O que está em causa e quem serão os protagonistas da segunda comissão de inquérito à TAP
A companhia aérea volta a ser alvo do escrutínio do Parlamento, 23 anos depois. Também depois da implementação de um plano de reestruturação e com a privatização à vista.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à tutela política da gestão da TAP toma posse esta quarta-feira, com a indemnização paga a Alexandra Reis como mote, mas com o propósito mais vasto de avaliar o comportamento da gestão da TAP e as responsabilidades políticas do Governo.
Será a segunda CPI à companhia aérea em 23 anos, na altura também na sequência de auxílios de Estado, com a implementação de um plano de reestruturação e a perspetiva de venda do capital a privados, o que não será coincidência. Proposta pelo PSD e constituída no ano 2000, versou sobre a “Gestão da TAP desde o Plano Estratégico de Saneamento Económico e Financeiro (PESEF), bem como a organização e evolução do seu processo de privatização”.
Desta vez, a proposta, aprovada com as abstenções de PS e PCP, partiu do Bloco de Esquerda (BE) e nasceu da polémica sobre a indemnização de 500 mil euros paga a Alexandra Reis para deixar a administração executiva da TAP em fevereiro de 2022. Quatro meses depois, a gestora assumiu a presidência da NAV Portugal, nomeada pelo Ministério das Infraestruturas, saindo no início de dezembro para a Secretaria de Estado do Tesouro. Na véspera de Natal, o Correio da Manhã fez manchete com a compensação recebida da companhia aérea, o que levaria à sua demissão. Seguiu-se a saída do secretário de Estado das Infraestruturas e do Ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, abrindo uma crise no Governo.
O partido ainda liderado por Catarina Martins justifica a criação da CPI com a necessidade de “escrutínio das decisões que mantiveram um regime de privilégio na administração da TAP pública, que vigorou em paralelo com um plano de austeridade imposto aos trabalhadores”. As CPI têm sempre também um objetivo político, com cada partido a levar para a sala a sua agenda.
Com Fernando Medina na mira
Entre os pontos que o BE quer ver esclarecidos está “a qualidade da informação prestada ao acionista e o envolvimento dos decisores públicos na tomada de decisão na TAP, SGPS [a holding] e na TAP, S.A [dona da companhia aérea]”, bem como “as responsabilidades da tutela, quer do Ministério das Finanças quer do Ministério das Infraestruturas, nas decisões tomadas” na transportadora.
Afastado o anterior ministro das Infraestruturas, as atenções viram-se para Fernando Medina. Mesmo não sendo o titular das Finanças à altura, foi já o antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa quem escolheu Alexandra Reis para a secretaria de Estado do Tesouro. Os deputados quererão apurar até que ponto nas Finanças havia ou não informação sobre a indemnização de 500 mil euros, mesmo que só posteriormente. No debate sobre a CPI que teve lugar no início do mês no Parlamento, o deputado Hugo Carneiro, do PSD, atirou que “o único objetivo que o PS tem nesta discussão é salvar o ministro das Finanças, cuja autoridade política está diminuída”.
André Ventura, cujo partido fez uma proposta para uma CPI à TAP que acabou chumbada, também apontou baterias ao ministro das Finanças. “Nós não deixaremos passar em branco o papel de Fernando Medina neste processo. Fernando Medina tornou-se no ministro que não sabe absolutamente nada”.
O único objetivo que o PS tem nesta discussão é salvar o ministro das Finanças, cuja autoridade política está diminuída.
Mesmo estando já fora do Governo, Pedro Nuno Santos, apontado o mais provável sucessor de António Costa na liderança do PS, também estará debaixo de fogo. Depois de referir que só o seu secretário de Estado, Hugo Mendes, sabia da indemnização, o antigo ministro divulgou um comunicado a dizer que ao fazer a reconstituição da “fita do tempo” sobre o processo de cessação de contrato de Alexandra Reis encontrou uma mensagem de WhatsApp em que dá “anuência” ao pagamento.
Um dos pontos da CPI será “o processo e a natureza da nomeação de Alexandra Reis para o Conselho de Administração da NAV e a eventual conexão com o processo de saída do Conselho de Administração da TAP”, um dossiê conduzido pelo ministério de Pedro Nuno Santos.
Fernando Medina será chamado novamente ao Parlamento sobre este tema, mas agora no contexto da CPI. Pedro Nuno Santos, que suspendeu o cargo de deputado até julho, será confrontado pela primeira vez na AR, assim como o seu antigo secretário de Estado, Hugo Mendes e a própria Alexandra Reis. Os deputados quererão também chamar João Leão, ministro das Finanças à altura, bem como o secretário de Estado do Tesouro, Miguel Cruz. Estes dois últimos já vieram dizer publicamente que não tinham qualquer informação sobre a indemnização.
Gestão da TAP debaixo de fogo
Pela sala da comissão de inquérito passará também a administração da TAP. A CEO, Christine Ourmières-Widener, já foi ouvida na Comissão de Economia e Obras Públicas, a 19 de janeiro, e levará a lição estudada. Na altura, a presidente executiva da companhia aérea garantiu ter recebido a autorização para a indemnização a Alexandra Reis do secretário de Estado das Infraestruturas, “por escrito”.
Sobre a legislação aplicada, que pode ter contornado o Estatuto do Gestor Público e o facto de a saída ter sido comunicada como uma renúncia e não uma demissão, Christine Ourmières-Widener responsabilizou os escritórios de advogados que trataram do tema. O que, por certo, não impedirá os deputados de voltarem a pedir explicações detalhadas sobre a nomeação de Alexandre Reis e os restantes administradores, os termos da aplicação do respetivo enquadramento jurídico, os processos de desvinculação e a prática quanto a pagamentos indemnizatórios – tudo pontos que constam da proposta do BE aprovada pelo Parlamento.
