“À beira do que está agora a acontecer no têxtil, pandemia foi uma pequena dor de cabeça”

José Manuel Ferreira, presidente da Valérius, reconhece o momento “complicado” numa indústria que tem de manter o emprego. “Se começar a entrar em pânico e dispensar pessoas, o têxtil pode colapsar."

O presidente da Valérius, uma das principais empresas portuguesas da indústria têxtil, produtora de vestuário para grandes grupos internacionais, como a H&M ou a Aeffe (Moschino), traça um retrato sombrio do atual momento do setor, ilustrando, em entrevista ao ECO, que até faz o anterior período crítico da pandemia da Covid-19 parecer “uma pequena dor de cabeça”. Nos primeiros nove meses de 2023, as exportações do setor caíram 6% em valor (para 4.408 milhões de euros) e 12% em volume, face a igual período do ano anterior.

O empresário minhoto, que pôs a Dielmar a dar lucro depois da falência, dramatiza a manutenção dos postos de trabalho num setor que depende 80% de pessoas e 20% de máquinas. “Se começamos a entrar em pânico e a dispensar pessoas, o têxtil pode colapsar”, adverte. Um inquérito recente realizado pela associação do setor (ATP) mostrou que quase metade das empresas está a cortar no emprego e a maioria a perder vendas na reta final do ano.

Como descreve o atual momento da indústria têxtil em Portugal, partindo do vosso negócio?

Faturámos 38 milhões de euros em 2022 e em novembro do ano passado fizemos uma previsão de crescimento de 20% para 2023, mas devemos ficar pelo mesmo volume de vendas. O setor começou a arrefecer no final do ano passado com a subida das taxas de juro e devido aos custos da energia. Os clientes não estão a sair de Portugal, mas a reduzir os seus forecasts entre 20% a 30% a nível global, o que é muito para um setor de mão-de-obra intensiva e que tem de colocar trabalho todos os dias nas fábricas para produzir.

É muito complexo. Porque uma coisa é desligar uma máquina; outra coisa é desligar pessoas — e não conseguimos desligar pessoas porque todas elas ao final do mês têm de atender aos seus compromissos. O têxtil depende 80% de pessoas e 20% de máquinas.

Como se estão a ajustar a isso?

Está a ser muito complicado. Um avião com um ou dois problemas não cai, mas com quatro já pode cair. O têxtil enfrenta neste momento um problema de redução do consumo a nível global devido às taxas de juros e à inflação. O mercado encolheu e ainda se está a ajustar. Não sabemos onde é o fim. E temos de nos ajustar ao mercado. Nós subcontratamos muito, mas há sempre alguém que no meio desta cadeia vai ficar mal porque não vai ter trabalho para manter o nível [de emprego]. Desde 2015, depois da troika, as empresas equiparam-se, tornaram-se mais capazes de fazer mais coisas diferentes, com mais valor acrescentado, e estavam preparadas para o setor continuar a crescer. Depois, em 2020, veio a pandemia. Mas à beira do que está agora [a acontecer], a pandemia foi uma pequena dor de cabeça.

O cenário hoje é mais assustador para as empresas?

É mais perigoso. Os empresários estão habituados a viver em cenários adversos e a serem resilientes, mas a verdade é que os indicadores e a informação que temos não são bons. O setor fez investimentos, as empresas hoje estão muito bem equipadas, mas como não temos marcas próprias, não dominamos o mercado e estamos completamente dependentes do que acontece nas marcas globais e sujeitos a este ajustamento. Quanto mais empurramos o nosso cliente à compra, mais risco temos depois que ele não pague. Está tudo a acontecer a uma velocidade estonteante.

Como é que estão a fazer essa leitura?

A Valérius tem mais de 20 pessoas que só fazem leitura de mercado, que estão a ver o que está a acontecer para perceber qual o caminho que a fábrica tem de tomar. Ligamos para A, B e C e toda a gente diz o mesmo: as quebras estão nesta ordem de grandeza. No tempo da troika havia dois ou três países com problemas e países que estavam bem. O que acontece hoje é que está tudo mal. Para já, as empresas portuguesas estão a tentar aguentar isto, no fundo, perdendo rentabilidade. É que este setor depende muito de pessoas e se começamos a entrar em pânico e a dispensar pessoas, pode colapsar.

