Consolidação na indústria? “Organizar a casa do outro é sempre mais fácil”

José Manuel Ferreira quer ver os empresários mais abertos a ceder controlo dos negócios e juntar-se em projetos de maior dimensão. Tentativas do líder da Valérius caíram por terra ao fim de três dias.

Em entrevista ao ECO, José Manuel Ferreira, presidente da Valérius, sublinha que os empresários portugueses “têm de perceber que o bolso deles não é o bolso da empresa”, e, portanto, precisam de estar mais disponíveis para ceder o controlo da totalidade ou de parte do negócio para que os projetos têxteis possam ganhar escala e competir em melhores condições à escala internacional.

Com as empresas nacionais descapitalizadas – “e normalmente quando o capital não é nosso, a empresa também praticamente não é de ninguém”, ressalva –, o empresário de Barcelos, conhecido por ter recuperado várias empresas em dificuldades, defende que os fundos comunitários deviam privilegiar a criação ou a compra de marcas, em vez de estarem orientados apenas para a compra de equipamentos.

Qual devia ser a prioridade estratégica para o setor têxtil?

A primeira coisa de que o setor precisa – e dizem-me sempre que não é possível – é fazer algo na parte das marcas. Portugal tem de deixar de ser só um país competitivo e produtor de produtos para as outras marcas. Mais dia, menos dia, isto vai acontecer porque não é possível mantermos toda a gente ao nível da produção. Um país tem de ter uma marca de produtos ou ser reconhecido num tipo de produtos. Só o fator preço não chega. Isto de vivermos sempre da competitividade da mão-de-obra vai ter tendência a acabar. Em Espanha acabou quando o salário mínimo atingiu os 900 euros. Quem vai à nossa frente e quem já passou por lá sabe que vai haver [aqui] o mesmo problema.

Há um limite, há um target de preço para os clientes conseguirem aguentar ou mudam de mercado. E só podemos aguentar este setor com as competências que hoje tem se conseguirmos subir na cadeia de valor. A indústria têxtil em Espanha quase que arrumou há quatro ou cinco anos. A diferença é que nessa altura não havia inflação de custos em todos os países. Na Turquia, com tudo, o salário já ronda os mil euros; o nosso ronda os 1.400 a 1.500 euros.

Essa conversa da criação de marcas já se ouve há décadas e Portugal não consegue descolar nesse domínio.

Pois não. Os quadros comunitários não estão vocacionados para que as empresas façam marcas, mas para que comprem equipamentos. E com a compra de equipamentos só estamos a ajudar alguns países, como a Alemanha, Itália ou França. É só inverter: em vez de haver projetos para comprar equipamentos, haver projetos para fomentar marcas ou comprar marcas lá fora. As marcas portuguesas não têm expressão global nem temos know-how na criação de marcas. Mas há quem saiba fazê-lo no mercado internacional. Há pessoas que sabem fazê-lo e que custam muito dinheiro, e as empresas portuguesas não têm condições de pagar salários para comprarem esse know-how. Os fundos comunitários podiam ser direcionados para isso.

Os quadros comunitários estão vocacionados para as empresas comprarem equipamentos. Em vez disso, devia haver projetos para fomentar marcas ou comprar marcas lá fora.

O setor têxtil português não precisava de um movimento de consolidação, como outros setores?

Claro que precisava. Mas isso é como a gente dizer que vai organizar a casa do outro. É mais fácil do que organizar a nossa casa, não é? [risos] Neste momento, as empresas que não tenham alguma estratégia de ter dimensão estão com um problema. E podem ganhá-la por aquisição ou por junção. Mas é muito complexo. As empresas em Portugal são muito familiares, vieram dos pais para os filhos ou são detidas por um antigo comercial… Quem poderia fazer essa fusão eram fundos de investimento, que normalmente não têm emoção. Um empresário está comprometido emocionalmente com o projeto, por muito que queira ser racional. E depois há um compromisso de família.

Já tentámos juntar com uma empresa de meias, uma de têxteis-lar, setores diferentes e propor um projeto conjunto, com esta oferta toda, cada um com as suas competências. Nós já tentámos isso, mas dura mais ou menos 24 horas, no máximo 72 horas. Antes de casar é preciso namorar e o problema começa logo nos primeiros dias de namoro. Em Portugal queremos sempre saber quem é o dono do negócio, quem é o líder.

Acha que essa consolidação vai então fazer-se em condições menos vantajosas, numa altura de maior aperto?

Sim. Quando só um tem um problema, nunca se resolve. Quando mais do que um tem um problema é mais fácil chegar a um acordo para resolver problema. Acredito que, mais dia ou menos dia, vai acontecer. Não sei é quando. É muito complexo, mas se calhar também dizem o mesmo de mim. Falta uma estratégia para o setor a dez anos. Se todos os dias temos de pensar numa estratégia, o futuro acaba por ser pequeno.

E também neste setor as empresas estão muito descapitalizadas.

Esse é o maior problema. As empresas em Portugal não nasceram primeiro com o dinheiro e depois com o projeto. Primeiro nasceu o projeto, foi buscar o dinheiro aos bancos que acreditavam no projeto e foram capitalizando com dinheiro que também não é dos empresários. Porque nós aqui não temos famílias com capacidade de pegar numa quantidade de dinheiro e metê-lo num projeto. As empresas nasceram sem dinheiro, descapitalizadas. E normalmente quando o capital não é nosso, a empresa também praticamente não é de ninguém. Está bem se tiver bons resultados e bom rating. Uma empresa dizer que tem ou não tem dinheiro é muito complexo. Porque a verdade é que uma empresa que tenha 150 ou 200 pessoas, se tiver um problema, ela rapidamente destrói muito dinheiro. E os empresários não quererem abdicar do controlo da empresa também não ajuda.

