Inflação está a ter impacto “dramático” no setor da saúde. Podem existir ruturas de fornecimento

Diretor do Health Cluster Portugal defende medidas para acautelar ruturas de fornecimento. Saúde está a recuperar da pandemia e a ganhar peso, com exportações que já superam vinho e cortiça juntos.

O aumento de custos não está a ser fácil de acomodar para os hospitais e fornecedores do setor da saúde, o que pode mesmo levar a ruturas, alerta o diretor executivo da Health Cluster Portugal (HCP), em entrevista ao ECO. Joaquim Cunha avisa que são necessárias medidas para evitar que este impacto chegue aos utentes.

Esta situação surge num contexto em que o setor já está a recuperar da pandemia, apesar de terem ficado por aprender algumas lições, defende Joaquim Cunha, nomeadamente para a gestão do Serviço Nacional de Saúde (para o qual entende que poderá ser benéfica a criação da direção executiva), bem como para a articulação entre o público e o privado.

Mesmo tendo em conta os desafios, a saúde tem vindo a desenvolver-se e tem já um peso significativo na economia, sendo que o diretor do HCP adianta que o setor deve terminar este ano com exportações de medicamentos e dispositivos médicos no valor de dois mil milhões de euros, “mais do que a cortiça e o vinho juntos”.

Estamos a viver um período de inflação elevada, que já terá ultrapassado os dois dígitos. De que forma está a ter impacto no setor da saúde?

Está a afetar de forma dramática, sobretudo do lado dos fornecedores. O setor da saúde é um grande cliente, compra todos os dias milhares e milhões de euros de serviços, medicamentos e dispositivos médicos. O que estávamos habituados era uma inflação de 0,5% ou 1%, não era relevante nos últimos 10 ou 15 anos. Mas estes fornecedores são espremidos nos concursos que privilegiam sobretudo a escolha pelo preço mais baixo. Deveria haver uma maior ponderação com a qualidade do produto, mas tem sido pelo preço mais baixo e assim estão à pele, não há ali margem.

De um momento para o outro introduzir uma inflação de 7%, 8% ou 9% causa uma complicação terrível do lado dos fornecedores. Julgo que os hospitais têm dificuldade em acomodar eventuais ajustes de preço e isto a certa altura pode levar a situações de ruturas de fornecimento. Há áreas em que os preços estão a subir, os que contratam de novo, por exemplo, a eletricidade está a afetar de forma muito expressiva os orçamentos dos hospitais.

Podem existir situações de rutura de fornecimentos, que se não forem acauteladas podem ter consequências

Lembro-me das inflações a 20% e dos juros altos, com o crédito a habitação a ser de dois dígitos, mas foi há muitos anos. Desaprendemos a gerir com inflação e temos que voltar. Espero que seja um episodio transitório, mas pelo menos um ano ou dois vai estar por aí e não podemos assobiar e fazer de conta que nada está a acontecer. A saúde sendo um ator muito significativo, com um orçamento de 15 mil milhões de euros, tem um efeito relevante e é importante encontrarmos formas de responder sobretudo no curto prazo a este fenómeno.

As dificuldades que se estão a viver com o aumento de custos vão afetar os utentes?

Quero crer que não, mas se não houver a necessária ponderação deste fenómeno, no final do dia pode ter impacto nos utentes. Podem existir situações de rutura de fornecimentos, que se não forem acauteladas podem ter consequências. Acredito que haverá o bom senso de todas as partes para que tal não aconteça mas para isso é preciso agir. Não é assobiando para o lado, que não digo que é o que esteja a acontecer, que vai passar.

Esta situação surge depois de termos passado pela pandemia. Como se tem desenvolvido o setor da saúde depois da Covid-19?

Está perigosamente como se nada tivesse acontecido. A pandemia foi há muito pouco tempo e a maior parte das atividades estão-se a comportar como se nada tivesse acontecido. Por um lado é bom sinal, mas por outro não aprendemos algumas lições que devíamos ter aprendido. Admito que ainda o possamos vir a fazer mas não tenho grande esperança.