Por outro lado, a indústria portuguesa representa 3% dos têxteis mundiais e 7% a nível europeu, e sabemos que nos nossos concorrentes, como a Turquia e a Ásia numa quantidade de produtos, as quebras das compras são muito maiores, perto do dobro. Temos algumas procuras de clientes que compravam a seis meses, por exemplo, no Bangladesh, e agora dizem que vão comprar [em mercados] mais próximos. Porque reduzindo o tempo de compra também mitigam o risco. Isto pode dar-nos um input para o primeiro trimestre do ano que vem. Começámos a perceber esse movimento de procura. Não sabemos exatamente a dimensão que terá. Até porque o cliente tem de ajustar-se. É uma compra diferente, com preço diferente.

O setor fez investimentos, as empresas hoje estão muito bem equipadas, mas estamos completamente dependentes do que acontece nas marcas globais e sujeitos a este ajustamento. Quanto mais empurramos o nosso cliente à compra, mais risco temos depois que ele não pague. Está tudo a acontecer a uma velocidade estonteante.

Como estão a lidar com essas unidades mais pequenas a quem a Valérius subcontrata?

Temos pequenos satélites que, no fundo, trabalham praticamente a 100% para nós. É como um braço nosso. Se eles não tiverem dinheiro feito ao final do mês para pagar os seus salários, temos um problema. Ou vão deixar de pagar os impostos ou deixar de pagar ao pessoal.

E esse “braço” já está mais curto?

Neste momento ainda está mais ou menos equilibrado. A capacidade de entrega ainda está mais ou menos ajustada. Mas sentimos que a qualquer momento isto pode [mudar]. Os custos energéticos levaram a tesouraria das empresas, temos o perigo das taxas de juro e a retração da banca também é brutal. Havendo uma nuvem cinzenta no mercado, baixa o rating das empresas e os financiamentos. E as empresas têm os projetos que fizeram no Portugal 2020 e as linhas Covid para pagar, e a economia a encolher. A gestão tem de ser muito rigorosa e é quase navegar à vista. Por isso é que os fundos internacionais não têm empresas do setor têxtil. Não dá para fazer grande planeamento. E os fundos de investimento gostam é de business plans e muita treta. E isto aqui ou acontece ou não acontece.

José Manuel Ferreira, presidente do grupo Valérius, em entrevista ao ECO - 24OUT23
José Manuel Ferreira, presidente da Valérius, em entrevista ao ECORicardo Castelo/ECO

Disse que o setor pode colapsar se começar a dispensar pessoas. Quais são os riscos com a perda de emprego?

O setor emprega 128 mil pessoas e muitas são de uma geração que não é passível de requalificar para outras áreas. O país anda a várias velocidades. Por um lado, tem uma geração de pessoas muito qualificadas e que até podem fazer grandes coisas e ter grandes salários; e depois tem uma quantidade de pessoas acima dos 48 anos de idade, que trabalham no setor industrial e não estão preparadas para reviver o que viveram em 2012, quando as empresas começaram a cair, com a entrada da troika. Houve ali um período em que os setores começaram todos quase a definhar. Essas pessoas saíram do mercado de trabalho e voltaram.

Temos de ter uma visão para estas pessoas. Não digo que não sejam capazes de aprender alguma coisa, mas pessoas que gastaram o seu dinheiro a formar os filhos para terem mais educação e agora terem eles próprios de se reinventar… Não estou a ver isso a acontecer. O setor têxtil tem de ser um pouco acarinhado porque há uma geração de pessoas que, se não tiverem este trabalho, não sei onde é que vão estar a trabalhar.

Como é que poderia ser “acarinhado”?

Há algumas que estão agora a ser postas em prática na questão da formação em contexto de trabalho. Temos de perceber que isto é apenas um momento. Acredito nisso porque senão não estava aqui. Acredito que isto é apenas um período [baixo] e que, sendo assim, temos de conseguir ajustar de forma natural, sem dor nas pessoas. No fundo, manter as pessoas em contexto laboral e não deixar que as empresas se extingam. Tem de haver aqui um compromisso [com o Estado] porque as empresas pagam muitos impostos, tal como as pessoas. Temos de ter vários mecanismos.

