Lourdes Afonso (IAP) : Riscos de clima, ciberataques e envelhecimento estão subsegurados
Lourdes Afonso, presidente do instituto dos atuários portugueses, alerta que os riscos a precisar de proteção estão a mudar e a forma de os avaliar também. Há grande défice nas coberturas.
O que faz concretamente o atuariado e quais os motivos para as seguradoras dependerem tanto destes profissionais para estarem confortáveis sobre os riscos que aceitam cobrir e sobre o prémio que cobram aos clientes?
Lourdes Afonso é atuária e professora associada no Departamento de Matemática da FCT NOVA e membro da Comissão Científica do Mestrado em Atuariado. É também docente convidada na NOVA IMS e atuária responsável dos ramos não vida certificada pela ASF. É igualmente Presidente da Direção do Instituto de Atuários Portugueses desde janeiro de 2021 e conversou com ECOseguros.
O que faz um atuário/a?
É um profissional com conhecimentos base de matemática, com destaque para as probabilidades, estatística e finanças que avalia as probabilidades de ocorrência de acontecimentos futuros e incertos assim como o seu impacto financeiro. Um exemplo simples é o cálculo do preço de um seguro automóvel, de vida ou saúde.
O atuário tem de ter conhecimentos em diversas áreas e, usualmente, trabalha integrado numa equipa interdisciplinar. Para além de toda a modelização matemática, económica e financeira dos riscos terá de possuir bons conhecimentos a nível informático, de direito e de comunicação, o que lhe permite dar um contributo transversal à sociedade.
Exemplo das atividades de um atuário são: o cálculo de prémios de seguros, avaliar as provisões técnicas, ou seja, a quantidade e qualidade dos montantes financeiros que as empresas de seguros precisam de provisionar e gerir, para cumprir, com grande grau de fiabilidade com as suas obrigações, presentes e futuras; tratados de resseguro, isto é, o seguro das seguradoras, desenvolver novos produtos associados à proteção de riscos. Sendo estas as tarefas mais conhecidas, aos quais se associam as funções de gestão de alto nível, como sejam membros de conselhos de administração, incluindo CEO e Chairman.
Quais as tarefas mais urgentes na indústria seguradora para um atuário?
No âmbito da indústria seguradora, grande empregadora de atuários, o atuário está envolvido na avaliação global dos riscos imposta pelo regime de Solvência II, com um maior impacto no Pilar I (requisitos quantitativos), mas com envolvimento também nos Pilares II (requisitos qualitativos) e III (informação e reporte) e, mais recentemente, na avaliação de riscos imposta pela diretriz contabilística IFRS 17. Pode especializar-se nas áreas Vida, Não vida, Fundos de Pensões, Banca, auditoria, consultoria ou fora do mercado segurador e bancário na análise de riscos industriais, de Saúde, do Ambiente entre outros.
Que informações procura para os seus cálculos?
Dados sobre as variáveis de interesse para avaliar o risco, por forma a obter padrões de comportamento relativamente a frequências de sinistralidade e severidade da mesma. Quanto maior e de melhor qualidade for o volume de dados, melhor será a caracterização do risco. O atuário necessita estar a par de novos modelos matemáticos que melhor se adaptem às necessidades emergentes. O atuário está em constante formação.
Qual a importância dessa análise de risco para formular apólices e preços?
Conhecer, definir, caracterizar e mensurar os riscos é fundamental para elaborar uma apólice. A apólice deverá ser o mais clara possível para não subsistirem dúvidas sobre as contingências abrangidas, ou não, pela mesma. Da mesma forma, através dos modelos matemáticos o apuramento dos valores expectáveis de custo e frequência dessas contingências permite um apuramento do preço o mais próximo possível da realidade. Como se está a mensurar acontecimentos futuros e a componente aleatória está definitivamente presente, é necessário avaliar também a variabilidade dos resultados para se estimar, sempre que possível, um intervalo de confiança para o resultado. Como é sabido, o prémio de seguro é cobrado antes da ocorrência das contingências e em alguns seguros, como por exemplo Acidentes de Trabalho, o pagamento das indemnizações arrasta-se por vários anos. A solvência do produto, do ramo e em última análise da seguradora é de todo o interesse para a sociedade.
Qual a relação com outros intervenientes do mercado como autoridades e seguradoras?
Os atuários membros do IAP estão representados por membros da direção e colegas, nas associações europeia e internacional das associações profissionais de atuários (Actuarial Association of Europe, AAE, e a International Actuarial Association, IAA) onde existem diversos comités de trabalho sobre os mais diversos temas que contam com atuários das diversas instituições. Os atuários podem também representar as empresas de seguros onde trabalham junto dos comités de trabalho da Associação Portuguesa de Seguradores e na Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Patrimónios. A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, enquanto entidade reguladora e de supervisão, certifica, via júri criado para o efeito, os atuários que elaboram o relatório atuarial a ser entregue anualmente, bem como avalia o fit and proper da função atuarial.
Os membros do IAP podem ser, também, consultados como peritos em tribunal ou participar como peritos noutras avaliações de risco de interesse social.
