“O país não se muda com a marcação de uma reunião com o primeiro-ministro. O país muda, mudando a sociedade”

André Pinção Lucas é diretor executivo do Mais Liberdade e, em entrevista ao ECO, defende que a redução de IRS é uma obrigação moral, exige mais da sociedade civil e uma discussão que saia da "bolha".

Na semana em que se realiza mais um Campus da Liberdade, o terceiro, André Pinção Lucas explica em entrevista ao ECO as prioridades do Instituto Mais Liberdade. “Queremos mudar o país, queremos mudar o país também politicamente. O país não se muda com a marcação de uma reunião com o primeiro-ministro António Costa, ou com qualquer ministro. Eles já ouviram várias ideias, Da direita à esquerda, mais liberais, menos liberais. O país muda, mudando a sociedade. E é por isso que o país muda, fazendo ver a sociedade que determinadas políticas são mais eficazes do que as outras“.

Qual é o estado da liberdade em Portugal?

De facto, temos várias dimensões de liberdade e Portugal não se posiciona da mesma forma em todas elas. Simplificando, podemos ter aqui três dimensões: A liberdade económica, as liberdades civis e a liberdade política. Nas liberdades civis, é claramente onde estamos melhor posicionados a nível internacional, e existe mais ou menos um consenso nos estudos internacionais sobre a tolerância, tolerância às diferenças, onde as pessoas têm genericamente liberdade de expressão, etc. E estamos relativamente bem posicionados. Não quer dizer que não haja, não haja oportunidades, mas estamos genericamente bem posicionados, ainda que, aproveita para realçar, algumas das liberdades foram demasiado ameaçadas durante a pandemia.

E quais são as outras dimensões?

Na qualidade da Democracia, o eixo em que estamos a meio, entre as liberdades civis e as liberdades económicas. O conhecido estudo da The Economist diz que somos uma Democracia com falhas, o que não nos orgulha…

…sobretudo por causa da justiça.

Por causa da justiça e da corrupção, e as coisas estão mais ou menos ligadas. Uma justiça que tarda em reformar-se, que é lenta, que induz custos de contexto a todos os agentes, e isto afeta a liberdade económica e afasta possíveis investidores. E depois temos o tema da corrupção. A corrupção é algo muito difícil de avaliar, até porque sabemos que a maior parte da corrupção nunca chega a ser identificada…

…precisamente pela natureza do que estamos a falar.

Há estimativas, mas não passam de estimativas. Por isso, os principais indicadores sobre a corrupção costumam ser índices de perceção de corrupção que, muitas vezes, são criticados por serem apenas perceções. É verdade, mas a perceção é tão difícil como a realidade. A perceção induz comportamentos. Se a perceção é a de que os índices corrupção em Portugal são elevados, o investidor estrangeiro vai evitar investir ou vai colocar esses custos de contexto de um sistema que não funciona muito bem na sua avaliação. Isto também afasta as pessoas de votarem, porque não confiam. A realidade, não sabemos bem onde está, mas a perceção é de que Portugal, dentro do panorama europeu, é um país com várias fragilidades em termos de corrupção.

Este quadro cria os incentivos errados, de como é preciso contornar o sistema e contornar a legalidade para aceder, nomeadamente, a serviços públicos.

Normalizam-se estes atos como meio para conseguir que as coisas funcionem. Fala se muito do tema da habitação, da demora nos licenciamentos, o sistema das “cunhas” é muito comum nessas áreas. A sensação que a população tem é a de que o sistema não funciona e a única forma de ter resposta em tempo útil é saber se há um amigo… O ambiente de desconfiança começa aí e, depois, quando subimos um pouco no poder, as dimensões são diferentes, são outras…

E nas liberdades económicas? Há a perceção de liberdade económica, mas quando um país tem 20% da população pobre e uma carga fiscal das mais elevadas da OCDE, temos mesmo liberdade económica?

Quando comparamos Portugal no contexto europeu, temos uma grande fragilidade na nossa liberdade económica. Obviamente, se compararmos a nível internacional, há países muito menos desenvolvidos e com problemas bem mais graves, mas estamos inseridos num contexto diferente e temos benefício desse contexto…

…e nessa comparação?

No contexto europeu e até no contexto da OCDE, temos bastantes fragilidades. Temos dos salários mais baixos da Europa Ocidental, tanto os brutos como os líquidos são dos mais baixos. A liberdade passa pela mobilidade social, ou fraca mobilidade social quando comparamos com estes países…

…e degradou-se nos últimos anos?

