Poema em linha reta

  • João Amaro de Matos
  • 29 Janeiro 2024

Antes, os doutorados eram uma espécie de semi-deuses, príncipes do conhecimento. Hoje, o aumento de doutorados em Portugal potencializa o crescimento de desemprego qualificado.

Em Portugal, formaram-se mais de dois mil doutorados por ano na última década. A questão é se o nosso país tem capacidade para assimilar esse fluxo constante de talento altamente qualificado.

Para início de conversa, alguns dados. Entre 2015 e 2020, formaram-se no nosso país 11.199 doutores, e a população doutorada a residir em Portugal cresceu de 30.807 para 37.113 – um acréscimo de 6.306 novos residentes. A diferença entre o número de novos doutorados no período e o acréscimo em território nacional é de 4.893. E para onde foram os ausentes? A parte substancial é explicada pela saída para o estrangeiro de cerca de 40% do nosso talento mais qualificado. Dos melhores e nas áreas de conhecimento mais competitivas, naturalmente.

Mas como pode Portugal absorver os que ficam no nosso território? Este aumento de doutorados é um problema comum às economias mais desenvolvidas, e não apenas à nacional, como refere a especialista Claudia Sarrico, da Universidade do Minho.

Mas o mais curioso é que esta pressão muda a própria natureza dos programas doutorais. Antes considerados como porta de entrada para uma carreira académica, hoje são cada vez mais elementos diferenciadores para um mundo onde se torna lugar-comum ter um mestrado de Bolonha – ou mesmo uma bola de escape para retardar a entrada num mercado de trabalho cada vez mais competitivo. A falta de lugares na academia não é capaz de travar a procura crescente destes graus. Se no passado os Doutoramentos estavam vocacionados para treinar académicos que gerassem conhecimento nas suas áreas, hoje estão mais voltados para desenvolver competências que garantam empregabilidade no mundo industrial e organizacional, instituições governamentais ou em setores sociais, dependendo das áreas.

Voltando ao início, percebe-se que “altamente qualificado” não é sinónimo de “igualmente qualificado”. Há um problema de seleção adversa, em que os 60% que ficam em Portugal ficam por razões pessoais (familiares e outras) ou, simplesmente, porque não tiveram – ou não foram capazes de encontrar – outras alternativas. O mercado académico nacional é rarefeito, com baixa capacidade de absorção, endogâmico, e o tecido industrial e empresarial (com honrosas exceções, em certas empresas e áreas de atividade) não tem a desenvoltura de outras economias que permita o recrutamento deste tipo de mão de obra.

Antes, os doutorados eram uma espécie de semi-deuses, príncipes do conhecimento. Hoje, o aumento de doutorados em Portugal potencializa o crescimento de desemprego qualificado. Há um estímulo crescente à entrada nos programas de Doutoramento, com mais bolsas, mais generosas. Esta agenda baseia-se no pressuposto de que as economias são mais competitivas, com a maior qualificação das pessoas. Será verdade no contexto de licenciaturas (num país onde apenas um terço das empresas tem pelo menos um administrador com ensino universitário) e até de mestrado. Mas ainda não estamos no nível de desenvolvimento em que a produção de doutorados faça essa diferença.

  • João Amaro de Matos
  • Vice-reitor da Universidade NOVA de Lisboa

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