Mas todo o cluster da saúde, cadeia de valor está aparentemente numa atividade normal, isto sobretudo do lado mais a montante das indústrias e empresas que fornecem a saúde. Do lado da investigação e inovação também as coisas estão a beneficiar de um certo impulso e centralidade que a pandemia trouxe à saúde, colocou os holofotes e deu importância ao setor.

Do lado mais assistencial, todos sabemos que há alguns problemas estruturais no que toca ao sistema de saúde e em particular ao SNS. Temos uma boa novidade de encontrar uma forma de trazer mais gestão e coordenação e mais planeamento ao sistema.

Com a direção executiva do SNS?

Sim, ainda estamos a ver primeiros passos mas é um sinal auspicioso. No Health Cluster acreditamos nesta abordagem, estivemos de alguma forma na génese da mesma porque apresentamos há um ano e pouco proposta de instituto. Não foi bem isso que veio a ser criado mas estamos no bom sentido.

Ainda é cedo para avaliação mas é no bom sentido. Houve alguma pacificação do SNS, também está a haver uma reflexão sobre futuro e como podemos melhor gerir recursos disponíveis mas faço uma leitura positiva. Ainda que haja muito para fazer, a pandemia deixou para trás muita atividade que tem de ser retomada. Há um espírito, uma preocupação relativamente a trazer gestão e planeamento para pensar as coisas com a devida antecedências.

Quais são as lições que devíamos ter retirado da pandemia?

Vou-me colocar contra a corrente. As pessoas dizem que o sistema respondeu bem durante pandemia, que SNS demonstrou resiliência. Eu acho que não é verdade. O que aconteceu foi que os profissionais de saúde fizeram das tripas coração e aguentaram, note-se que menos bem nuns sítios que outros. E daqui deveríamos aprender que faltou planeamento, gestão. Pareceu que não existia coordenação.

Devíamos ter aprendido que a divisão artificial que foi muito vincada entre o público e privado não faz sentido.

O tempo passa e tendemos a esquecer, mas entretanto há um conjunto de indicadores muito preocupantes de atividade que não foi feita, foi adiada sobretudo nas áreas oncológicas e esse trabalho falhou.

Devíamos ter aprendido que a divisão artificial que foi muito vincada entre o público e privado não faz sentido. O que o cidadão quer é ter acesso em tempo útil aos serviços que precisa. No momento de crise em que era preciso juntar recursos, não fez sentido a divisão, que entretanto ainda bem que se deixou de se falar no tema, que é um bom indicador.

Como é feita a interação com o setor público? Tem existido? Podia ser mais forte?

Há um ano, a relação público-privada era algo demoníaco e hoje toda a gente acha que faz sentido. Tenho algumas ideias para o que se passou mas sobretudo acho que esta divisão é artificial. A gestão não é boa por ser privada e má por ser pública. Há gestão boa e má dos dois lados.

Entendo que quem tem responsabilidades na definição de políticas e praticas na saúde tem que olhar para o todo, não faz sentido não aproveitar ao máximo os recursos do lado público, agora a sua complementaridade com o que esta disponível no lado privado e também do lado social, parece-me sensato.

Foi a chave dos bons resultados que temos tido ao longo dos anos, existiu acordo tácito de regime entre os portugueses que permitiu esta harmonização forte e estruturante que é complementada por oferta privada e social. Vê-se o caso da ADSE, que é um contrassenso: temos SNS que é público, gerido pelos poderes públicos, mas os funcionários tem sistema diferente. Em resumo, é uma questão de bom senso e perante os recursos disponíveis usá-los da forma mais eficaz. Se hoje desativássemos a ADSE a carga sobre os serviços públicos de saúde iria paralisá-los. Aí que esta articulação é benéfica e faz sentido.

Há um tema que é frequentemente esquecido: os diferentes papéis que Estado tem. É financiador, prestador de cuidados e regulador. Relativamente ao primeiro e último não tenho dúvidas, enquanto financiador é o que constituição definiu e também não tenho dúvidas quanto ao papel do Estado regulador e fiscalizador. O Estado prestador não é essencial. Estes três chapéus que o Estado tem por vezes são conflituantes e podem gerar situações menos positivas para o resultado final.