Piorou, até porque esta inflação afeta sobretudo os mais pobres, os que vivem dos seus rendimentos. E é por isso que é tão importante, e agora fala-se tanto, do IRS, de reformar e reduzir o IRS. A escalada da inflação reduziu claramente o poder de compra, sobretudo daqueles que dependem dos seus rendimentos, que não têm outra forma de viver, e para quem a percentagem de compras de alimentação e de energia é maior. Isto afeta a desigualdade e reduz a capacidade de aspirarem à mobilidade social.

É necessário reduzir o IRS?

A redução do IRS é um ato de moralidade perante a sociedade e perante os mais pobres, classe média e média baixa. É fundamental devolver uma parte do poder de compra que esses segmentos perderem, tentar não hipotecar as aspirações que têm de poder crescer socialmente. Nós temos uma taxa máxima de IRS que é a sétima mais elevada dos países europeus da OCDE, mas mesmo quando olhamos para a taxa de IRS sobre o salário médio, temos a 12.ª entre os países europeus da OCDE. E estamos a comparar com os salários médios de outros países que são incomparáveis com os nossos [salários]…

…portanto, não é apenas por razões económicas?

Não é apenas económica. É uma questão moral, uma questão de combate às desigualdades, uma questão de garantir que a mobilidade social funciona melhor do que do que funciona atualmente.

As liberdades económicas são a dimensão onde estamos pior?

Não só… Mesmo quando olhamos para as empresas, aí o cenário é ainda pior. Temos uma taxa de IRC, a taxa máxima, que é a mais elevada dos países europeus da OCDE, e mesmo a taxa efectiva é a terceira mais elevada. E isto afasta investimento. É imperativo baixar a taxa de IRC estruturalmente. Fico contente que, nos últimos dias, se tenha falado tanto de IRS, mas tenho pena que quase nos tenhamos esquecido do IRC…

…e da despesa.

E da despesa, claro. Se o IRS tem um efeito imediato na recuperação do poder de compra, o IRC é o que pode permitir, de facto, aspirarmos a um crescimento económico muito superior. E basta olhar o exemplo da Irlanda. Eu percebo que muitos partidos queiram colocar o foco quase que exclusivamente no IRS, até porque dá mais votos do que apelar à reduão do IRC, Mas, por favor, precisamos de baixar o IRC.

O exemplo da Irlanda é muito citado, mas vale a pena falar de outros exemplos. Há liberdade económica em países nórdicos, por exemplo, que têm níveis de carga fiscal elevados, por exemplo a Suécia ou a Dinamarca. Portanto, a liberdade económica não se esgota nos impostos.

Não… E não podemos colocar a discussão independente do desenvolvimento económico dos países. Portugal não joga na mesma liga da Suécia, por isso a discussão é diferente e tem sido diferente. Portugal não tem os mesmos atrativos económicos que têm os países nórdicos. Nem Portugal, nem a Estónia, nem a Letónia, nem os países de Leste. Uma das grandes formas destes países competirem é baixarem significativamente o IRC. Não me preocuparia nada que Portugal crescesse tanto que tivesse as taxas [dos países nórdicos]… desde que tivéssemos o seu nível económico. Estamos em campeonatos diferentes. A forma de nos diferenciarmos é muito pela competitividade fiscal, não podemos continuar a tentar diferenciarmo-nos com os baixos salários. Não pode ser por aí.

Temos uma cultura em que os líderes, os decisores, não cultivam princípios de independência face ao Estado. Isso também não acaba por viciar o jogo e pôr em causa a liberdade económica?

Sem dúvida. O conceito da mobilidade social é tipicamente aplicado às famílias. Eu gosto de falar de outro conceito, que é a mobilidade empresarial, a capacidade de pequenas empresas poderem aspirar a ser grandes e as grandes empresas caírem, porque, entretanto, não conseguiram inovar. O nosso sistema, como está montado, está a travar totalmente a mobilidade empresarial. Temos um Estado demasiado grande, com demasiadas teias, uma economia e um tecido empresarial demasiado dependente dos subsídios dos fundos europeus…

…a maldição dos fundos europeus…

É isso… Isto, conjugado com um sistema fiscal altamente complexo, um sistema legislativo e leis também altamente complexas, que faz com que as maiores empresas tenham mais facilidade para se manterem.

Há incentivos ao crescimento, à consolidação, fusões e aquisições? Em Portugal, esse processo é difícil.

