Economia está este ano a recuperar, mas a fatura social da austeridade, inflação alta e desemprego elevado deverão pesar no comportamento dos eleitores. A UNITA tem capitalizado o descontentamento.
Cerca de 14,4 milhões de angolanos decidem esta quarta-feira nas urnas se João Lourenço sucede a si mesmo ou a UNITA põe fim a 43 anos de domínio do MPLA. As medidas de austeridade e a elevada inflação deram força à contestação… e à oposição.
A economia pesa em qualquer eleição e na disputa desta quarta-feira em Angola não será diferente. Para perceber os anos de governação de João Lourenço é preciso puxar o filme atrás. Sendo o país “petrodependente”, as dificuldades voltaram a partir de 2014, quando a cotação do barril de petróleo iniciou uma forte desvalorização, caindo de mais de 100 dólares para menos de 30. As contas públicas e externas regressaram a um forte desequilíbrio, o kwanza caiu, a inflação voltou a subir e a economia entrou em colapso.
Foi neste contexto de crise que João Lourenço chegou ao poder nas eleições de 2017, depois de ter sido escolhido como sucessor de José Eduardo dos Santos na liderança do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Logo após chegar à Presidência teve de negociar um resgate com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Como sempre, o empréstimo de 3,7 mil milhões de dólares (seria mais tarde reforçado em 765 milhões devido à pandemia) obrigou a reformas duras.
A inflação galopante combinada com o IVA levou a um empobrecimento das famílias. O poder de compra caiu a pique.
A alteração do sistema fiscal foi uma delas, em particular a introdução do IVA com uma taxa de 14% em 2019. Outra foi a adoção do regime de taxas de câmbio flexíveis, que colocou o kwanza a flutuar contra o dólar e o euro, ampliando a significativa desvalorização da moeda local (queda de 75% entre setembro de 2017 e meados de 2021) e agravando o custo das importações num país onde quase tudo vem de fora.
“A liberalização da taxa de câmbio para criar estabilidade macroeconómica levou a uma depreciação muito forte do kwanza contra o dólar e o euro, o que provocou uma subida generalizada dos preços. A inflação galopante combinada com o IVA levou a um empobrecimento das famílias. O poder de compra caiu a pique”, observa Carlos Pacatolo, politólogo e diretor-geral do Instituto Superior Politécnico Jean Piaget de Benguela.
“A questão económica pesou seguramente [no aumento do descontentamento]”, assevera Carlos Rosado de Carvalho, jornalista e professor da Universidade Católica de Angola. “A quebra do poder de compra do salário mínimo foi da ordem dos 60%. Ainda um dia destes estava a ouvir um senhor a queixar-se na rádio que no tempo de José Eduardo dos Santos comprava uma caixa de coxas de frango por 1.500 kwanzas [3,5 euros ao câmbio atual] e agora gasta 9.000 kwanzas [21 euros]”, ilustra.
O desemprego é outro flagelo. A taxa oficial, do Instituto Nacional de Estatística de Angola, era de 30% no segundo trimestre, em rota descendente. Mais de metade da população entre os 15 anos e os 24 anos não tem emprego (56,7%). A taxa é também muito mais elevada nos meios urbanos (40%) do que nos rurais (14,3%), com o emprego informal a representar 79% do total.
A grande desvalorização da moeda nacional, e a consequente perda de poder de compra das famílias e o desemprego, serão dois factores de peso no comportamento do eleitorado.
“A grande desvalorização da moeda nacional, e a consequente perda de poder de compra das famílias e o desemprego, serão dois fatores de peso no comportamento do eleitorado. Há um cansaço popular muito grande também por não se ver problemas básicos resolvidos, em especial nos grandes meios urbanos”, acrescenta José Oliveira, investigador do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola (CEIC/UCAN) para a área da Energia.
“Um exemplo é uma cidade como Luanda não ter ainda transportes públicos à dimensão das necessidades de cerca de 6 milhões de habitantes. Outro problema grave é a carência de água potável canalizada em bairros suburbanos de Luanda e de outras cidades”, enumera José Oliveira. “Apenas tem havido melhoras significativas nos últimos 10 anos a nível do acesso à eletricidade”.
Segundo um inquérito do Afrobarometer, um centro de estudos de opinião independente com sede no Ghana, o número de angolanos que dizem viver em pobreza extrema passou de 35% em 2019 para 44% em 2022. “A fatura social foi muito elevada”, sublinha Carlos Pacatolo. Resultado: “A contestação social tomou contas das ruas em 2020 e 2021”, incluindo pela primeira vez funcionários públicos da Saúde ou Justiça, conta.
Reviravolta na economia
Nem tudo é negativo. Depois de cinco anos de recessão, entre 2016 e 2020, a economia está a recuperar puxada pela cotação do petróleo, que voltou a superar a fasquia dos 100 dólares com a guerra na Ucrânia e se mantém acima dos 90 dólares. O FMI prevê um crescimento de 3% do PIB este ano, que ainda assim ficará 14,3% abaixo do registado em 2015 (em dólares). O setor não petrolífero também cresce e a um ritmo superior: 3,4%.