Os clientes dizem-nos que isto é uma crise conjuntural, não é uma crise de saída de mercado. Porque a verdade é que os salários também foram aumentando noutros países. Nós estamos também no limite do salário que podemos [praticar]. Estamos num mercado aberto, não temos algo que nos proteja para que estejamos no mercado a dizer que o nosso preço é este. Se não formos nós a produzir, vai ser outro país a produzir.

Está a dizer que o valor do salário mínimo nacional está no limite do que as fábricas têxteis podem suportar?

No limite do que os clientes lá fora estão dispostos [a pagar]. Agora na União Europeia já estamos a fazer algumas normas que vão ajustar um bocadinho isto a um negócio sustentável, sem fake. Até hoje vinha roupa de todo o mundo e o consumidor também agradecia [os preços mais baixos]. Mas esta é uma fase em que precisamos de algumas medidas quase telecomandadas. Como fazem a Alemanha ou a França quando não querem perder determinado setor. No caso do têxtil, as medidas seriam para segurar o emprego.

O aumento do desemprego no setor é a maior preocupação?

Sim. Se não formos proativos, o tamanho do problema pode ser muito maior. As empresas querem é honrar os seus compromissos e manter os seus postos de trabalho. Se fosse [dependente de] máquinas, desligava-se a máquina e esperava-se até que houvesse trabalho. Mas no têxtil é diferente. Antes tínhamos o banco de horas, mas hoje a lei laboral é mais rígida e isso não ajuda em períodos em que há [menos encomendas]. Como não somos donos do negócio, nunca sabemos. Não temos a informação do pipeline das vendas para saber se o cliente vai comprar mais ou menos. E no têxtil não podemos ter uma taxa de trabalho temporário como tem o setor automóvel. Aqui temos pessoas altamente qualificadas e não podemos trocar um operador para outro operador. Nós precisamos de pessoas com aquelas qualificações para fazer aquelas operações.

Estamos no limite do salário que podemos [praticar] e que os clientes lá fora estão dispostos [a pagar]. Se não formos nós, vai ser outro país a produzir.

A subida das taxas de juro está a pesar muito sobre as empresas?

Claro. Se é um peso nas famílias também é nas empresas. A taxa de juro neste momento é alta. No nosso caso, temos uma dinâmica em que 30% é taxa fixa e 70% flutuante. Claro que estamos a sofrer, isto vai-nos à rentabilidade. Mas fazemos uma conta: o que nos aconteceu em 2022 com o gás, a energia e os custos das matérias-primas foi o triplo do que hoje nos custa a taxa de juro. Mas é mais uma pancada.

Outra, como referiu, é a devolução dos apoios Covid?

Na altura ninguém sabia o que era a Covid, quanto tempo ia demorar, e houve várias linhas de financiamento que agora têm de ser pagas. Nós e a associação [ATP] já estivemos a ver se havia possibilidade de alargar [os prazos], mas não há. As empresas vão ter de continuar a viver com esta pressão de mercado mais curto. E como ninguém quer despedir pessoas, as empresas vão lutar entre elas e vão às suas rentabilidades. Para quem vai a encomenda? Por natureza, ninguém quer ser o primeiro a ser encolhido. Já se veem empresas que, para conseguir negócios, acabam por ir às suas rentabilidades. E começam a ser nulas ou negativas.

Esse regresso das encomendas da Ásia é uma janela de oportunidade?

O que os clientes nos dizem é que as ordens de cima são para tirar 15% a 20% da produção da Ásia para a Europa, obrigando a diversificar os mercados. Se durante 20 anos não tivemos inflação e os preços se mantiveram quase inalterados, foi porque as marcas europeias foram comprando onde era mais barato. O maior exportador têxtil da Europa é a Alemanha e não conheço lá nenhuma fábrica. Compram em todo o mundo e vendem para todo o mundo. Mas com a crise energética — e 80% da inflação veio desse incremento — tudo aumentou. E no final da guerra não vai ficar tudo igual, os blocos vão ficar mais fechados. Estes grandes clientes, que pertencem a fundos internacionais, não querem estar 100% dependentes de um dos lados. O made in Europe vai ganhar força.

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