É difícil. Mas se tirássemos um bocado do Estado… temos mais de quatro mil taxas e taxinhas que, como disse, afeta de forma desproporcional as empresas, mais as mais pequenas, menos as maiores. Deixemos as empresas crescerem. Deixemos a economia funcionar para que as empresas possam aspirar a crescer. E isso é liberdade económica, lançar um pequeno negócio e ter condições para conseguir crescer, crescer, crescer, e não ter mil e um obstáculos pela frente. Os maiores são sempre os mesmos, com todo o respeito e importância que eles têm…

…a verdade é que são poucos.

…mas a máquina favorece os que lá estão e sempre estiveram. E aqui até podemos conjugar também outros fatores, como as portas giratórias com as grandes empresas, bastante criticáveis. Por isso, há um conjunto de fatores que beneficia os mesmos.

A sociedade civil também tem alguma coisa a fazer?

Tem, tem. A sociedade civil tem aqui um papel fundamental, de exigência até, para que as coisas mudem. O que noto é que, principalmente quando olhamos para os mais jovens, temos jovens que são muito movidos por determinadas causas, mas são politicamente pouco marcados ou ideologicamente menos marcados. Mais por causas, o que leva a que se foquem em duas ou três causas e há temas fundamentais que acabam por passar. Por isso, precisamos uma sociedade civil mais ativa, e esse é um dos problemas que temos em Portugal, mais independente. Toda a discussão política e de desenvolvimento da sociedade não pode nem deve ser um monopólio dos partidos. E mal será se for.

Falemos de duas áreas que são muito decisivas para a avaliação de liberdade. A liberdade de escolha na saúde e na educação. Como é que se protegem segmentos da população mais desfavorecidos, e que partem muito atrás, com base numa modelo de liberdade de escolha no acesso a educação e saúde? A mudança do Estado prestador para o Estado financiador.

O tema da liberdade na educação é fundamental e junta-se também com a melhoria da qualidade do sistema, porque uma coisa está ligada à outra. Qual é o contexto atual? Uma pessoa que nasça num bairro problemático, desfavorecido, com um baixo nível socioeconómico, está destinado, está quase condenado à pobreza, à marginalização. Porquê? Porque não tem escolha sobre a escola para onde vai, é a escola do bairro, é a escola onde os colegas são os mesmos do bairro, que já estão num contexto pouco favorecido. E será um milagre se conseguir sair daquela bolha. Mas tudo está montado para que fique na bolha, não pode escolher. Mesmo que os pais estejam dispostos a percorrer 20 ou 30 quilómetros para levar esse aluno para uma escola melhor, essa oportunidade não é dada. Por isso, temos aqui uma desigualdade muito grande nas liberdades, na educação. É fundamental, de facto, que consigamos montar um sistema, não sei se é através de cheques-ensino, mas um sistema que permita que uma pessoa possa escolher para onde é que a sua criança vai. Isso fomenta a concorrência entre escolas… Aquela escola do bairro não compete com ninguém, tem um monopólio naquele bairro porque tem os alunos garantidos naquele bairro, desde que haja uma taxa de natalidade suficiente.

E tem mesmo de os aceitar.

Exato. Não há concorrência. Precisamos de incutir mais no público os instrumentos que funcionam melhor no privado, e a concorrência é a melhor alavanca de crescimento e inovação. Se as escolas concorrerem pelos alunos e também pelo orçamento… O orçamento vai atrás dos alunos, o orçamento não está garantido, se [uma escola] tiver mais alunos, tem mais orçamento, tem menos alunos, tem menos orçamento. Se concorrem pelos alunos, se concorrerem pelos professores… A escola tem de ter maior autonomia…

Mas como se protegem, nesse modelo, os alunos que chegarem ao sistema em piores condições? Como se protegem esses alunos do risco de as escolas não os aceitarem? As escolas, as melhores, não criam barreiras à entrada a alunos menos favorecidos, precisamente aqueles que mais precisam da mobilidade social?

Haverá certamente várias formas de o conseguir… Mesmo nas escolas públicas, o Estado pode ter um conjunto de quotas para determinados alunos, para garantir que há uma diversidade social, mas nem estou tão preocupado com isso. Se houver esta concorrência, não significa que esses alunos entrem na melhor escola pública do país, vai permitir necessariamente que haja uma maior distribuição desses alunos por várias escolas, que as escolas compitam entre si, haverá sempre umas que estão num contexto muito favorável, mas não são essas que me preocupam. Acho muito que essas existam, eu não quero é que haja aquelas…

…as do quartil inferior?

