Não é justo as avós dependerem das netas
Não devia ser preciso ter estudado Direito para saber que é na legislação que encontramos a maioria das regras que regulam a vida em sociedade, nem para conseguir compreender essas mesmas regras.
Há uns tempos, a administração do meu condomínio apresentou uma proposta de regulamento, que me mereceu várias objecções. Uma delas era a de que havia normas em contradição com a legislação geral. E ilustrei com um exemplo concreto: o regulamento dizia que obras de inovação no prédio exigiam apenas «maioria de dois terços dos condóminos presentes», quando o que o Código Civil determina é que elas «dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do prédio» (um duplo requisito, portanto). Contra-argumentando na base da autoridade, a gerente da empresa de gestão de condomínios, licenciada em Direito, perguntou-me se eu era jurista.
Costumo dizer – a brincar! – que, se não tivesse sido o caso Relvas, já seria licenciada em Direito através de equivalências. Há quase seis anos que trabalho em avaliação de impacto legislativo, o que significa que boa parte do meu expediente é passada a ler diplomas legais. Sim, eu sei, ser jurista é muito mais que isso. Repito: é algo que digo a brincar. O que digo fora de brincadeira é que não devia ser preciso ter estudado Direito para saber que é na legislação que encontramos a maioria das regras que regulam a nossa vida em sociedade, nem para conseguir compreender essas mesmas regras.
Há umas semanas, foi notícia o baixo nível de literacia financeira dos portugueses. Na literacia digital, as coisas também não estão famosas. E os resultados do índice de literacia estatística do Social Data Lab são preocupantes. Diria que o problema é mesmo de iliteracia apenas, sem qualquer adjectivo. E, portanto, não admira que haja também muita iliteracia jurídica. É, por isso, muito possível – bastante provável, até – que a avó de Mariana Mortágua tenha ficado sobressaltada quando recebeu uma carta do senhorio. Mas, certamente, as duas netas, pessoas com uma cidadania politicamente activa, souberam tranquilizá-la e explicar-lhe quais as novidades da Lei n.º 31/2012, a chamada Lei Cristas.
Para o caso, interessam as modificações feitas às regras do período transitório aplicável aos contratos anteriores ao Regime de Arrendamento Urbano, vulgo contratos anteriores a 1990. Sim, modificações, porque a legislação de 2006 já previa a passagem dos arrendamentos antigos para o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU). Vou tentar ser sucinta (coisa que eventualmente me impedirá de obter a tal equivalência) na explicação das diferenças.
Na sua versão original, o NRAU estabelecia a possibilidade de actualização da renda. Mas só para casas que tivessem avaliação para efeitos de IMI e cujo nível de conservação não fosse mau ou péssimo. Tudo começava com uma carta do senhorio, onde ele comunicava o montante da nova renda, que não podia ser superior a 1/25 do valor patrimonial tributável. O inquilino tinha então 40 dias para responder, podendo invocar que o seu rendimento era inferior a cinco salários mínimos ou que tinha 65 anos ou mais ou deficiência com grau de incapacidade superior a 60%; se comprovasse uma destas circunstâncias, a subida da renda far-se-ia faseadamente ao longo de 10 anos, em vez dos cinco que constituíam a regra geral. Uma outra hipótese de resposta seria a denúncia do contrato.
Na sua versão “Cristas”, o NRAU passou a admitir a actualização da renda para todas as casas independentemente do seu nível de conservação. À semelhança do que já sucedia, o senhorio enviava uma carta; não a comunicar a nova renda – para a qual, ao contrário do determinado em 2006, não havia um limite –, mas a propô-la (e propunha também o tipo e a duração do contrato, mas vou ignorar estes dois aspectos). Esta era a pedra de toque do regime instituído em 2012: a carta do senhorio dava origem a um processo negocial.
Chegados a 2012, e de acordo com o discurso Assunção Cristas no Parlamento, tinham sido feitas 3143 actualizações de renda ao abrigo da Lei n.º 6/2006 (cujo artigo 42.º obrigava o senhorio a comunicá-las às Finanças, o que permitia ter estes dados, algo que lamentavelmente não foi mantido), num universo de quase 269 mil contratos antigos, que representavam mais de um terço do mercado de arrendamento. Assim, cumprindo o acordado com a troika, o Governo mexeu na legislação para aumentar a possibilidade de renegociação de arrendamentos sem prazo e eliminar gradualmente os mecanismos de controlo de rendas.
Na sua versão “Cristas”, o NRAU passou a admitir a actualização da renda para todas as casas independentemente do seu nível de conservação. À semelhança do que já sucedia, o senhorio enviava uma carta; não a comunicar a nova renda – para a qual, ao contrário do determinado em 2006, não havia um limite –, mas a propô-la (e propunha também o tipo e a duração do contrato, mas vou ignorar estes dois aspectos). Esta era a pedra de toque do regime instituído em 2012: a carta do senhorio dava origem a um processo negocial. Em 30 dias, o inquilino tinha de responder; podia denunciar o contrato, aceitar a proposta do senhorio ou fazer uma contraproposta. Neste último caso, o senhorio comunicava se a aceitava ou não e, não aceitando, duas hipóteses se colocavam: ou o contrato se considerava celebrado por um prazo de cinco anos com uma renda até 1/15 do valor patrimonial tributário ou o senhorio denunciava o contrato. Se denunciasse, tinha de pagar uma indemnização que era o equivalente a cinco anos da renda que fosse a média das duas propostas, a sua e a do inquilino.
