Uma nova experiência na política monetária?
Se a inflação persistir elevada, mesmo com taxas de juro reais negativas e transferências de dívida à mistura, é difícil antecipar como é que isso não prejudicará a confiança dos agentes.
A inflação em Portugal continua elevada, a exemplo do que sucede por toda a Europa. Em Agosto, o índice harmonizado de preços no consumidor cresceu 9,4% face ao ano anterior, ligeiramente acima do ritmo de crescimento observado na zona euro (9,1%). Os preços aumentaram de forma generalizada e a chamada inflação subjacente, que retira do cálculo os preços dos bens alimentares e energéticos, cresceu 6,5%. No mês anterior crescera 6,2% (numa base anual).
A tendência inflacionista continua sem dar tréguas e o Banco Central Europeu (BCE), depois de ter desvalorizado o assunto num primeiro momento, parece agora querer falar decididamente contra o risco de novas subidas de preços. Mas estará o discurso do BCE realmente afinado com o seu provável curso de acção? E estará o BCE disposto a subir o nível das taxas de juro de forma decisiva? Na minha opinião, não e não.
Nos últimos dias não têm faltado posições fortes, sobre a direcção das taxas de juro, por parte de responsáveis do BCE. A ala germânica, em particular, tem estado muito activa na tentativa de definir a agenda da política monetária, sendo que os mercados financeiros vão dando conta das expectativas que têm vindo a formar-se mais recentemente.
A taxa Euribor a 12 meses, utilizada no mercado interbancário (isto é, pelos próprios bancos entre si), já subiu 2,25 pontos percentuais desde o início do ano (de -0,5% em Janeiro para 1,75% no final de Agosto) com o movimento de alta a acentuar-se no último mês. Também as taxas de juro implícitas na dívida soberana europeia têm percorrido caminhos convergentes, subindo também, apesar de permanecerem ligeiramente abaixo dos valores atingidos em Junho. Ainda assim, a taxa implícita da dívida alemã a 10 anos já está em 1,5%, a portuguesa em 2,6% e a italiana em 3,9%.
Isto dito, a taxa de refinanciamento do BCE encontra-se em 0,5%. A divergência entre os valores de mercado e os preços determinados pelo banco central revela quão atrasado está o banco central. O BCE corre atrás do prejuízo e fá-lo ao mesmo tempo que tenta “disciplinar” os diferenciais de taxa de juro entre alguns soberanos, nomeadamente entre a Alemanha e a Itália.
Segundo dados publicados pelo Financial Times, o BCE adquiriu um conjunto de títulos de dívida pública italiana, espanhola e grega entre Junho e Julho no valor de 17 mil milhões de euros, ao mesmo tempo que reduziu o seu stock de dívida pública alemã, holandesa e francesa em montante idêntico. Porém, o diferencial de taxa de juro entre a Alemanha e a Itália permanece próximo de 2,5% – o patamar que, alegadamente, o BCE pretende defender, sem que se perceba exactamente qual o cálculo associado a fim de derivar tal patamar.
Não obstante a subida das taxas de juro soberanas na Europa, que é desfavorável às contas públicas dos países afectados, não deixa de ser curioso o facto de ainda não ser visível uma inversão da curva de rendimentos tal como observada desde há algum tempo nos Estados Unidos.
Enquanto nos Estados Unidos a taxa de juro implícita na dívida pública a 2 anos é superior àquela que é exigida a 10 anos – a tal curva invertida (implicando uma taxa de juro mais elevada no prazo mais curto) –, na Europa, tomando a Alemanha e a Itália como exemplos maiores, não se vislumbra para já tendência idêntica. Na Europa, nos exemplos apontados, a curva de rendimentos permanece com declive tendencialmente positivo até aos 10 anos. Na realidade, o que se nota são taxas de juro a subir de um modo geral, em todos os prazos, ao longo da curva (até aos 10 anos), e não em pontos específicos da mesma.
A inversão da curva de rendimentos é geralmente associada a um risco maior de recessão económica, causada pela subida da taxa de juro no imediato, levando os investidores a anteciparem taxas de juro mais baixas a médio prazo que relancem a economia. Ora, em face do risco recessivo que a crise energética acarreta na Europa, e que é maior nos países europeus do que nos Estados Unidos, é estranho que a estrutura das taxas de juro não tenha ainda invertido na Europa.
É aqui, aliás, que entra a diferença entre o discurso e a acção do BCE, sabendo-se que os responsáveis dos bancos centrais gostam de comunicar publicamente para condicionar a evolução dos mercados e atingir os seus intentos sem terem de agir decisivamente para o efeito – as chamadas profecias autoconfirmatórias (“self-fulfilling prophecies”).
Nos últimos meses tenho referido amiúde a armadilha de endividamento na qual a Europa se encontra e que inviabiliza subidas agressivas das taxas de juro por parte dos bancos centrais. Mais recentemente, tenho introduzido na discussão a reestruturação de dívida (depois de um hiato de dez anos em que o assunto foi perdendo destaque), muito embora as hipóteses de reestruturação assumam hoje contornos diferentes daqueles que se discutiam há uma década.
Agora, a acontecerem, em vez de incumprimentos, teremos talvez cancelamentos de dívida – promovidos no âmbito de iniciativas de política pública (como foi anunciado com os empréstimos universitários nos Estados Unidos ou como poderá vir a acontecer na Europa com os empréstimos empresariais suportados em garantias públicas). Naturalmente, o resultado de tudo isto será o crescimento das dívidas públicas, que subsidiarão o cancelamento das outras dívidas, e também o crescimento dos impostos (de forma expressa e/ou velada via inflação).
O impacto de uma política monetária menos restritiva, ou até paradoxalmente acomodatícia, será inflacionista. Na Europa, juntando-lhe os bloqueios do lado da produção, designadamente a crise energética e a regionalização da economia mundial (que inviabilizará algumas cadeias integradas de produção, obrigando à reorganização onerosa de recursos), aos quais acresce um mercado laboral com pouca folga, tudo aponta no mesmo sentido: inflação potencialmente elevada e duradoura.
A repressão financeira, que se caracteriza pela manutenção de taxas de juro reais negativas (constituindo assim um incentivo à tomada de dívida), vai manter-se. Mas se a inflação persistir elevada, na vizinhança dos dois dígitos, mesmo com taxas de juro reais negativas e transferências de dívida à mistura, é difícil antecipar como é que isso não prejudicará a confiança dos agentes económicos. Provavelmente, estamos perante uma nova experiência.
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