Editorial

O populismo transformado em política

António Costa anunciou o fim do regime dos residentes não habituais sem qualquer avaliação dos resultados deste regime que atraiu dos mais qualificados para Portugal. Por puras razões partidárias.

Pressionado pelo terramoto social decorrente dos preços da habitação, o primeiro-ministro arranjou mais um bode expiatório (além dos empresários do alojamento local): O regime fiscal dos residentes não habituais vai acabar em 2024 e, portanto, não faltarão casas disponíveis a preços acessíveis para todos os portugueses…

Este regime dos residentes não habituais custou ao Estado 1.360 milhões de euros em despesa fiscal em 2022, revelou o Tribunal de Contas na análise à conta geral do Estado, logo no dia seguinte ao anúncio de Costa na entrevista à TVI . No contexto desta crise da habitação, este número é tão impressionante como falso, porque o que está aqui em causa é a chamada “despesa fiscal”, isto é, o que receberia o Estado destes contribuintes se tivesse um regime dito normal.

No entanto, isso pressupõe também que estes residentes não habituais estariam em Portugal se não existisse um regime fiscal mais favorável, um IRS de 20% em vez do ‘esbulho fiscal’ a que todos somos sujeitos para pagar a enorme máquina pública. Pior, o que é garantido é que o Estado deixa mesmo de ter a receita fiscal associada aos ditos aos contribuintes não habituais.

Portanto, esclarecida a mistificação sobre o que é esta “despesa fiscal”, uma classificação enganadora, poderia haver uma boa razão para acabar com este regime fiscal tão agressivo, mas o argumento de que a sua extinção servirá para resolver qualquer problema no acesso dos portugueses com um rendimento médio a uma habitação é puro populismo.

Como recordava há poucas semanas a economista Susana Peralta num artigo no Público, muito pertinente, não há avaliações sobre os resultados do regime, nem para o adotar nem, obviamente, para acabar com ele. É uma questão de fé. O que escreveu Susana Peralta aqui?

  • Em primeiro lugar, não sabemos que efeitos positivos elas têm na economia que os recebe. No caso português, nem sequer sabemos onde trabalham, se o fazem no contexto de uma empresa, onde a sua experiência profissional pode criar valor para os colegas, que tipo de empresas e de que dimensão, em que sectores – nada! Aliás, não fazemos ideia de quantos efetivamente trabalham. Não sabemos, igualmente, se investiram na economia portuguesa e em que sectores, para além do imobiliário (…)
  • O nosso conhecimento dos efeitos negativos é igualmente inexistente. É altamente provável que encareçam as casas, mas nem para isto temos um número que se aproveite. A estatística do preço por metro quadrado (50% superior quando pago por não residentes) não diz diretamente respeito aos residentes não habituais. É bastante provável, também, que encareçam vários serviços não transacionáveis (isto é, com preços determinados pela procura local, como a restauração), o que é uma má notícia para quem os consome e uma ótima notícia para quem os vende. Nada disto está minimamente estudado“.

Basicamente, sabemos muito pouco sobre um regime criado em 2009 que tem por objetivo atrair os mais qualificados dos mais qualificados — estrangeiros ou portugueses que não residam em Portugal nos cinco anos anteriores.

Além disso, a ideia de que os residentes não habituais são “ricos” ou até “milionários” é também uma espécie de ‘achómetro’. Haverá de tudo, mas também serão muitos os casos de quadros superiores que decidiram regressar a Portugal por causa deste regime, profissões especializadas e de alto valor acrescentado.

Mais uma vez, o desconhecimento sobre os resultados dos residentes não habituais poderia ser um bom argumento para decidir o seu fim, mas não foi isso que disse António Costa na entrevista à TVI. Se numa primeira fase foi importante para captar rendimentos, agora “já não faz sentido”, disse o primeiro-ministro. “Era uma forma enviesada de continuarmos a inflacionar o mercado da habitação”, acrescentou. Só falta mesmo explicar que números tem para provar o impacto dos residentes não habituais no custo da habitação — algum terá, claro — e especialmente se o fim do regime vai criar mais oferta disponível e se isso permitirá baixar o custo final dos imóveis.

Segundo os dados do Tribunal de Contas, cerca de 430 milhões do total da despesa fiscal dizem respeito a um conjunto de 50 contribuintes. De entre eles, estarão seguramente futebolistas com salários mesmo milionários (e não daqueles que são milionários para efeitos fiscais em Portugal…), portanto, o primeiro-ministro até poderia considerar que há argumentos morais para acabar com o regime. Borlas fiscais num país esmagado por impostos, mas isso não poderia ser admitido. É mais fácil usar a habitação como desculpa, juntar-se assim, cinicamente, aos manifestantes que foram para a rua no passado sábado para não perder votos por causa de uma crise social.

No entanto, é no mínimo uma trágica ironia: Portugal tem poucos fatores distintivos e de atração de capital e talento, os instrumentos fiscais são dos mais eficazes. Mas no momento em que estamos a perder os melhores alunos, os jovens mais qualificados, para a emigração, vamos acabar com o regime dos residentes não habituais, que servia para atrair os que já tinham saído. Sem avaliações que se conheçam, apenas como pretexto do primeiro-ministro para mostrar que está a fazer alguma coisa pela habitação… oito anos depois.

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