Cabe aos responsáveis criar uma estrutura que responda da melhor forma e sobretudo não devemos ter barreiras ideológicas.

Em última analise, na saúde, a palavra mágica é o acesso ao serviço de saúde quando deles precisamos. Ao cidadão não importa se a gestão é pública ou privada, é se não vai ser impedido a ter acesso a meios por insuficiência de recursos financeiros. Cabe aos responsáveis criar uma estrutura que responda da melhor forma e sobretudo não devemos ter barreiras ideológicas. A articulação faz sentido, noutras geografias os modelos de organização de saúde são Bismarkianos, uma espécie de ADSE. Estou em crer que esta opção da escolha livre é algo que traz uma certa concorrência ou competição no bom sentido e eficácia ao sistema. Isto num tempo em que a pressão sobre os custos de saúde vai aumentar. Vamos querer mais e melhor, estamos a ficar mais velhos e temos a ambição de ter melhores cuidados disponíveis e os recursos vão sentir grande pressão e não são ilimitados.

Não podemos todos os anos dizer que vamos aumentar orçamento da saúde, há limites. Temos que nos focar no que temos e gerir da melhor forma e acredito na bondade do nosso sistema. Acredito que na Europa estamos a caminhar para sistemas mistos que passam por ter uma estrutura pública nuclear forte e toda uma rede bem oleada em que o papel do Estado tem muito de fiscalizador e regulador.

O novo ministro Manuel Pizarro poderá trazer maior articulação neste campo?

Não quero lançar à anterior ministra todas as culpas do que correu mal, foi toda uma conjugação de fatores que levou à hipervalorização da questão ideológica e equilíbrio das forças partidárias no Parlamento. A situação está ultrapassada e coincide com a mudança do rosto no ministério. Não tenho dúvidas que o doutor Pizarro estará em excelentes condições para tirar o melhor partido dos recursos que temos e retomar algum caminho que se perdeu pela conjugação da pandemia e o excesso de nevoeiro ideológico. Ambas estão dissipadas e há condições para trabalhar. Não julgo que haja medidas milagrosas, mas falta gestão, organização e planeamento e acredito que direção executiva possa trazer esta cultura para os diferentes atores e entidades.

Fernando Araújo tem o perfil ideal para CEO do SNS?

Sim, não tenho qualquer dúvida. Há um amplo consenso que a pessoa em causa reúne várias características fundamentais, é conhecedor de dossiers de mão na massa, tem experiência robusta da gestão e prática hospitalar, nos sítios por onde tem passado consegue gerar consensos e promover envolvimento de todas as partes. Consegue o equilíbrio muito interessante entre a responsabilização e a autonomia.

No Hospital São João, o mérito não é exclusivamente dele, já vem de outros responsáveis, mas há uma escola, prática e cultura de balancear a responsabilidade e autonomia. Para as pessoas, sobretudo em atividades que exigem muito, é importante perceberem e estarem envolvidas no que estão a fazer. Fernando Araújo é provavelmente a pessoa mais qualificada para esta atividade no momento, haveria outras mas faz parte da shortlist.

Não faz sentido o Estado não pagar a horas. Cria um efeito pernicioso na economia e na gestão, as entidades estão a elaborar preços a partir do princípio que não vão receber a tempo e horas

Como vê o OE2023 para a saúde?

Há dados conhecidos e outros não. Há mais dinheiro, isso em tese é positivo. Faço parte dos que acham que mais dinheiro não faz mal, mas a questão não é deitar dinheiro para problema. É importante que os recursos estejam disponíveis, sanear situações de dívida que hospitais e outras entidades do SNS que é uma coisa terceiro-mundista, não faz sentido o Estado não pagar a horas. Cria um efeito pernicioso na economia e na gestão, as entidades estão a elaborar preços a partir do princípio que não vão receber a tempo e horas. É um princípio elementar de boa gestão pagar a tempo e horas, facto de o OE trazer recursos nesse sentido é positivo.

