Como assim, uma pessoa com deficiência pode criar a sua empresa?
É tempo de falarmos da economia na vida das pessoas com deficiência e Surdas. De pensar no emprego e no empreendedorismo. É o capital obtido pelo nosso trabalho que nos paga contas.
Existem apoios da Segurança Social e IEFP às empresas que contratem pessoas com deficiência e Surdas. Mas e se eu, enquanto pessoa com deficiência, quiser criar a minha empresa? Será concebível aos olhos da sociedade?
No início deste ano cofundei a Access Lab. Antes de constituirmos sociedade questionámos a Segurança Social e o IEFP sobre apoios à criação do posto de trabalho por parte da própria pessoa com deficiência. Entre silêncios, pedidos de espera e redirecionamentos, a reação de surpresa foi absoluta. Como assim, uma pessoa com deficiência pode criar a sua empresa?
A resposta destes contactos, após alguma pesquisa, foi que existem apoios à contratação mas não quando a pessoa é sócia-gerente. Avançámos sem apoio estatal. Mais tarde, numa conversa com um trabalhador do setor público, confirmou-nos que, não existindo este tipo de apoio específico, existe, sim, incentivo à criação de empresas (independentemente de um sócio ter ou não uma deficiência) ao qual seríamos elegíveis. Não concorremos porque não tivemos informação em tempo útil.
Não me interpretem mal: não acredito em assistencialismo capacitista, da sociedade ou do Estado, mas, se uma empresa beneficia especificamente da contratação de um trabalhador com deficiência ou Surdo, porque é que o empreendedorismo da pessoa com deficiência não é estimulado quando é sinónimo de emancipação pessoal e profissional?
A necessidade de empregar pessoas com deficiência e Surdas entrou na agenda social e económica. Caso contrário, não tínhamos as quotas da lei 4/2019; grupos como a Jerónimo Martins com mais de 600 empregados com deficiência; e projetos como a Agência de emprego Valor T, com 1000 inscrições, tendo já feito mais de 250 entrevistas para futuras colocações. Já a Associação Salvador, que desde 2015 investe num programa de emprego, acompanhou mais de 552 candidaturas até 2020, sensibilizou 270 empresas até 2020 e apoiou a colocação de 170 pessoas com deficiência até 2021.
Para este artigo, fiz uma breve pesquisa de outros empresários com deficiência, precisava de encontrar pares. Encontrei o Bento Amaral, da Humanwinety, o Diogo Martins e o Sérgio Lopes, da City Able, a Filipa Bento, da INCLUUDO TECHNOLOGIES, e o Ricardo Teixeira, da JumpMaster Investimentos (nomeando apenas alguns).
Os últimos anos carregam avanços políticos e sociais sem precedentes nos direitos das pessoas com deficiência. Celebro-os, mas quero mais. No final de 2021, Portugal tinha mais de 13 000 pessoas com deficiência inscritas no desemprego. Eu era uma delas, até que, no início de 2022, criei o meu posto de trabalho e assumi o cargo de diretor executivo da Access Lab.
Com uma missão social, a Access Lab é uma empresa que acredita nas pessoas com deficiência e Surdas enquanto potência económica. Todos pagamos pelos bens e serviços dos quais usufruímos, sem exceções. Enquanto pessoa com deficiência, não espero que me ofereçam um jantar, uma viagem ou um bilhete para um espectáculo.
Defendemos a equidade económica, política e social, tendo no acesso ao entretenimento o centro nevrálgico do nosso trabalho. Acreditamos na arte como montra da sociedade: através dela não só podemos pensar, como agir sobre todas as relações comunitárias.
Isto implica compreender a população. Compreender, por exemplo, que em eventos culturais, não deve ser cobrado bilhete ao assistente pessoal porque este não vai apenas enquanto espectador, vai ser parte da experiência de equidade da pessoa com deficiência (prestando apoio na deslocação, segurança ou alimentação). Não devemos pagar dois bilhetes para que um de nós usufrua. Esta é a primeira das medidas económicas a tomar.
A solução passa, no nosso entender, por assumir a economia social enquanto centro de ação. Responsabilizar e mobilizar vários agentes para a mudança. Retribuir às pessoas aquilo que deram à sociedade.
A acessibilidade é cara, tem pouca procura e alguma cartelização. Desconstruir o sistema é uma tarefa diária que assumimos. Foi nesta visão económica que a Access Lab venceu o fundo +Plus, da Casa do Impacto, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, para implementar 4 pilotos de transformação na Altice Arena, Festival Iminente, Festival MIL e Festival Política. O orçamento é completo pelo investimento dos próprios espaços, na sua acessibilidade, e pelos patrocinadores.
Porque trabalhamos desta forma? Queremos dar às pessoas condições de equidade, mas o custo por contacto de uma transformação que respeite direitos é praticamente impossível de suportar por uma entidade cultural unilateralmente. É preciso criar uma estrutura financeira robusta de arranque para diluir custos e otimizar o retorno. Posto isto, criam-se infraestruturas para os espaços destes quatro pilotos ganharem autonomia para agir, investir e medir retorno com sustentabilidade.
Podem dizer-nos que há uma certa perversão neste posicionamento mas contra-argumento: qual é a franja da sociedade que, numa relação de bens e serviços, não tem o seu valor económico medido? Até isto faz parte da equidade.
É tempo de falarmos da economia na vida das pessoas com deficiência e Surdas. De pensar no emprego e no empreendedorismo. É o capital obtido pelo nosso trabalho que nos paga contas. Nós também fazemos descontos. Vamos inverter a narrativa de assistencialismo capacitista que dominou as últimas décadas.
Vivemos com a geração de jovens com deficiência mais qualificada de sempre. No ano letivo 2020/2021, 2500 alunos com deficiência estavam inscritos no ensino superior.
Hoje vivo com um propósito reforçado olhando para a start-up que cofundei, sobretudo quando começamos a atingir resultados. O nosso objetivo é contribuir para a resolução de um problema que afeta muitas experiências, além da minha — 1 milhão e 700 mil portugueses vive com alguma incapacidade. Esta foi a plataforma que criei.
E vocês, tenham ou não uma deficiência, que plataforma estão a criar?
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