Estudo questiona necessidade do euro digital e aponta riscos

Relatório aponta preocupação com o impacto na estabilidade financeira, na sobrevivência dos atuais operadores de pagamentos ou na privacidade dos utilizadores.

O euro digital acarreta riscos para o sistema bancário e de pagamentos europeu se não for desenhado da maneira correta, aponta um estudo do Centre for European Policy Studies, que ouviu operadores do setor financeiro. Para ser um sucesso, o novo sistema tem de trazer uma “proposta de valor convincente e benefícios claros para os consumidores e comerciantes”.

“Os objetivos do euro digital ou não acrescentam valor a um sistema de pagamentos já eficiente e em constante desenvolvimento, ou estão mal definidos e não são bem justificados, ou a sua relevância para a Europa é limitada e existem formas alternativas de os alcançar“, conclui o estudo “A digital euro beyond impulseThink twice, act once“, realizado pelo Centre for European Policy Studies (CEPS) o European Capital Markets Institute e o European Credit Research Institute.

Um dos objetivos do BCE com esta iniciativa é contribuir para a autonomia estratégica da Europa, tendo em conta que os pagamentos transfronteiriços são dominados por dois operadores norte-americanos: Visa e Mastercard.

Segundo o estudo, aquele objetivo pode ser atingido sem a emissão do euro digital. “Em toda a Zona Euro, já existem sistemas domésticos bem-sucedidos, que fornecem pagamentos instantâneos alternativos aos cartões internacionais. Fomentar a interoperabilidade entre os sistemas existentes – que aspiram a ser o novo normal – seria uma via alternativa, em vez de estabelecer uma nova forma de dinheiro e um sistema de pagamentos para processar transações”.

Defende ainda que existe “o risco de anular as soluções privadas europeias ou falhar na articulação de uma proposta de valor para os consumidores, o que afetaria a concorrência e reduziria a adoção, ao mesmo tempo que falharia no objetivo de desafiar o domínio dos sistemas internacionais de cartões”, aponta o relatório, que resulta dos debates dos membros da “Round Table on the Digital Euro”, onde participaram representantes da banca, dos sistemas de pagamento, do comércio eletrónico e académicos.

Em 10 ou 15 anos podemos ter um sistema que mata todas as outras formas de pagamento. É preciso ter cuidado para que no desenho do euro digital seja tido em conta o contexto atual de sistemas de pagamento.

Karel Lannoo

CEO do Centre for European Policy Studies

Uma preocupação salientada por Karel Lannoo, presidente-executivo do CEPS. “Em 10 ou 15 anos podemos ter um sistema que mata todas as outras formas de pagamento. É preciso ter cuidado para que no desenho do euro digital seja tido em conta o contexto atual de sistemas de pagamento”, alertou numa conferência de imprensa de apresentação do estudo, realizada esta quinta-feira nas instalações da SIBS, em Lisboa.

Para o responsável “a Europa já tem um sistema de pagamentos muito eficiente. É preciso ter uma visão clara das vantagens adicionais para os consumidores. O BCE tem de explicar melhor qual a proposta de valor“, desafia. Esta é, de resto, uma das sete recomendações deixadas pelo estudo, que contou com Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Bancos e Teresa Mesquita, chief product officer da SIBS, nas mesas redondas de debate.

Outro objetivo do BCE é robustecer o euro como âncora da política monetária. O estudo argumenta que as transferências entre bancos e as grandes transações comerciais usam o sistema TARGET2, do BCE, o que já ancora o sistema ao banco central. “Uma forte âncora monetária já está presente mesmo sem o euro digital para o retalho“, alega. Sobre o papel do euro como unidade de conta e meio de pagamento, “o fator determinante é a estabilidade do valor da divisa”, o que é assegurado pela política monetária.

O euro digital suscita também questões sobre a estabilidade financeira. Os consumidores vão passar a ter uma conta direta junto do BCE, com dinheiro numa divisa de curso legal, pelo que pode ser percecionada como mais segura do que ter depósitos num banco. Razão porque será introduzido um limite ao valor em euros digitais que se poderá ter na conta, sendo atualmente apontada a quantia de 3.000 euros.

