Micrologística “treme” com filas, entregas grátis e devoluções
Do trânsito para entrar nas cidades ao stress financeiro e operacional com entregas grátis e devoluções, aumento do comércio eletrónico está a colocar operadores logísticos e retalhistas sob pressão.
Na disrupção logística que teve início com a pandemia, todo o foco das autoridades políticas e da indústria foi colocado na montagem e na adaptação das chamadas cadeias longas, sobretudo pela excessiva dependência de alguns meios de transporte e determinadas regiões do globo. Em simultâneo, e mesmo com o crescimento dos movimentos associados ao comércio eletrónico, impulsionados igualmente pela Covid-19, “as cadeias mais micro acabaram por ficar esquecidas”, aponta Raul Magalhães, presidente da APLOG – Associação Portuguesa de Logística. Com a mudança de hábitos dos cidadãos, o responsável descreve “uma multiplicação de microcadeias nas cidades, o que coloca problemas novos” aos operadores.
E começam logo pelo “drama de entrar nas cidades”, com filas diárias no acesso aos principais centros urbanos. Humberto Cordeiro, diretor nacional de vendas da DPD em Portugal, pede aos autarcas uma “mudança radical no ordenamento do território”. Até porque, com os centros logísticos geralmente situados nas periferias, a aposta na mobilidade elétrica fica prejudicada: “25% ou 30% da autonomia dos veículos elétricos vai logo embora”. Até ao final do ano, cerca de 20% da frota utilizada pela empresa para a entrega das encomendas vai ser elétrica.
“Hoje sabemos que, para ter sucesso e manter a qualidade da entrega, precisamos de fazer a primeira entrega pelas 8h30. Se chegarmos às cidades às 9h30 fica tudo hipotecado. Temos de encontrar formas de estar mais próximos dos locais de entrega porque, ao final do dia, o cliente vai achar que estamos a prestar um mau serviço”, resume o responsável. A empresa englobada no grupo francês com o mesmo nome está apostada em expandir os pontos de proximidade, como as zonas de cacifos ou Click & Collect – em três anos conta dobrar as atuais mil localizações deste género que tem no país –, reclamando que estas “soluções mais sustentáveis não podem ser encaradas como o parente pobre” das entregas.
Enquanto na Europa, 35% a 40% das entregas são feitas em redes de proximidade, em Portugal não chega a metade dessa percentagem. Apesar de uma entrega num destes pontos reduzir em 90% as emissões poluentes associadas e custar 30% a menos do que se for feita em casa – esta tipicamente gera mais reclamações –, o porta-voz da DPD ainda ouve as empresas dizerem ‘não vou obrigar o meu cliente a deslocar-se para levantar uma encomenda’. “O raciocínio tem de mudar. Se informarmos as pessoas sobre as opções e lhes dermos a possibilidade de escolher, se calhar temos uma surpresa”, acrescenta, apontando as entregas gratuitas como outro tema “não só importante ou estratégico, mas crítico para a sustentabilidade das cidades e para a vida das pessoas”.
As soluções de entrega mais sustentáveis não podem ser encaradas como o parente pobre. Se informarmos as pessoas sobre as opções e lhes dermos a possibilidade de escolher, se calhar temos uma surpresa.
A espanhola Correos, que em 2019 comprou 51% da Rangel Expresso em Portugal, têm igualmente um serviço premium e outro standard, que é mais económico porque utiliza uma rede mais sustentável. Javier Garcia, subdiretor de planificação e processos, tenta fomentar o uso deste serviço mais sustentável através do preço, até porque “também é mais rentável” para a própria empresa. “As transportadoras não podem conseguir esse objetivo [da sustentabilidade] por si só, tem de ser com a ajuda dos nossos clientes. Temos de os educar. Querem rápido e gratuito, mas os clientes e destinatários têm de perceber que a logística não é gratuita e que as alternativas podem suportar custos associados”, sublinha.
O porta-voz da empresa pública espanhola, que esteve recentemente em Matosinhos para participar na conferência “As Cidades e a Logística”, promovida pela APLOG no Terminal de Cruzeiros do Porto de Leixões, relata igualmente que tem “muitas dificuldades” no acesso congestionado às cidades e no chamado last mile, que é aquela que acarreta mais despesa para as operações. O desafio passa por “manter o serviço de qualidade aos clientes, mas com eficiência de custos”, sendo que nos envios do e-commerce trabalha com “margens mínimas”. Também no caso das devoluções, a solução passa por “educar o cliente”.
