Contra um Imposto Sucessório (Ou a Rejeição do Moralismo Fiscal)
Pese embora os exemplos favoráveis a um imposto sucessório possam parecer apelativos, poderá perguntar-se quais os limites do pressuposto valorativo que subjaz ao arquétipo de imposto sucessório.
No contexto do atual período de pré-campanha eleitoral, alguns partidos políticos trouxeram ao debate público a eventual reintrodução do imposto sucessório.
A título de mero apontamento histórico, recorde-se que, em Portugal, foi eliminado o Imposto sobre as Sucessões e Doações, por intermédio do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, sem que existam razões facilmente apreensíveis para o retomar de uma solução próxima, em termos de política fiscal.
Assumindo uma clara posição de rejeição face a qualquer modalidade de imposto sucessório, apresentaremos de seguida algumas ideias para o debate em curso.
Todavia, ao invés de uma análise dos argumentos de cariz fiscal ou constitucional, focar-nos-emos sobretudo na delapidação da visão moralista que subjaz ao arquétipo de imposto sucessório.
Assim, ficará para um artigo subsequente a análise concreta dos problemas inerentes a uma modalidade de imposto sucessório no sistema fiscal português.
- Uma primeira aproximação ao moralismo fiscal do imposto sucessório
Segundo entendemos, o principal problema subjacente ao arquétipo de imposto sucessório – qualquer que seja a sua modalidade ou perfil concreto – tem uma raiz valorativa.
Referimo-nos, concretamente, à noção de justiça geracional partilhada por cada comunidade, ao longo do tempo, bem como ao seu respaldo no sistema fiscal vigente e nas diferentes soluções que o conformam.
Vejamos, ainda que preliminarmente, em que termos.
Pese embora a invocação de argumentos de justiça (re)distributiva favoráveis a qualquer modalidade de imposto sucessório seja legítima (ainda que nos pareçam insuficientes), o argumento central que lhe subjaz tem uma dimensão assumidamente valorativa, dado que implica uma intervenção corretiva (senão mesmo de subtil censura) sobre todos os que, na condição de sucessores, herdaram determinada parcela de património.
Mais problemático, esta vocação excessivamente moralizante do arquétipo de imposto sucessório, caso levada ao extremo, implicaria assumir uma igualização, pela via fiscal, entre:
- Num primeiro momento, todos os potenciais sucessores que recebessem parcelas equivalentes de património; e
- Num segmento momento, aqueles primeiros e todos os que, por virtude do acaso, não herdaram qualquer tipo de património.
Neste momento, o leitor já se terá apercebido que a axiologia do imposto sucessório apresenta alguma afinidade com o mundo de Alfas e Betas, de que nos falava Aldous Huxley, no seu Admirável Mundo Novo.
- Os perigos do moralismo fiscal e as noções de risco e incerteza
A dimensão moralista a que aludimos anteriormente afigura-se particularmente perigosa numa sociedade aberta e democrática, que acolhe necessariamente as noções de risco e incerteza.
Radicando os seus fundamentos numa justiça redistributiva entre os que adquirem certa vantagem patrimonial por via sucessória, o arquétipo de imposto sucessório acaba por preconizar uma modalidade de “imposto sobre a sorte”.
Assim, e mais uma vez, levado às suas últimas implicações, e com base na mesma premissa igualitária, tal ideário valorativo legitimaria a criação de modalidades setoriais de impostos sobre toda e qualquer vantagem aleatoriamente recebida.
Imaginem-se casos de escola tão distintos como os de indivíduos excecionalmente dotados para certa atividade (exemplos: basquetebolistas ou modelos de elevada estatura), assumida a sua associação a rendimentos avultados.
Será, todavia, caso para perguntar: mas, nesse conjunto de casos hipotéticos, estaremos ainda a tributar a “sorte” ou, afinal, a antecipar a tributação de rendimentos que, de outra forma, não seriam tão intensivamente tributados (?)
Será que, tal como sucede no arquétipo de imposto sucessório, a invocação da “sorte” como veículo para uma redistribuição agravada não seria, afinal, um alibi para tributar rendimento ou património que, ao abrigo de outros impostos já existentes, não seriam tão intensamente tributados (?)
Para procurar adensar o paradoxo a que aludimos, recorremos novamente a outro exemplo, neste caso o de um grupo de indivíduos com excecional e inato talento para a olaria – em última instância, o grupo de melhores oleiros do Mundo.
Caso se assumisse que o seu rendimento não fosse substancialmente mais elevado face ao rendimento médio, eis nova pergunta: teria o decisor público interesse em tributar a sua “sorte” ou talento inato para a olaria, em moldes análogos aos de um basquetebolista ou de um modelo de elevada estatura, caso estes últimos tivessem rendimentos avultados e os primeiros não (?)
O caráter negativo da resposta parece-nos evidente e rapidamente seria justificada com a ausência de suficiente receita fiscal que justificasse a adoção de tal solução.
Este conjunto de exemplos torna claro, segundo entendemos, que, em última instância, a tributação sucessória – afinal, uma mais generalizada fórmula de tributação da “sorte” – visa apenas acelerar a arrecadação de receita fiscal quando ocorre a sucessão.
Mais, pretende afinal utilizar essa mesma “sorte” como putativo critério de uma tributação agravada que, afinal, volta a incidir sobre rendimento ou património.
- Algumas conclusões
Pese embora os exemplos favoráveis a um imposto sucessório possam parecer apelativos, poderá perguntar-se quais os limites do pressuposto valorativo que, em última instância, subjaz ao arquétipo de imposto sucessório.
Sobretudo quando, levado às suas últimas consequências, esse pressuposto poderia levar à tributação de toda e qualquer forma de privilégio per natura, para rapidamente desaparecer quanto estivesse em causa um volume menos significativo de receitas fiscais – como, em última instância, sucedeu com o Imposto sobre as Sucessões e Doações!
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