Vamos aumentar a fasquia de baixo, vamos subir. Se subimos, perfeito, é por aí que vai passar. Inclusive, deixar que os alunos vão para as escolas privadas. O ensino público é bastante caro por razões de ineficiência, e também há que dizer que o sistema público tem de garantir o acesso a determinadas crianças com determinadas necessidades que faz crescer custo. Ainda assim, mesmo para o Estado, ficaria mais barato meter crianças em determinadas escolas escolas privadas. Na saúde não é diferente. De facto, já temos três milhões de pessoas com seguro privado de saúde. Podem escolher à vontade, podem ultrapassar as barreiras das filas de espera. E confesso que nestes últimos anos de governação, há três coisas que, para mim, claramente foram crimes políticos…

Quais?

Um foi os três mil milhões de euros injetados na TAP, o outro foi acabar com as Parcerias Público-Privadas na Saúde e, por fim, este programa do Mais Habitação, até por todos os sinais que dá aos cidadãos, mesmo que algumas medidas sejam muito inconsequentes no final do dia.

Aliás, já são consequentes mesmo não entrando em vigor…

Como o tema das casas devolutas. Não vai acontecer nada, mas a perceção induz mais uma vez a comportamentos nefastos para o objetivo que o Governo, supostamente, queria cumprir.

Vamos ao Instituto. Está a realizar mais um Campus da Liberdade. Que lições retira das iniciativas anteriores, dos encontros com jovens que querem discutir as liberdades?

É a nossa terceira edição e é muito interessante ver jovens que vêm de todo o país e com vários ‘backgrounds’ académicos, a maior parte deles ainda está a estudar, alguns já não, e com vontade de aprender, de se instruir civicamente. São jovens que querem ser mais ativos, alguns já o são, alguns já estão ligados a juventudes partidárias, associações, mas há muitos que não, querem os instrumentos para isso, e isso passa pelo conhecimento. Durante cinco dias temos uma parte mais teórica de pensamento liberal, de história, dos fundamentos, que conjugamos depois com questões mais práticas de como aplicar isso aos desafios que falamos.

Como é que o Instituto faz o acompanhamento dos resultados destes Campus? Os jovens regressam?

Alguns voltam, sim, aliás, alguns participaram nos três campos, e é interessante ouvir o ‘feedback’, eles próprios ajudam-nos a melhorar o Campus e mantemos contacto. Temos um grupo com os 150 participantes, e o objetivo de de facto continuar a acompanhá-los e envolve-los nas nossas iniciativas.

O Mais Liberdade é um instituto apartidário, financiado por privados e com uma missão muito clara, a promoção da liberdade. Um dos riscos apontados no início da fundação do instituto foi o “politicamente correto”. Como é que o Mais Liberdade tem combatido este risco?

Esta ligação aos jovens é uma forma de, eles próprios, nos pressionarem a evitar esse comodismo. Os jovens são mais irreverentes, são mais inovadores, naturalmente, pela idade, e não gostam nada desse comodismo. Gostam da diferença. O facto de estarmos muito envolvidos com os jovens e com muitas iniciativas serve exatamente para nos estimularem a agitar as águas. Temos tentado evitar, creio que bem, mas sou juiz em causa própria, temos tentado ter alguma irreverência que leve as pessoas a discutirem. Este tipo de organizações, por norma, está mais destinado ao fracasso do que ao sucesso. E porquê? Porque tendem a fechar-se numa bolha…

…a falar para os mesmos.

Nós temos um cariz liberal na organização, vamos falar para pessoas que também têm um pensamento liberal, mas aquilo não sai dali. Nós temos tentado sair daí, trabalhamos para as massas, até por um motivo: Queremos mudar o país, queremos mudar o país também politicamente. O país não se muda com a marcação de uma reunião com o Primeiro-Ministro António Costa, ou com qualquer ministro. Eles já ouviram várias ideias, Da direita à esquerda, mais liberais, menos liberais. O país muda, mudando a sociedade. E é por isso que o país muda, fazendo ver a sociedade que determinadas políticas são mais eficazes do que as outras. E isso não acontece se fechar num auditório um conjunto de intelectuais, um conjunto de membros muito restritos…

…e já todos pensam o mesmo…

..e saem dali satisfeitos porque os outros também pensam o mesmo. e na realidade vivem numa bolha porque aquilo não muda nada. Não… o que é que podemos fazer para mudar a sociedade? Por isso é que a nossa presença nas redes sociais é tão significativa, a população, quase todas, está lá, e conseguimos sair das bolhas, discute o que partilhamos, reflete, pode concordar mais ou menos. É por aí que as coisas mudam. Queremos chegar à sociedade, independentemente do seu nível socioeconómico, e não ser mais uma organização, muito gira, que funciona dentro de bolha, um conjunto de intelectuais todos convencidos que têm razão. Não é por aí que mudamos a sociedade.

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