Temos de educar o cliente no caso das devoluções, cobrando ao destinatário. Pode soar duro, mas talvez seja uma das medidas mais eficientes. A logística inversa come-nos muitas margens.
Como? “Cobrando ao destinatário. Pode soar duro, mas talvez seja uma das medidas mais eficientes. A logística inversa come-nos muitas margens. Estamos a procurar pontos de proximidade para reduzir os custos e ter uma logística mais sustentável, para conseguirmos manter as margens”, responde Javier Garcia. “Ir a casa de um cliente buscar um pacote aumenta o custo em 40%, face à rota normal. Altera a rota e não há efeito sinérgico da entrega. Além do problema do packaging e da integridade do artigo. Estamos a sensibilizar as empresas para a atenção a dar à qualidade do cartão e para o acondicionamento do produto”, concorda Humberto Cordeiro, diretor comercial da DPD em Portugal.
Retalhistas em “stress” com campanhas e stocks
Do lado dos retalhistas, em que a last mile é encarado como a ponte do iceberg em termos logísticos – antes disso já tiveram de lidar com os atrasos nos fornecimentos da Ásia ou com os custos dos contentores marítimos –, José Miranda, responsável pela área das entregas e cadeia de abastecimento na Leroy Merlin, conta que, ao fazerem inquéritos aos clientes, até dizem estar dispostos a pagar mais, se tiverem a certeza de que a entrega é sustentável. Porém, acabam a dar prioridade às entregas gratuitas, à rapidez e à opção mais barata. “É preciso uma consciência coletiva do impacto que isto tem na sustentabilidade e, por outro lado, que a sustentabilidade tem um custo”, resume.
As campanhas de free delivery aumentam 45% as vendas, mas depois temos um rasto de três a quatro semanas a tratar de devoluções e reclamações.
O gestor da marca especializada em artigos de bricolage, construção, decoração e jardim, que pertence ao grupo ADEO, calcula que as campanhas com entregas grátis aumentam as vendas em 45%, mas reconhece que “[põem] em stress a própria empresa e os parceiros de distribuição”. E defende que essa é uma matéria que deve ser regulamentada pelas autoridades nacionais. “Depois temos um rasto de três a quatro semanas a tratar de devoluções e reclamações. Durante um mês ou mais andamos a tentar arrumar as operações”, nota José Miranda.
Pedro Santos, diretor de e-commerce da Sonae MC, sustenta que o free delivery é “uma forma de, no limite, até desvalorizar o serviço” e que muitas vezes “o próprio preço [do produto] acaba por ser desvirtuado” para esconder esse custo. “Preferimos uma proposta transparente. Com várias propostas de valor, mais caro se for mais rápido”, completa o gestor nortenho. Já no caso das devoluções “é tudo mau: [há] custos de entrega e de recolha, custos de processo e zero vendas”.
Nas devoluções é tudo mau: há custos de entrega e de recolha, custos de processo e zero vendas.
Quanto à introdução de novas regras que abranjam o e-commerce, Pedro Santos sublinha que não tem “fantásticas experiências com a qualidade da regulação, que dificilmente tem em conta as particularidades de cada negócio”. E lembra o caso da legislação para reduzir os sacos de plástico no retalho, um material que diz ser “ótimo” na vertente da segurança alimentar. “Aumentar as caixas de correio para poderem receber pacotes era uma boa medida ao nível da regulamentação. Há várias outras que podem integrar o packaginge a forma de receção dos artigos”, contrapõe o líder do Continente Online.
No caso da Delta, a pandemia fez com que os restaurantes, cafés e hotéis passassem a comprar mais vezes e menos quantidades de cada vez, o que obrigou a mexer na cadeia que tinha montada. A diretora de operações, Raquel Santos, fala numa “mudança de paradigma” com estes clientes B2B (e que é já uma realidade a nível ibérico). Passou a operar num sistema de pré-venda com o objetivo de tentar obter economias de escala na distribuição, sabendo que “a eficiência no last mile é crítica”.
“Os clientes querem tudo para o minuto a seguir, mas temos de lhes lembrar o esforço financeiro e de sustentabilidade que isso traz”, destaca a gestora da Delta. E se anteriormente a regra eram as entregas mais curtas, em 12h a 24h, calcula que atualmente cerca de 90% das entregas no segmento Horeca são feitas num prazo de 48 horas. Para viabilizar essa mudança, Raquel Santos explica que o grupo do ramo alimentar está “a trabalhar junto dos clientes para haver uma otimização dos seus stocks” e, por outro, a afinar com a área comercial – introduzindo cada vez mais tecnologia – para ser mais eficiente nas rotas.
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