Quais as mudanças que está a detetar nos riscos?
As mudanças tecnológicas têm impacto considerável na avaliação do risco. O maior e melhor processamento de dados permite a utilização de mais informação e mais variáveis para explicar os riscos. O exemplo da introdução da telemática, há uns anos, no seguro automóvel, poderá levar, em breve, a uma tarifação individual quase instantânea. O reconhecimento de imagens pode levar a uma avaliação de peritagem realizada por um drone. A utilização de um relógio que recolhe dados biométricos pode levar a alterações na tarifa do seguro de saúde. O atuário tem de estar a par destes desenvolvimentos para os incorporar na avaliação de risco.
Quais os riscos que mais se estão a preocupar?
Alguns dos riscos emergentes com maior mediatismo e impacto são:
Os riscos climáticos, cujos danos podem ser ambientais (perda de biodiversidade em cheias e incêndios por exemplo), económicos (interrupção de atividades e meios de produção) e sociais (desalojamentos, ferimentos, morte). O atuário pode estar envolvido na identificação dos riscos, na avaliação e gestão dos mesmos, já existindo na Europa alguns atuários especializados nesta área.
Os riscos cibernéticos que são cada vez mais, mais sofisticados e com impactos por vezes consideráveis a nível reputacional e de funcionamento nas empresas e também a nível individual. Existem já alguns modelos de avaliação de risco mas a falta de dados para a sua calibração e a diversidade de ataques está a dificultar o desenvolvimento de produtos adequados às necessidades.
A demografia, embora não sendo um risco emergente, continua atual. É sempre uma boa notícia saber que a esperança média de vida aumenta, no entanto os impactos desse aumento são consideráveis na economia e na sociedade. Para suportar o aumento do número de pensões pagas a cada reformado, devido ao aumento da esperança média de vida, é necessário gerar mais poupança na vida ativa. É importante ter produtos adequados às características da população e é muito importante aumentar a poupança dos particulares em Portugal.
O que são riscos universais e mais locais, mais portugueses?
Os riscos avaliados pelo atuário são, de um modo geral, universais. As características específicas de cada país levam a um apuramento diferente do custo desses riscos. Por exemplo, a mortalidade é distinta em cada país, levando a um custo distinto do mesmo seguro. Atendendo a essa diferença um determinado produto, não obrigatório, pode ser mais atrativo num país do que noutro. A literacia económica e financeira das populações é importante para a perceção da importância de contratação de seguros. A capacidade financeira das famílias é um fator chave na aquisição das coberturas opcionais.
É importante conhecer as eventuais barreiras existentes que originam o protection gap (existência de alguns riscos para os quais pode não existir implantação adequada e suficiente cobertura de seguros). A recente pandemia foi um caso de risco não suficientemente coberto. Os ciberataques, o envelhecimento da população são outros exemplos. Os acontecimentos climáticos extremos estão a aumentar a sua frequência. É importante disponibilizar, divulgar e chamar a atenção para a necessidade de aquisição de produtos de proteção contra esses acontecimentos (indivíduos e empresas).
O que está a faltar aos atuários em Portugal e no mundo?
Não há dúvida de que o papel do atuário na sociedade é muito relevante. A avaliação e quantificação do impacto financeiro de acontecimentos futuros é muito importante. Quer se fale de seguros, pensões, banca, saúde ou indústria de um modo geral.
Nalguns países o reconhecimento desta importância é maior do que noutros. Estados Unidos, Canadá, Brasil, Reino Unido, Alemanha, Itália, Espanha, França são alguns países em que a profissão é bem reconhecida.
A nível internacional a IAA dá apoio às associações profissionais para o desenvolvimento da profissão. Portugal está a meio termo. Temos uma associação profissional com código de conduta e que disponibiliza normas técnicas atuariais mas não uma ordem profissional. Com a implicação de que não é necessário ser membro da associação profissional para exercer a profissão.
Como está a formação na área de atuariado?
Temos duas universidades nacionais (FCT-NOVA e ISEG-UL) que disponibilizam mestrados que abrangem a maioria da formação exigida pela AAE (e IAA) para que os detentores do grau possam ser atuários no IAP e dessa forma abrangidos pelo Mutual Recognition Agreement para poderem ser reconhecidos como atuários nas associações membros da AAE. Existem outros cursos que têm unidades curriculares sobre temas de atuariado.
A profissão já vai sendo mais conhecida a nível nacional. Existem novos desafios para os atuários a nível mundial com os riscos emergentes. Há quem entenda que os analistas de dados poderão ser uma ameaça à profissão. Por outro lado, com as novas normas contabilísticas temos quase uma figura de atuário contabilista.
É definitivamente uma profissão que tem evoluído muito e que terá de continuar a adaptar e evoluir como todas as outras. A investigação académica, as novas tecnologias, a vontade de aprender e a resiliência dos atuários garantem que estamos cá para acompanhar os novos desafios.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Lourdes Afonso (IAP) : Riscos de clima, ciberataques e envelhecimento estão subsegurados
{{ noCommentsLabel }}