Assim, embora legalmente o senhorio não estivesse impedido de propor uma qualquer renda absurdamente elevada, a racionalidade económica desaconselhava-o. Senão, vejamos. Quanto mais alta fosse a renda, maior seria a probabilidade de o inquilino rejeitar a proposta, logo maior a probabilidade de o senhorio ter de pagar uma indemnização, que seria tanto maior quanto mais alta fosse a sua proposta. Raciocínio simétrico aplicava-se ao inquilino. Ou seja, este mecanismo negocial tentava equilibrar os interesses tipicamente antagónicos entre as duas partes, levando a que o senhorio sugerisse uma renda razoável e que o inquilino procedesse de igual forma.
Era uma lei com Teoria dos Jogos em acção. Excepto para os inquilinos com rendimento inferior a cinco salários mínimos ou idosos ou com deficiência com grau de incapacidade superior a 60%, os mesmos que eram salvaguardados na lei de 2006. Para estes, a resposta à carta do senhorio podia ser a invocação de uma destas circunstâncias, o que dava início a um período transitório de cinco anos, durante o qual a renda seria actualizada em função de uma taxa de esforço, com o já referido limite de 1/15 do valor casa para efeitos de IMI.
No caso dos idosos e dos portadores de deficiência, a protecção conferida pelo artigo 36.º era maior. Desde logo, porque o contrato não ficaria submetido ao NRAU sem o acordo das partes, o que significa que se manteria sem prazo. Mas também porque o número 10 estabelecia que, terminado o período transitório de cinco anos, poderia existir uma resposta social, que seria definida em diploma próprio.
Essa definição demorou um bocadinho, bastante mais que os 4 meses previstos no artigo 64.º do NRAU. Mas é uma situação em que se aplica literalmente a expressão de não se ter perdido pela demora. Depois de três anos de um provável sobressalto por não se saber o que seria a resposta social pós-período transitório, o Decreto-Lei n.º 156/2015 foi publicado a 10 de Agosto e com uma enorme generosidade.
O inquilino não tinha qualquer incentivo a rejeitar a proposta do senhorio, por mais alta que fosse. Na verdade, podiam combinar uma renda estupidamente elevada e a forma de repartir o apoio à custa do Orçamento de Estado. Uma possibilidade que nunca chegou a efectivar-se graças aos sucessivos alargamentos do prazo para o período transitório, até à sua extinção através do pacote Mais Habitação – o contribuinte agradece, os inquilinos certamente não.
Esse decreto fixou um subsídio de renda que era igual à diferença entre a renda que o inquilino poderia pagar dado o seu rendimento e a nova renda, que era o resultado do processo negocial entre senhorio e inquilino. E não havia limite, ao contrário do que acontecia com o subsídio instituído em 2006. Isto é, o inquilino só pagaria aquilo que o seu rendimento permitisse pagar, sendo todo o montante acima disso subsidiado. Neste contexto, os interesses das duas partes ficariam alinhados. O inquilino não tinha qualquer incentivo a rejeitar a proposta do senhorio, por mais alta que fosse. Na verdade, podiam combinar uma renda estupidamente elevada e a forma de repartir o apoio à custa do Orçamento de Estado. Uma possibilidade que nunca chegou a efectivar-se graças aos sucessivos alargamentos do prazo para o período transitório, até à sua extinção através do pacote Mais Habitação – o contribuinte agradece, os inquilinos certamente não.
Obviamente, embora muito interessantes do ponto de vista económico, estas regras estavam longe de ser simples e facilmente compreendidas pelos seus principais destinatários. Os que se sobressaltaram ainda hão-de ter pedido ajuda e espero que tenham recebido o devido aconselhamento (cinco salários mínimos eram, em 2012, mais de 2.400 euros mensais, pelo que quase toda a população estava abrangida pelo período transitório). Dramáticos terão sido os casos em que os idosos não tiveram um assomo de preocupação, porque nem perceberam o que estava em causa. Não compreenderam o conteúdo da carta e não entenderam que tinham 30 dias para dar uma resposta, sob pena de estarem a aceitar a proposta do senhorio. Até porque a carta que este enviava tinha, face a 2006, menos requisitos, nomeadamente não tinha de explicar as consequências para o inquilino de não responder (o que o Tribunal Constitucional viria a declarar inconstitucional). Não sabemos quantas foram estas situações, porque, como já referido, desapareceu a disposição que obrigava a reportar a transição para o NRAU. Uma pena.
No entanto, esse não é um problema da Lei n.º 31/2012 e das alterações que ela introduziu. É um problema de literacia e da dificuldade do “juridiquês”, que é uma língua difícil, como se quem redige legislação não quisesse que ela seja percebida. Lamento se os poderes públicos, em particular, as juntas de freguesia, que conhecem melhor as suas populações e têm com elas uma relação de maior proximidade, não tiveram a clarividência para agir preventivamente, criando gabinetes jurídicos aonde os seus fregueses fossem instados a ir perante uma carta do senhorio.
Já agora, no dia em que escrevo este artigo (25 de Fevereiro de 2024), uma pessoa vai ao Portal da Habitação para se informar sobre o Porta 65 – Jovem e descobre que a página ainda se está a conformar ao Decreto-Lei n.º 90-C/2022. Mais de um ano não foi tempo suficiente para o IHRU reescrever as regras, que, entretanto, até já foram novamente alteradas, pelo Decreto-Lei n.º 38/2023, de 29 de Maio. E é assim que, por exemplo, um casal em que um dos membros tenha 37 anos e o outro 35 confia na resposta à pergunta “Quem pode concorrer ao Porta 65 Jovem?” – segundo a qual para os casais, «um dos elementos pode ter 36 anos e o outro elemento 34 anos, no máximo» – e não se candidata ao apoio, quando, na verdade, está abrangido pelo programa.
Neste contexto de uma certa inacessibilidade da legislação (apesar de o Diário da República até ser electrónico), o papel de tradutor e explicador é fundamental e deve caber a organismos públicos. É preciso é que eles cumpram esta missão.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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