O encarecimento da matéria-prima é também uma bonança para as contas públicas e externas, com o regresso do excedente da conta corrente. Depois de um saldo orçamental positivo de 2,8% em 2021, o FMI espera 2,4% este ano. Sem receitas do petróleo, o défice primário será de -5,2%, quando chegou a exceder os 50% há uma década. A dívida pública em percentagem do PIB deverá baixar de 135% em 2020 para 78,9% em 2021. O kwanza já apreciou 69% desde os mínimos.
No comunicado de imprensa da sexta avaliação do Programa de Financiamento Ampliado acordado com a instituição de Bretton Woods, que permitiu em dezembro o desembolso da última tranche de 748 milhões de dólares, é salientado que “as projeções apontam para um crescimento global positivo de Angola em 2022, atingindo cerca de 4% a médio prazo, impulsionado pela implementação das reformas estruturais planeadas que visam reforçar o crescimento”.
A subdiretora-geral do FMI deixa elogios à governação. “As políticas prudentes das autoridades angolanas contribuíram para reforçar a estabilidade e a sustentabilidade no âmbito do programa, apesar das difíceis condições económicas”, declarou Antoinette Sayeh, elogiando “o compromisso com as reformas” e a “política orçamental disciplinada”.
A evolução refletiu-se na avaliação das agências de rating. A Moody’s e a Fitch elevaram este ano a classificação de Angola para “B-” (ainda considerada de muito alto risco), com a última a melhorar em julho o outlook para “positivo”, citando também o esforço de consolidação orçamental e a agenda reformista.
Investimentos no petróleo regressam
A falta de investimento, agravada pela crise na Sonangol, que levou à quebra na produção de petróleo também começa a ser revertida. “Hoje já não se pode dizer que há falta de investimento. As companhias já estão a investir cerca de 200 milhões por mês na perfuração de poços para manter a produção”, afirma José Oliveira. “A crise em que a indústria dos petróleos se encontrava em 2017 foi ultrapassada com toda uma série de medidas estruturais e de legislação para melhorar a competitividade da indústria em Angola”, acrescenta o investigador do CEIC/UCAN para a área da Energia.
A crise em que a indústria dos petróleos se encontrava em 2017 foi ultrapassada com toda uma série de medidas estruturais e de legislação para melhorar a competitividade da indústria em Angola.
O país, que produzia perto de 1,8 milhões de barris por dia em 2015, ficou-se pelos 1,125 milhões em 2021. Este ano, a produção deverá aumentar ligeiramente para os 1,15 milhões. “Tudo indica que nos próximos dois-três anos ainda vai produzir acima de um milhão de barris por dia. Depois tudo depende do andamento dos projetos que estão agora em fase de estudo para posterior decisão de investimento”, refere José Oliveira.
“Angola tem neste momento várias áreas em fase de pesquisa, de norte a sul do país, em terra e no mar, e do seu sucesso ou insucesso vai depender a produção pós-2026. E antes do fim do ano ainda se devem assinar mais contratos para pesquisa de petróleo em águas profundas”, antecipa o investigador.
Chegou a vez da UNITA?
Ainda que as perspetivas sejam boas, na hora de votar deverão pesar as agruras recentes e persistentes. “João Lourenço teve o mérito de ter estabilizado as contas públicas, mas o preço social dessa estabilização é muito elevado. O ambiente de adversidade está colado ao Presidente, nas também ao partido do Governo. Há um grande descontentamento“, considera Carlos Pacatolo.
A insatisfação não resulta apenas da perda de poder de compra. A mudança que João Lourenço prometeu não se concretizou, considera Carlos Rosado Carvalho. “Quando chegou adotou a agenda da oposição com o combate à corrupção, ao nepotismo e à bajulação e uma maior abertura democrática. Mais ou menos a meio do mandato, a abertura tornou-se uma miragem e o combate à corrupção revelou-se seletivo, essencialmente direcionado para a família e pessoas do círculo próximo de José Eduardo dos Santos”, afirma o jornalista.
Quando chegou, João Lourenço adotou a agenda da oposição com o combate à corrupção, ao nepotismo e à bajulação e uma maior abertura democrática. Mais ou menos a meio do mandato, a abertura tornou-se uma miragem e o combate à corrupção revelou-se seletivo, essencialmente direcionado para a família e pessoas do círculo próximo de José Eduardo dos Santos.
Em contraste, Edultrudes Costa, antigo chefe da Casa Civil de José Eduardo dos Santos e atual chefe de gabinete de João Lourenço, suspeito de ter sido favorecido em vários milhões de euros com a atribuição de contratos públicos a uma empresa sua, continua no cargo e livre da justiça. “O combate à corrupção acabou com a ideia de impunidade”, defende Carlos Pacatolo, mas concorda que “é difícil defender a não seletividade do combate”.