Tem um projeto de recapitalização com o Banco Português de Fomento (BPF). Como avalia a interação com essa nova instituição?

Temos a Valérius 360, uma unidade em Vila do Conde onde fizemos um investimento de 20 milhões de euros. Nesta fase, a criança ainda gatinha e temos de a pôr a andar. No fundo, tornar este projeto mais fácil de alongar no tempo. É uma questão de dinheiro, de financiamento. Porque a banca comercial depende muito das garantias do BPF. Está viciada. Neste momento, o Banco de Fomento está dinâmico. Demorou a arrancar, isso é verdade, mas esta nova dinâmica pode ajudar as empresas. Havia duas janelas de investimento e estamos numa delas com um coinvestidor industrial, um parceiro nacional. Não me importo de perder a independência, o controlo da empresa, desde que tenha ao meu lado pessoas capazes de pensar no futuro. Os empresários têm de perceber que o bolso deles não é o bolso da empresa. As empresas têm de ter uma gestão muito profissional.

José Manuel Ferreira, presidente do grupo Valérius, em entrevista ao ECO - 24OUT23
José Manuel Ferreira, presidente da Valérius, em entrevista ao ECORicardo Castelo/ECO

Olhou com alguma atenção para a proposta de Orçamento do Estado para 2024?

Sinceramente, tento abster-me. O que acontece no Orçamento do Estado, desde que não prejudique as empresas e tenha uma perspetiva para as pessoas… A verdade é que vivemos no mercado externo, do que conseguimos trabalhar lá fora. Digo muitas vezes que sou mais emigrante que nacional.

Mas paga impostos aqui. Está confortável com a taxa de IRC?

As empresas que façam investimentos não pagam o mesmo IRC. Temos de ver a taxa média. Agora, uma empresa que nunca investiu nada, que ganha muito dinheiro, que não tem custos, não tem investimentos, tem de pagar uma taxa [maior]. Há quem com poucas pessoas faça muito dinheiro. E não tem risco nenhum. Não pode ser por tabela. Empresas que reinvistam os seus ganhos para pôr a empresa mais moderna têm de ter benefícios fiscais. A tabela de benefícios fiscais não é perfeita, mas há dois tipos de empresas. Ou pega no dinheiro e reinveste para pôr a empresa mais em cima, ou pega no dinheiro e retira-o da empresa. No primeiro caso, não quer dizer que a taxa seja baixa, mas tenho essa experiência: uma empresa que investe o que ganhou paga uma taxa média de IRC que é razoável.

O problema é que temos um país dentro do país. Os empresários que vão ficar aqui quando tiverem problemas nas suas empresas são os portugueses. Uma empresa estrangeira a qualquer momento desloca-se e vai embora. São nómadas. Se perceberem um dia que não estão confortáveis, vão embora. O Estado português tem de acarinhar os projetos portugueses porque são os que têm mais sustentabilidade. Por vezes vemos grupos [estrangeiros] anunciarem que meteram lá centenas de engenheiros, mas as empresas médias precisavam desses quadros, que podiam dar um input diferente, e não têm as mesmas condições para lhes pagar.

Uma empresa que reinveste o que ganhou paga em Portugal uma taxa média de IRC que é razoável.

Antecipa uma subida da instabilidade social?

Vemos que o país está todo em greve. Os únicos que não estão em greve são os empresários e os trabalhadores das empresas privadas. É verdade que os nossos trabalhadores têm salários baixos e estão a pagar centenas de euros a mais pelo empréstimo da casa, é uma loucura. Se pensarmos nas pessoas que trabalham connosco, na verdade elas também deviam fazer greve. O que acontece é que não temos a capacidade de ser fechados. É complexo.

Está a dizer que a greve é um “luxo” da Função Pública?

De fazer essas coisas, digo eu. Acredito que os médicos, os enfermeiros e os professores ganham mal. Toda a gente ganha mal. Mas os nossos trabalhadores também ganham mal. Não sou político, mas tem de haver aqui bom senso a negociar. O radicalismo nunca resolveu nada. Se temos aqui um problema com os nossos trabalhadores, tentamos falar com eles.

Gosta do título de especialista em recuperação de empresas em dificuldades?

Não é muito bom [risos]. Tivemos uma época em que era possível fazer o que fizemos. Mas nem todas as recuperações tiveram sucesso, nem todas correram bem. Mas como temos uma equipa de gestão muito concentrada no controlo, a emoção é menor. Olhamos para os negócios e vemos o que é preciso fazer para eles voltarem a andar.

Mas hoje teria menos condições para entrar em alguns desses processos?

Sim. O problema disto é que nós, portugueses, somos relativamente bons a copiar. O custo da aquisição é muito importante para a recuperação. Temos de fazer como aconteceu no Novobanco: o que é bom segue para a frente, o que é mau… Foi o que fizemos com a Dielmar: ‘isto é o que é possível aproveitar, o resto não é possível’. Mas não precisa de desaparecer tudo. Agora, se uma empresa mete um PER [Processo Especial de Revitalização] e a banca sai, se não tem recursos com eles, como é que um empresário vai recuperar a empresa? Se entrou em default, ninguém lhe vai emprestar dinheiro. Isso é um milagre. Não existe.

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