Confusão instalada na regulação do trabalho nas plataformas digitais. E agora?

  • Mariana Tavares
  • 26 Fevereiro 2024

A UE tem sido pioneira na regulação da economia digital. Contudo, sobre o trabalho nas plataformas, um acordo político tem sido difícil de alcançar.

Pela primeira vez em Portugal foi reconhecido a um estafeta da Uber Eats por um tribunal a existência de um contrato de trabalho com todos os direitos inerentes a tal vínculo. Esta é uma decisão inédita, resultante da aplicação de uma alteração legislativa ao Código de Trabalho que presume a existência de um contrato de trabalho uma vez reunidos uma série de critérios.

A questão é que para além de inédita a nível nacional, esta decisão reflete também uma falta de consenso dentro da União Europeia (UE).

A economia das plataformas digitais vive um período de crescimento exponencial. De um valor estimado de 3 mil milhões de euros em 2016, na UE, as receitas chegaram a 14 mil milhões euros em 2020. Mas é um crescimento repleto de desafios, do risco de controlo do acesso ao mercado digital por outros operadores, à recolha e utilização abusiva dos dados dos utilizadores, além da possibilidade de manipulação de informação com influência em eleições por todo o mundo. Esses riscos preocupam decisores e cidadãos.

A UE tem sido pioneira na regulação da economia digital. Contudo, sobre o trabalho nas plataformas, um acordo político tem sido difícil de alcançar.

As plataformas digitais atuam como intermediárias, ligando clientes a serviços, como o aluguer de alojamentos locais em destinos de férias, serviços de transporte urbano ou a entrega de comida, para referir apenas alguns exemplos mais recorrentes. As projeções indicam que, até 2025, aproximadamente 43 milhões de pessoas trabalharão em plataformas digitais. Um estudo da OCDE (2019) revelou que os motivos mais comuns para isso são a obtenção de um rendimento adicional e a flexibilidade. Contudo, o estudo revelou também que uma minoria já significativa de pessoas (cerca de 20%) trabalha para as plataformas pois não encontra outro trabalho.

Ora, se por um lado as empresas que dominam a economia das plataformas referem a flexibilidade de trabalho como uma grande vantagem, os críticos, incluindo alguns dos que nelas trabalham, lembram a falta de proteção e de uma remuneração adequada, para além de as funções poderem ser menos flexíveis do que parecem.

A Comissão europeia apresentou em dezembro de 2021 uma proposta de Diretiva sobre o assunto, com critérios específicos para considerar os trabalhadores empregados das plataformas, incluindo indicadores como limites máximos do montante que podem receber, supervisão da execução do trabalho, nomeadamente de forma eletrónica, controlo da distribuição de tarefas e de condições de trabalho. A proposta prevê ainda regras relativas ao uso de algoritmos para a gestão dos trabalhadores, os quais devem ser informados sobre sistemas automatizados; e os seus dados pessoais, como o estado emocional e ou informações sindicais, terão proteção especial. O despedimento de trabalhadores por sistemas automatizados será proibido.

Apesar de um recente acordo político entre o Parlamento Europeu e o Conselho, alcançado este mês pela presidência belga da UE, a incerteza persiste quanto à resolução do impasse entre os Estados-Membros que bloqueou a aprovação desta diretiva no ano passado durante a presidência espanhola. Se este impasse não for ultrapassado nas próximas semanas, a legislação sobre este assunto ficará inevitavelmente adiada para depois das eleições europeias.

Neste contexto de incerteza, qual é a situação atual em relação ao trabalho nas plataformas digitais?

Portugal resolveu o assunto adotando uma alteração legislativa ao Código de trabalho. Está por testar a compatibilidade dessa legislação com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da UE, nomeadamente em matéria das liberdades fundamentais reconhecidas pelo Tratado. Foi uma oportunidade perdida o facto de o tribunal nacional, ao decidir a favor da existência de um contrato de trabalho para um estafeta da Uber Eats, não ter questionado o Tribunal de Justiça da UE sobre essa compatibilidade, através da submissão de uma questão prejudicial, o que teria proporcionado maior clareza e segurança jurídica à decisão.

Noutros Estados-Membros o judiciário tem resolvido a questão, sendo a diversidade de abordagens reveladora da sua complexidade. Em França, por exemplo, os condutores da Uber têm vindo a ser considerados trabalhadores independentes, ao passo que os da LeCab e Bolt foram reconhecidos como dependentes.

Esta diversidade de abordagens não surpreende, tendo em conta a heterogeneidade das relações de trabalho, os modelos de negócio, os tipos de trabalho em plataformas, as questões transfronteiriças e a diversidade dos modelos de segurança social dos Estados-Membros.

O desafio é equilibrar estas diferenças, mantendo a flexibilidade para apoiar modelos de negócios inovadores, ao mesmo tempo que se garantem boas condições de trabalho. A regulação do trabalho em plataformas deve respeitar os valores fundamentais que unem os países da UE.

Não será tarefa fácil.

  • Mariana Tavares
  • Sócia da Cruz Vilaça Advogados

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