“Este cocktail da economia e política é que provocou toda esta impopularidade de João Lourenço”, analisa Carlos Rosado Carvalho. “Há uma ideia generalizada de desgaste do MPLA que coincide com o primeiro ciclo de governação de João Lourenço. Teve um bom arranque e conseguiu galvanizar toda a gente, mas nos últimos três anos a perceção é negativa”, diz também o diretor-geral do Instituto Superior Politécnico Jean Piaget de Benguela.
Há uma perceção generalizada de que pela primeira vez a UNITA poderá tirar o MPLA do poder. Mas as contas só poderão ser feitas depois de dia 24.
A convicção geral é, por isso, que estas eleições venham a ser especialmente renhidas. “Acho que há uma janela de oportunidade para a UNITA ganhar, por existir um desejo de alternância”, afirma o professor da Universidade Católica de Angola. “Há uma perceção generalizada de que pela primeira vez a UNITA poderá tirar o MPLA do poder. Mas as contas só poderão ser feitas depois de dia 24″, diz também Carlos Pacatolo.
À cabeça da Frente Patriótica Unida, a UNITA é quem melhor parece capitalizar o descontentamento, considera o politólogo. Além disso, Adalberto da Costa Júnior, o engenheiro eletrotécnico formado no Porto que em 2019 substituiu Isaias Samakuva na liderança, “é um candidato que recolhe simpatia de pessoas além da UNITA”.
A sondagem considerada mais credível, do já referido Afrobarometer, tem já vários meses e é pouco conclusiva, embora dê vantagem a João Lourenço. O inquérito realizado entre fevereiro e março atribui 29% dos votos ao MPLA e 22% à UNITA, com 31% dos inquiridos a recusar responder, 9% a dizer que não sabe e 6% que não vai votar. No escrutínio de 2017, o partido no Governo venceu com 61,1% dos votos, a larga distância da UNITA, com 26,7% e do Convergência Ampla de Salvação de Angola (CASA-CE), com 9,5%. Além destes, concorrem às eleições mais quatro partidos.
“O segmento dos jovens dos 18 aos 45 anos é que vai decidir. Juventude adulta mais escolarizada, residente nos centros urbanos e com empregos razoáveis. Se esses forem votar podem levar a balança para o outro lado”, acredita Carlos Pacatolo. Já o MPLA tem mais força nos meios rurais. Se o Presidente eleito é o cabeça de lista do partido mais votado, os 220 deputados da Assembleia Nacional são eleitos por um círculo nacional (130 deputados) e 18 círculos provinciais. Nestes últimos, a província mais populosa, Luanda (6,9 milhões de habitantes), elege os mesmos cinco deputados que o Bengo (356,6 mil).
Receios de fraude e violência
Um dos temas que tem marcado a campanha é a hipótese de haver fraude. As suspeitas são alimentadas pelo facto de o MPLA dominar a Comissão Nacional de Eleitores (por ter a maioria dos deputados no Parlamento), o número de observadores permitido (dois mil) ser muito inferior ao de mesas de voto ou a presidente do Tribunal Constitucional, Laurinda Cardoso, ter vindo do Bureau Político do MPLA.
Além disso, “a comunicação social está sob controlo férreo do Estado”, afirma Carlos Rosado de Carvalho. “A televisão tem muito peso e não há um canal de televisão privado. Tenho feito a monitorização da Televisão Pública de Angola. O MPLA tem 95% do espaço de informação e a UNITA tem 5%. A fraude começa aí”.
Tenho feito a monitorização da Televisão Pública de Angola. O MPLA tem 95% do espaço de informação e a UNITA tem 5%. A fraude começa aí.
Quer Carlos Pacatolo quer Carlos Rosado de Carvalho salientam, no entanto, que os partidos vão ter delegados nas assembleias de voto e as atas serão assinadas. O que à partida dará garantias sobre a contagem, ainda que esta seja depois centralizada em Luanda.
As suspeitas levaram a UNITA a lançar a campanha “Votou, sentou”, apelando aos eleitores que permaneçam junto às mesas de voto até à divulgação da contagem. O apelo “foi usado na Zâmbia, Malawi e Quénia, tendo conduzido a uma alternância, mas nós não somos nenhum daqueles países”, afirma o politólogo, que considera a iniciativa uma “insensatez”. Já o slogan do Governo é “Votou, basou”. A Comissão Nacional de Eleitores também tem apelado a que as pessoas dispersem, para evitar confrontos.
A possibilidade de existirem episódios de violência após a divulgação dos resultados é uma preocupação. “Pode haver tensão social após o anúncio dos resultados mas será com certeza um fenómeno de dias, semanas na pior das hipóteses, sem repercussões económicas significativas na economia em termos de futuro”, considera José Oliveira. “Isto partindo do princípio que os resultados anunciados vão estar de acordo com a realidade do voto, a nível nacional”.
“Queremos que todos os angolanos no dia seguinte possam continuar a sua vida”, afirma esperançoso Carlos Pacatolo.
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