e é hoje um universo”, como se lê no site do grupo, deu-se a 6 de outubro de 1992, com o lançamento da SIC, o primeiro canal privado em Portugal. “A seguir a três anos e meio de interregno, dediquei-me com crescente intensidade, e procurando antecipar a evolução do calendário político, à criação da primeira televisão privada em Portugal. A esse objetivo aloquei, sobretudo a partir de 1989, parte substancial do meu tempo, do meu empenho e do meu dinheiro”, recorda Balsemão no livro.

Com uma equipa de luxo e uma estratégia editorial e comercial aguerrida, o canal tornou-se líder de audiências três anos depois, em 1995. As novelas da Globo, que como recordou esta semana Luís Marques, que esteve no início da SIC e durante vários anos foi administrador do grupo, desempenharam na altura um papel decisivo. A liderança prolongou-se até 2004, foi retomada em 2019, perdida em 2024 e recuperada em alguns meses este ano.

A 8 de janeiro de 2001, outro marco na história do jornalismo em Portugal, o nascimento da SIC Notícias, o primeiro canal de notícias 24 horas em direto e em português. Contrariando quem dizia não haver espaço para um canal desta tipologia, o canal de informação tornou-se também quase de imediato líder no cabo e assim se manteve entre os projetos de informação, até ser destronado pela CNN Portugal.

Nuno Santos, o primeiro diretor da SIC Notícias, aponta o Expresso como o projeto mais importante do grupo, com um peso um pouco maior do que a SIC. “Foi a primeira peça, a peça nuclear, desde logo por razões históricas e pela importância que teve na transição da ditadura para a democracia”.

“O Dr. Balsemão era uma pessoa da imprensa, o que não o impediu, e até estimulou, a ser uma pessoa com visão transversal e integrada dos media”, recorda o hoje diretor da CNN Portugal, dando como exemplo até os podcast que fez e que “são um sinal da sua modernidade e capacidade de acompanhamento dos tempos, das tendências e mudanças”.

Nunca envelheceu, manteve sempre a cabeça muito aberta, estimulante e curiosa”, caracteriza o também ex diretor de programas da SIC, apontando este como o seu traço mais estimulante e extraordinário, “num homem multidisciplinar”.

Francisco Pinto Balsemão “ajudou a erguer o edifício e bateu-se sempre por ele. Hoje nos media trabalha-se com inteira liberdade editorial”,

Nuno Samtos

Diretor da CNN Portugal e diretor de informação da TVI

Gostava muito da vida e viveu uma boa vida. Podia ter optado por uma vida com menos arrojo, ousadia ou risco e de alguma forma pagou o preço”, refere também Nuno Santos, constatando que “o grupo empresarial que criou e idealizou não se ajustou no tempo”.

“Talvez tivesse a obrigação de ter percebido que se é mais forte quando se caminha ao lado de alguém”, concretiza o jornalista, enquadrando, no entanto, que a “esse tempo em que podia, eventualmente, ter comandado um processo de abertura ao grupo coincide com o tempo de uma ameaça dura de assalto ao poder por parte da Ongoing”, pelo que cerrar fileiras foi “muito louvável”.

“Quando colocamos as coisas no prato da balança, tudo o resto pesa incomensuravelmente mais”, reforça Nuno Santos.

A situação da Impresa é sobejamente conhecida, a passagem do controlo do grupo é vista como uma quase inevitabilidade e a história não se fez só de sucessos, como provam o extinto jornal A Capital ou os títulos que passaram em 2018 para as mãos de Luís Delgado e deram origem à Trust in News, encerrada no último mês.

Mas o legado que Francisco Pinto Balsemão deixa é ímpar e fica para a história dos media e da democracia. Tanto o Expresso como a SIC “foram absolutamente decisivos, foram pioneiros e depois tornaram-se referência”, classifica Nuno Artur Silva, ex-secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media e ex administrador da RTP, que durante vários anos conduziu o “Eixo do Mal”, na SIC Notícias.

É assim também que descreve Balsemão: um pioneiro que se tornou referência nos vários tabuleiros que jogou, “um patrão que respeitou o jornalismo”.

Nuno Artur Silva destaca, no Expresso e na SIC, duas pessoas, também elas decisivas. Vicente Jorge Silva [que saiu para lançar o Público] e Emídio Rangel. “Foram estas duas pessoas que acabaram por dar o rasgo e o conteúdo decisivo a cada um dos projetos”, aponta Nuno Artur Silva, destacando a força e importância da revista do Expresso e a “capacidade de liderança e visão” de Rangel. “Ter sabido reunir estas pessoas e criar as condições de trabalho” é mérito de Francisco Pinto Balsemão.

“Começou por ser jornalista, depois empresário, mas nunca deixou de perceber a importância fulcral do jornalismo. Mesmo quando percebeu que o entretenimento é que pagava a informação”

Nuno Artur Silva

Ex secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media

Sobre o legado deixado, Nuno Santos salienta que, até mais importante do que as marcas, foi uma matriz que ajudou a construir. “Pela herança do Estado Novo e também pelos solavancos do processo revolucionário, não tínhamos tradição de liberdade de imprensa e de expressão”.