No passado tivemos experiências pouco simpáticas no OE, por um lado com desorçamentação e por outro com cativações. De alguma forma viciam todo o exercício orçamental. No caso das suborçamentações, as verbas não estão previstas mas depois na 25º hora lá aparecem e isto não é a melhor forma de gerir, porque quem está no dia-a-dia com responsabilidades perde mais tempo com estas questões do que a gerir. E nas cativações há uma imagem bonita que depois não acontece. Há necessidades de investimento que precisam de ser urgentemente supridas. Continua a existir várias entidades que defendem que saúde ganharia em ter um exercício parecido com a Defesa, com orçamentos plurianuais, permitia gestão mais prudente e sensata e tirar melhor partido dos investimentos.

Fica também de fora perceber no OE qual a fatia que é da responsabilidade da direção executiva e qual não é, já que os contornos finais da orgânica ainda não está totalmente fechado e aí pode estar a chave de bons ou menos bons resultados.

Há o risco de trazer mais burocratização?

Parece-nos mal que se crie mais uma estrutura e se mantenham as outras, isto aumenta a burocracia. Faz sentido aligeirar a burocracia muito na linha da responsabilidade e autonomia. Considero que um gestor hospitalar atualmente é um mágico porque não tem instrumentos de gestão, não consegue motivar ou ter ferramentas de motivação para os recursos humanos. Piece de resistance do nosso SNS são as pessoas e não ter pessoas motivadas é meio caminho andado para o desastre.

Olhando para o setor como um todo, qual é o peso da saúde na economia? Como evoluiu?

Normalmente a saúde é notícia pelas más notícias. Há outro lado da saúde, enquanto motor de desenvolvimento da economia. É um setor que gera riqueza e emprego. Nas exportações, por exemplo, de medicamentos e dispositivos médicos produzidos pelas nossas indústrias da saúde, deverá fechar este ano num valor superior a 2 mil milhões de euros. A título de comparação, é mais do que a cortiça e o vinho juntos. Não tenho qualquer dúvida que a esmagadora maioria dos cidadãos não tem esta noção.

As exportações de medicamentos e dispositivos médicos produzidos pelas nossas indústrias da saúde deverão fechar este ano num valor superior a 2 mil milhões de euros. É mais do que a cortiça e o vinho juntos.

Outro indicador interessante é o emprego: deverão trabalhar na saúde nas componentes pública e privada, e assistencial e industrial, cerca de 400 mil pessoas. Isto é cerca de 8,5% do emprego nacional. É emprego qualificado e tem efeito relevante na nossa economia.

São dois exemplos de indicadores de que a saúde é um setor económico muito importante que só crescerá nos próximos anos. É verdade para Portugal e um pouco por todo o mundo.

A esperança média de vida evoluiu e está na casa dos 80 anos, no caso português é boa mas precisamos de melhorar a qualidade de vida nos últimos anos. Isto gera todo um setor relevantíssimo, que acredito que vai sofrer nos próximos anos evoluções drásticas. Vamos ter uma nova saúde, também aparece o nome da smart health, que é o casamento do conhecimento que já temos hoje com utilização das novas tecnologias. Os sistemas foram desenhados para responder aos episódios agudos, mas aquilo que hoje nos preocupa são os crónicos. Temos de estar ligados, o que nos vai trazer ganhos substanciais e também dar um empurrão à prevenção e à previsão.

Como está a correr a internacionalização do setor?

As exportações são sinal de dinâmica do setor. O que precisamos de trabalhar são as novas áreas e há um enorme potencial nas tecnologias. O mundo está na linha de partida e há um quadro de oportunidade muito interessante. No Health Cluster temos procurado puxar esta dinâmica e vamos ter mais de 20 empresas na Medica, em Dusseldorf na próxima semana, a maior feira de tecnologias em saúde. Temos estado noutros eventos e a fazer parte de várias iniciativas nesta área, nomeadamente ao nível europeu.

É muito por puxarmos por esta nova saúde, conjuntamente com as áreas mais tradicionais. Há um quadro positivo que permite alavancar esta ambição, porque temos bons cientistas, médicos, enfermeiros, auxiliares. E há o conhecimento que temos nas universidades, empresas e hospitais, que é de elevada qualidade e compara bem com o que existe nas outras geografias.

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