Editorial

Marcelo à espera de outra oportunidade perdida

O discurso de 1 de janeiro do Presidente foi de desencanto e até de resignação perante a ingovernabilidade anunciada. Passa a responsabilidade para Costa e para os eleitores.

Marcelo Rebelo de Sousa falou ao país no primeiro dia do ano da graça de 2024, mas o tom não foi exatamente de esperança, de ânimo, foi de um peso que nos arrastou para a crise política com o pedido de demissão do primeiro-ministro António Costa, de responsabilidade e dos eufemísticos “desafios”, maiores do que em 2023. O Presidente, quase resignado, lembrou-nos o que tinha dito há um ano (e estava tudo certo), mas servirá de pouco se as eleições de 10 de março não forem mais do que uma primeira volta de mais umas legislativas a curto prazo.

Marcelo, é preciso dizer, está também ele próprio politicamente limitado depois do caso das ‘gémeas’ e do envolvimento do seu filho Nuno Rebelo de Sousa numa mais do que óbvia “cunha” para o acesso a tratamento médico de duas bebés recém-naturalizadas portuguesas. E isso marca o Presidente, como se percebe das sondagens. É neste contexto que Marcelo foi obrigado a dissolver o Parlamento. Obrigado, sim, apesar da narrativa de António Costa e do PS, que construíram a sua verdade sobre a possibilidade de haver um primeiro-ministro não eleito saído diretamente do Banco de Portugal. E se foi obrigado, não será sua a primeira responsabilidade se o país entrar num ciclo de ingovernabilidade e instabilidade política.

A culpa mora ao lado, em São Bento, em quem lá mora agora, mas quem cá ficará ainda é o Presidente da República, e por isso esta comunicação foi das mais importantes que se esperavam. Foi um discurso contido, sim, porque o país já está em pré-campanha eleitoral, mas ressaltam deste primeiro discurso de 2024 umas quantas notas importantes:

  1. Marcelo parece resignado ao falhanço de uma oportunidade única de um primeiro-ministro que tinha maioria absoluta e dinheiro para fazer mudanças.
  2. O Presidente foi crítico sobre as áreas em que o Governo falhou. Na justiça social, na educação, na saúde e na habitação, até na execução do PRR nas áreas da Administração Pública e da Justiça.
  3. Marcelo falou pouco de economia, de prioridade ao crescimento económico, e falou mesmo nada de empresas e de criação de riqueza.
  4. O Presidente não falou de legislatura, das exigências para os próximos quatro anos, mas apenas para o curto prazo, para o imediato.

A governabilidade é a principal questão que se coloca hoje, mas isto tem um efeito perverso, o de diminuir a importância e discussão das propostas políticas, propriamente ditas. Vai falar-se menos de políticas públicas, vai falar-se mais da geringonça e do Chega, das contas sobre votos e somas de deputados. E provavelmente, como Marcelo também notou, haverá muitas promessas fundadas no excedente orçamental, que se perde num instante.

2024 pode ser, assim, uma espécie de intervalo instável em vez de ser uma oportunidade para a mudança. Foi isto que que nos disse Marcelo. E pode voltar a ter razão.

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