Novo braço-de-ferro entre UE e Londres. Seis perguntas e respostas sobre o protocolo da Irlanda do Norte
O Protocolo da Irlanda do Norte tem sido uma fonte de tensão entre a UE e o Reino Unido desde que entrou em vigor no início de 2021. Agora, aproxima-se uma nova disputa de longa data entre ambos.
O Protocolo da Irlanda do Norte, acordado com Bruxelas em 2019, no âmbito do processo de saída do Reino Unido da União Europeia (UE), tem sido uma fonte de tensão desde a sua entrada em vigor no início de 2021.
Com as eleições para a Assembleia da Irlanda do Norte a culminarem na vitória histórica do Sinn Féin, partido nacionalista que defende a reunificação com a República da Irlanda, o Governo britânico anunciou planos para introduzir uma lei que anulará unilateralmente partes do acordo do Brexit relativamente à Irlanda do Norte.
Em seis perguntas e respostas, o ECO explica-lhe como é que esta legislação pode desencadear uma guerra comercial entre o Reino Unido e a União Europeia.
O que é o Protocolo da Irlanda do Norte?
Depois de os britânicos terem votado a favor do Brexit (processo de saída do Reino Unido da União Europeia) em 2016, foi criado um acordo especificamente para a Irlanda do Norte, visto ser a única parte do Reino Unido que partilha uma fronteira terrestre com um Estado-membro da UE: a República da Irlanda.
Enquanto o Reino Unido era membro da UE, o transporte de mercadorias através da fronteira entre as duas “Irlandas” era fácil, porque ambos os lados obedeciam às mesmas regras comerciais, ao abrigo da legislação europeia, não havendo quaisquer controlos ou lugar a verificação de documentação.
Contudo, a saída dos britânicos do bloco comunitário tornou necessário um novo sistema para permitir a troca de mercadorias entre as duas partes, já que Bruxelas aplica uma regulamentação rigorosa para bens alimentares e exige controlos fronteiriços quando produtos como leite ou ovos chegam de países não pertencentes à UE.
Ora, para evitar a imposição de uma fronteira comercial e aduaneira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte, o acordo do Brexit colocou então uma fronteira no mar da Irlanda, entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte. Esta solução permitiu proteger o acordo de paz da Irlanda do Norte, assinado na Páscoa de 1998 pelos governos britânico e irlandês, já que se temia que a imposição de controlos fronteiriços entre as duas “Irlandas” conduzisse a uma situação de instabilidade. O Acordo de Sexta-Feira Santa, como ficou conhecido, pôs fim aos conflitos entre nacionalistas e unionistas sobre a questão da união da Irlanda do Norte com a República da Irlanda, ou a sua continuação como parte do Reino Unido.
Como funciona o Protocolo da Irlanda do Norte?
O Reino Unido e a UE assinaram o Protocolo da Irlanda do Norte dentro do acordo do Brexit, que faz agora parte do direito internacional. Tendo em conta que ambas as regiões queriam evitar colocar postos de controlo aduaneiro na fronteira entre as duas “Irlandas”, a solução que o primeiro-ministro britânico subscreveu foi manter a Irlanda do Norte no mercado único de mercadorias da UE, sob o custo de colocar a fronteira aduaneira no mar irlandês.
Assim, em vez de se fazer o controlo de mercadorias na fronteira irlandesa, quaisquer inspeções e verificações documentais de produtos provenientes da Grã-Bretanha (Inglaterra, País de Gales, Escócia) para a Irlanda do Norte, são realizadas nos portos desta última. Que ficou com um estatuto especial, dentro da união aduaneira britânica, mas associada ao mercado único europeu e sujeita a regras da UE, sobretudo relativamente às normas de produtos.
Por que razão o protocolo é novamente notícia?
No dia 5 de maio de 2022, o partido nacionalista Sinn Féin, defensor da reunificação com a República da Irlanda, venceu as eleições para a assembleia legislativa da Irlanda do Norte, conquistando pelo menos 27 lugares no Parlamento de Stormont, face aos 24 conseguidos pelo Partido Democrata Unionista (DUP), defensor da manutenção da Irlanda do Norte integrada no Reino Unido.
É um resultado histórico porque, pela primeira vez desde a partição da Irlanda, há 101 anos, um partido não-unionista venceu as eleições na Irlanda do Norte, para a assembleia regional criada em 1921. Agora, está nas mãos do Sinn Féin nomear o primeiro-ministro para o Governo de partilha de poder com os unionistas.
O Sinn Féin, juntamente com o partido Aliança – que também ganhou lugares no Stormont -, apoia o Protocolo, enquanto o DUP tem pressionado para que o acordo seja desmantelado, por entender que o controlo no mar irlandês prejudica o lugar da Irlanda do Norte no Reino Unido e desvia os fluxos comerciais para o sul.
O sistema na Irlanda do Norte exige um acordo de compromisso entre nacionalistas e unionistas para formar Governo. Porém, o DUP recusa formar a coligação necessária para viabilizar um Governo enquanto não forem feitas alterações aos acordos pós-Brexit. Sem a cooperação do DUP, a Irlanda do Norte fica num impasse político, restando aos partidos seis meses para formar um Governo. Caso contrário, terão de ser convocadas novas eleições na região.