Ora, Balsemão “ajudou a erguer o edifício e bateu-se sempre por ele. Hoje nos media trabalha-se com inteira liberdade editorial”, enfatiza o também diretor de informação da TVI. “Uma boa parte dessa liberdade deve-se a ele”, reforça.

“Começou por ser jornalista, depois empresário, mas nunca deixou de perceber a importância fulcral do jornalismo. Mesmo quando percebeu que o entretenimento é que pagava a informação”, acrescenta também Nuno Artur Silva.

Recordando que o Público foi feito por pessoas que saíram do Expresso – “são os últimos dois jornais portugueses de um tempo que mudou” – e que Balsemão percebeu que “televisão é sobretudo entretenimento e com este se pagariam os projetos de TV”, Nuno Artur Silva realça que Francisco Pinto Balsemão desaparece “numa altura em que estamos todos a tentar perceber como o jornalismo sobrevive neste mundo de redes sociais”.

“Liberdade”, “mundo”, “exemplo”, “inspiração”, “visão”, “exigência” ou “respeito” são algumas das 88 palavras com as quais os trabalhadores do Expresso prestaram homenagem, esta quinta-feira, ao ‘patrão dos media’.

A este propósito, Nuno Santos cita Ricardo Costa, desde o início do ano administrador da Impresa. “A matéria-prima não acaba. Poucas profissões podem ter esta certeza. Melhor – ou pior, depende da perspetiva –, os choques geopolíticos que vivemos garantem que há mais para contar, analisar e explicar. Nunca brandindo espadas, mas espraiando prosas limpas e enxutas, de estilo claro, como quem amanhou o mais feio dos peixes e pôs no prato do leitor um filete limpo. É uma tarefa difícil, que impede estados de alma, mas com o mais nobre dos objetivos”, escreve no Expresso Ricardo Costa.

O jornalismo nunca foi um negócio, é um serviço público. Mas houve um tempo em que os jornais se pagavam com assinaturas e publicidade”, aponta por seu turno o ex-administrador da RTP.

Agora, “as assinaturas digitais não têm o mesmo grau de rentabilidade e a publicidade migrou para as redes sociais” e, “com o desaparecimento de Balsemão, desaparece também este modelo de financiamento dos jornais”, refere. “O jornalismo e a democracia nunca estiveram tão postos em causa”, acredita Nuno Artur Silva, para quem a grande questão é a forma como a democracia vai financiar os seus jornais. “Era interessante ter o Balsemão a participar nesta discussão”, conclui.

“Do que fiz na vida, colocaria como fio condutor e como objetivo cimeiro, exercido e conseguido de diversas maneiras, consoante as épocas e as responsabilidades, a luta pela liberdade de expressão em geral e, em especial, pelo direito a informar e a ser informado”

Francisco Pinto Balsemão

“Senti-me muitas vezes injustiçado. Todos nós, exceto talvez os santos (e mesmo esses…), gostamos, precisamos, já não digo da gratidão, mas, pelo menos, de reconhecimento das diversas comunidades profissionais, culturais, sociais onde, ao longo da vida, nos inserimos e, com ou sem remuneração monetária, procuramos dar a nossa melhor contribuição para que determinados objetivos sejam alcançados. Por isso, quem escreve umas Memórias (que, insisto, não têm a preocupação científica de uma autobiografia) procura também assinalar o que os outros, que, por natureza, são ingratos, esqueceram ou fingiram esquecer ou mesmo escondem, por inveja, por despeito, por medo que isso prejudique o que pretendem que deles próprios permaneça. As condecorações compensam em parte essa sensação de ingratidão, de que fizemos muito e ninguém o reconhece e, muito menos, agradece”, escreve no capítulo final das suas Memórias Francisco Pinto Balsemão.

Nos últimos dias, o agradecimento foi quase generalizado. “Liberdade”, “mundo”, “exemplo”, “inspiração”, “visão”, “exigência” ou “respeito” são algumas das 88 palavras com as quais os trabalhadores do Expresso prestaram homenagem, esta quinta-feira, ao ‘patrão dos media‘.

É impressionante a quantidade de pessoas que manifesta a mesma opinião, que realça a forma como deu oportunidade a tanta gente, sem interferir, como deu liberdade. Com um ou outro incidente, a opinião da esmagadora maioria é que foi um bom patrão dos media”, resume Nuno Artur Silva.

Do que fiz na vida, colocaria como fio condutor e como objetivo cimeiro, exercido e conseguido de diversas maneiras, consoante as épocas e as responsabilidades, a luta pela liberdade de expressão em geral e, em especial, pelo direito a informar e a ser informado”, é a declaração de Francisco Pinto Balsemão que surge na homepage do ainda maior grupo de comunicação social do país.

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