É necessário garantir que o euro digital não tem consequências em termos de estabilidade e previsibilidade no financiamento da banca e não prejudica o fluxo de crédito para a economia.

Se houver uma crise como a que tivemos há 15 anos, as pessoas quererão pôr todo o seu dinheiro no BCE“, refere Karel Lannoo. “Se de um dia para o outro deixa de haver um limite, matam o sistema bancário porque todo o dinheiro sai dos depósitos para o banco central”, acrescenta. “É necessário garantir que o euro digital não tem consequências em termos de estabilidade e previsibilidade no financiamento da banca e não prejudica o fluxo de crédito para a economia”, aponta o estudo.

O limite faz, por isso, sentido. Mas falta explicar porquê 3.000 euros e não outro montante, aponta Karel Lannoo. Essa é, de resto, outra das recomendações do relatório.

A preocupação com o sistema bancário e de pagamentos estende-se ao impacto sobre a rentabilidade dos operadores privados. “Considera-se que os principais serviços providenciados são gratuitos para os utilizadores individuais. Isto pode criar custos adicionais para os intermediários, afetando a sua rentabilidade e capacidade concorrencial“, alerta o estudo, apelando a que sejam garantidos modelos de negócio sustentáveis e seja promovida a eficiência.

“Deve ser realizada uma análise de custo-benefício holística sobre o impacto de introduzir o euro digital nos atuais agentes do mercado, incluindo as infraestruturas bancárias e de pagamentos”, recomenda-se.

A privacidade foi outro tema abordado. “Estar totalmente digitalizado significa controlo total. A partir do momento em que uma coisa é digitalizada pode ser rastreada”, afirma Karel Lanoo. “Os consumidores poderão não querer usar o euro digital para que o ‘Big Brother’ não saiba o que andam a fazer“, acrescenta. “Questiono-me se estaremos totalmente protegidos”.

A partir do momento em que uma coisa é digitalizada pode ser rastreada. Os consumidores poderão não querer usar o euro digital para que o ‘Big Brother’ não saiba o que andam a fazer.

Karel Lannoo

Presidente executivo do CEPS

Segundo um inquérito do BCE, 43% dos inquiridos consideraram a privacidade como a característica que mais esperavam de um euro digital. O banco central garante que será responsável pela liquidação das transações mas que a informação sobre o cliente ficará apenas no banco ou fornecedor do sistema de pagamento.

Além da versão online, o euro digital deverá ter também uma offline, através de um cartão. Poderá também ser criada uma carteira digital custodiada pelos próprio clientes, através de uma chave que ele só conhece. Características que, segundo o estudo, permitiriam reforçar a privacidade na utilização do euro digital, um tema muito relevante em países como a Alemanha e a Áustria, onde existe maior resistência à nova moeda do BCE, segundo Karel Lannoo.

A versão offline poderia também reforçar a inclusão financeira, relevante para países como Portugal, que tem uma das taxas mais elevadas de população sem conta bancária: 7%.

Ainda que veja vantagens, o relatório conclui que “alguns dos potenciais benefícios de um euro digital (por exemplo, em termos de custos, liquidação, privacidade e inovação) são altamente dependentes das suas características específicas de concepção e apresentam um conjunto de complexidades que são difíceis de implementar”.

Depois de dois anos em estudos, o euro digital passou em outubro para a fase de preparação. Karel Lannoo não tem dúvidas de que o processo vai avançar, podendo estar concluído dentro de três anos. Falta também concluir o processo legislativo na União Europeia que irá dar ao euro digital a força de uma divisa com curso legal, tal como as moedas e notas.

“Para garantir uma adoção generalizada, o euro digital deve oferecer uma proposta de valor convincente e benefícios claros para os consumidores e comerciantes na União Europeia, enquanto o quadro legislativo da UE deve permitir que esses benefícios emerjam”, conclui o estudo. “Comecem com um euro digital o mais simples possível e que inclui apenas as funcionalidades mais básicas”, recomenda.

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