O que propõe o Governo britânico?
O Governo de Boris Johnson há muito que procura renegociar o protocolo para acabar com a necessidade de controlo na maioria dos bens. Ameaçando desencadear o Artigo 16, uma espécie de cláusula de emergência que pode suspender partes do acordo se este causar “sérias dificuldades económicas, sociais ou ambientais” ou um “desvio de comércio”.
No entanto, a ministra dos Negócios Estrangeiros britânica e negociadora-chefe, Liz Truss, disse esta terça-feira, perante a Câmara dos Comuns, que pretende introduzir legislação “nas próximas semanas” para anular unilateralmente aspetos do Protocolo para a Irlanda do Norte, por este ter causado problemas que o Governo britânico não previu quando assinou o acordo.
Segundo LizTruss, a atual implementação do protocolo coloca o Acordo de Paz de Sexta-Feira Santa “sob pressão”, ao mesmo tempo que levou a uma burocracia desnecessária para as empresas que transportam mercadorias entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte.
Além disso, a governante britânica disse que a proposta de lei do Protocolo para a Irlanda do Norte significaria que os bens britânicos destinados à venda na Irlanda do Norte apenas teriam de cumprir as normas britânicas e não as da UE.
Num telefonema com o vice-presidente da Comissão Europeia, Maroš Šefčovič, na semana passada, Truss avisou que o Reino Unido não teria outra escolha senão agir, caso a UE não mostrasse a “flexibilidade necessária”. No entanto, reiterou que a preferência continua a ser “uma solução negociada” e, como tal, convidou Šefčovič para um encontro o mais brevemente possível para procurar um acordo sobre as alterações necessárias ao texto aprovado em 2020.
O que diz a Comissão Europeia?
Em resposta à chefe da diplomacia britânica, Šefčovič advertiu que uma ação unilateral do Reino Unido “não é simplesmente aceitável” e “prejudicaria as condições que são essenciais para que a Irlanda do Norte continue a ter acesso ao mercado único de mercadorias da UE”.
Nesse sentido, Bruxelas ameaçou mesmo que responderá “com todas as medidas à sua disposição”, caso o Governo britânico avance com a alteração unilateral do Protocolo da Irlanda do Norte.
Um compromisso possível do Executivo comunitário passaria por alargar a lista de produtos isentos de controlos nos portos da Irlanda do Norte. No entanto, Maroš Šefčovič minimizou a perspetiva de grandes concessões: “A UE já demonstrou uma grande flexibilidade ao propor soluções impactantes e duradouras e estamos prontos a continuar as discussões“.
Em outubro passado, a Comissão Europeia expôs as suas próprias propostas para alterar o protocolo, o que incluía uma redução de 80% nos controlos dos produtos alimentares que chegam à Irlanda do Norte e a redução para metade da quantidade de documentação; aprovar legislação para permitir a continuação do comércio de medicamentos entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte; e relaxar regras para que carnes refrigeradas, tais como salsichas, possam ser enviadas através do mar da Irlanda.
Em troca, a UE queria salvaguardas adicionais para impedir que os produtos da Grã-Bretanha atravessassem para a República da Irlanda, mas o Reino Unido rejeitou as propostas, argumentando que “agravariam os atuais acordos comerciais”.
O que pode acontecer a seguir?
Ao contrário do Artigo 16, que permite ao Reino Unido tomar medidas limitadas e proporcionais para resolver ruturas específicas causadas pelo protocolo após um período de reflexão de um mês para conversações com a UE, a legislação que Truss quer introduzir permitiria ao Governo britânico tomar medidas unilaterais imediatas. Mas tal medida constituiria uma violação do direito internacional, segundo advogados.
Truss pode introduzir um novo projeto de lei parlamentar – que provavelmente enfrentará uma forte oposição na Câmara dos Lordes – ou utilizar a chamada legislação secundária, que permite a um ministro alterar diretamente uma lei sem precisar da aprovação do Parlamento. A legislação pode anular partes do protocolo relativamente ao comércio e aos impostos, ou então conferir poderes aos ministros para se sobreporem a ele.
Como alternativa, a chefe da diplomacia britânica pode simplesmente ameaçar introduzir legislação no Protocolo da Irlanda do Norte na esperança de encorajar Bruxelas a negociar.
A Comissão Europeia, por seu lado, poderá retaliar. Caso o Governo britânico avance com a alteração unilateral de partes do protocolo, pode iniciar processos de infração contra o Reino Unido e suspender o acordo comercial entre ambos.
Tal cenário impediria o comércio livre de impostos entre os dois lados, deixando a Grã-Bretanha em grande parte na mesma posição em que se encontraria se não tivesse conseguido obter um acordo para o Brexit em primeiro lugar.
Além disso, uma decisão final pode levar meses. É que os detalhes e o calendário quer de possíveis negociações, quer de medidas de retaliação requerem a aprovação dos 27 Estados-membros da UE.
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