A CEO da TAP será ainda confrontada sobre a qualidade da informação prestada ao acionista (o Estado), decisões que possam ter lesado os interesses da companhia ou as remunerações pagas aos membros dos órgãos sociais. Já depois de ter estado na Comissão de Economia e Obras Públicas, foi noticiado pelo Jornal Económico que Christine Ourmières-Widener pode receber um bónus entre 2,1 e 3 mil milhões de euros caso o plano de reestruturação da companhia seja bem-sucedido. Um valor que a gestora se recusou a divulgar aos deputados.
Além da presidente executiva, é muito provável que também seja chamado o presidente do conselho de administração da TAP, Manuel Beja, assim como o administrador financeiro, Gonçalo Pires, indicado pelas Finanças e que também não terá transmitido à tutela a indemnização paga a Alexandra Reis. Não é de excluir que a CPI também queira ouvir antigos e atuais membros da comissão de vencimentos da companhia área. Um dos elementos essenciais serão as conclusões da avaliação pedida pelo Governo à Inspeção-Geral de Finanças sobre o processo da saída da antiga administradora, ainda por revelar. Importante será também a avaliação legal em curso pela CMVM.
Antes mesmo da CPI já a direita em peso pedia a demissão da administração, que tem este ano a difícil tarefa de negociar novos acordos de empresa com os sindicatos e dar corpo à privatização.
Puxar a cassete atrás?
A CPI visa “avaliar o exercício da tutela política da gestão da TAP, SGPS, S.A. e da TAP, S.A., em particular no período entre 2020 e 2022, sob controlo público”, mas é possível que os deputados queiram puxar a cassete atrás, com o argumento de que para avaliar o processo que levou à nacionalização parcial em 2020 (e total já em 2022) é preciso recuar à privatização no final 2015, que colocaria 61% do capital nas mãos da Atlantic Gateway de David Neeleman e Humberto Pedrosa.
Um negócio polémico, já que os 226,75 milhões de dólares que a Atlantic Gateway usou na altura para capitalizar a companhia aérea vieram diretamente da Airbus, como indica uma análise legal da Serra Lopes Cortes Martins & Associados feita em agosto de 2022 para a companhia aérea e revelada pelo ECO. A quantia terá sido entregue em contrapartida de um negócio de leasing de 53 aviões pelo fabricante europeu, fechado pelo próprio David Neeleman, e que segundo os advogados pôs a companhia aérea a pagar a sua própria capitalização, violando o Código das Sociedades Comerciais.
O PCP entregou um aditamento à proposta do BE para que fossem incluídas as consequências da privatização da TAP decidida em 2015, nos governos de Passos Coelho, e as decisões da gestão tomadas desde novembro de 2015, em particular as que possam ter lesado o interesse público, e o papel da tutela em cada uma delas. Foi chumbado com os votos contra do PS, do BE e do Chega.
O PSD admitiu, na quinta-feira, recuar na fita do tempo. O líder da bancada parlamentar defendeu que “convém olhar não só para a privatização, mas para a reversão da privatização em 2016 e chamar também os responsáveis por essa reversão, o ex-ministro [do Planeamento e das Infraestruturas] Pedro Marques e o dr. Diogo Lacerda Machado [antigo administrador e próximo de António Costa]”. Miranda Sarmento disse que o partido irá “avaliar o melhor fórum” para estas audições — se no âmbito do inquérito pedido pelo BE se na comissão parlamentar de Economia. O líder do grupo parlamentar do PS prefere que a CPI se foque no âmbito que consta da proposta do BE, mas avaliará eventuais pedidos de audição sobre matérias anteriores.
Quem representa os partidos
A conferência de líderes realizada no dia 15 determinou que o PS terá nove deputados na CPI, o PSD quatro e os restantes quatro repartidos por Chega, Bloco de Esquerda, PCP e Iniciativa Liberal, todos com um.
A comissão será presidida pelo socialista Jorge Seguro Sanches, antigo secretário de Estado da Defesa e, antes, da Energia. O Público avançou a semana passada que pelo maior partido no Parlamento estarão Carlos Pereira (como coordenador do grupo parlamentar) Ana Paula Bernardo, Vera Brás, Bruno Aragão, Hugo Carvalho, Fátima Fonseca, Rita Madeira e Hugo Costa. Como suplentes entram Cristina Sousa e Miguel Matos.
O PSD leva Paulo Moniz (coordenador), Hugo Carneiro, Paulo Rios de Oliveira e Patrícia Dantas. João Barbosa de Melo e Hugo Oliveira são os suplentes. Filipe Melo será o deputado efetivo do Chega e Pedro Passanha o suplente. Pela Iniciativa Liberal estará Bernardo Blanco, como efetivo, e Carlos Guimarães Pinto será o suplente.
Mariana Mortágua, que tem já experiência acumulada de outras comissões de inquérito, será a deputada efetiva pelo Bloco de Esquerda. Pedro Filipe Soares é o suplente. Pelo PCP estará Bruno Dias, que tem sido o principal rosto do partido nas intervenções sobre a companhia aérea, sendo Duarte Alves o suplente. Livre e PAN não terão qualquer membro efetivo, o que foi contestado por Rui Tavares e Inês Sousa Real, respetivamente.
(notícia atualizada às 12h10 com informação dos deputados efetivos e suplentes de todos os partidos)
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