A concessão de crédito de forma mais cuidada nos últimos anos contribuirá para que o rácio de incumprimento de famílias e empresas não se torne num problema, vaticina Armando Castanheira, da Hipoges.
A época áurea das carteiras de crédito não produtivo (NPL) — também conhecido como crédito malparado — já faz parte do passado. Segundo estimativas da consultora Prime Yield, terão sido transacionadas 1.400 milhões de euros de carteiras de malparado em 2023, menos 18% face a 2022 e apenas acima dos valores de 2020, que foi paralisado pela pandemia.
Estes números não surpreendem Armando Castanheira, chief operating officer (COO) da Hipoges Portugal, ao recordar que os grandes números do passado foram alcançados em virtude da falência de cinco bancos que geraram grandes carteiras de crédito malparado. “Hoje isso já não existe”, refere o COO da Hipoges, uma empresa que gere mais de 7 mil milhões de euros em Portugal e que permanece muito ativa no mercado de NPL.
Armando Castanheira confessa que atualmente chega a ser “muito difícil comprar carteiras” de NPL e as que chegam ao mercado “são cada vez mais pequenas”.
Sem antever uma “onda de incumprimento muito grande” para os próximos tempos e após a “limpeza do stock” de NPL dos balanços dos bancos ao longo dos últimos anos, Armando Castanheira acredita que o caminho será cada vez mais marcado pela venda de carteiras de crédito de outros “estádios” (ou stages) por parte da banca a empresas como a Hipoges, por pressão do BCE e do Banco de Portugal para que os bancos tenham os seus rácios de NPL perto do limite mínimo exigido.
O volume de créditos não produtivos (ou NPL) em Portugal terá movimentado cerca de 1.400 milhões de euros em 2023, menos 18% face a 2022, segundo o estudo da Prime Yield “Investing in NPL in Iberia 2023”. Qual é a avaliação que faz do mercado no ano passado?
O mercado dos NPL é, em primeiro lugar, bastante dinâmico e muito maduro em Portugal. Esse número tem a ver com o valor facial das carteiras que vieram ao mercado o ano passado. Há uma clara redução no número de carteiras que estão a ser transacionadas, que advém sobretudo da pressão que foi colocada tanto pelo BCE [Banco Central Europeu] como pelo supervisor, o Banco de Portugal, em os bancos terem os rácios de NPL no seu limite mínimo de sempre.
Como tal, já não existe o grande stock de NPL para os bancos venderem e isso reduz o número de portefólios que chegam ao mercado. De todo modo, ainda é um valor interessante, tendo em conta a dimensão do país, ter movimentado 1.400 milhões de euros. O que acontece agora é que as carteiras de crédito que chegam ao mercado são cada vez mais pequenas e mistas, têm um pouco de empresas, um pouco particulares, um pouco residencial e um pouco de unsecure [créditos ao consumo através de créditos pessoais, cartões de crédito e outros].
Qual é o segmento de mercado destas carteiras que oferece melhores níveis de rendibilidade?
É difícil de responder. O mercado é muito competitivo. Para nós, enquanto servicer, a rentabilidade que retiramos é muito semelhante. Os nossos fees são muito semelhantes. Para quem compra estes ativos, para os nossos clientes, tem sido tipicamente o mercado do residencial (hipotecas de particulares) que tem sido muito beneficiado por conta da liquidez que existe no mercado provocada pela procura por imobiliário e pelo crescimento dos preços.
Isso também facilita a gestão desses créditos que se encontram em incumprimento.
Hoje é muito mais fácil fazer a gestão de uma carteira de crédito em incumprimento, tanto na parte amigável como depois numa parte de resolução legal, simplesmente porque os imóveis que garantem a dívida são rapidamente vendidos em leilão público a preços de mercado. O E-leilões, por exemplo, é uma ferramenta que permite essa liquidez e essa rapidez.
E no caso dos produtos unsecure?
Nesses produtos, como não têm um colateral, as taxas de rentabilidade exigidas pelos investidores são maiores, porque têm um risco maior. Mas até hoje tem corrido bastante bem em termos de yields. Não conheço nenhum caso em que a rentabilidade obtida não tenha ficado acima do esperado.
Essa yield esperada é um número de que grandeza? Na casa dos dois dígitos?
Sim, na casa dos dois dígitos, mas baixos. Hoje, quem vier à procura de comprar carteiras em Portugal com yields acima dos 15%, dificilmente o irá conseguir. Tem de ser mais conservador.
Em comparação como outros mercados europeus, como se posiciona o mercado nacional de NPL em termos de rendibilidade potencial?
Conheço bem o mercado espanhol e italiano, e Portugal oferece, de longe, rentabilidades maiores que esses mercados porque, tipicamente, a taxa de retorno tem tudo a ver com rapidez e com a eficiência do servicing — da resposta que podemos dar da recuperação do investimento — e em Portugal os resultados são francamente melhores.
E depois há outros motivos que explicam isso, como a dimensão do país, a liquidez do mercado e uma maior competitividade dos investidores para comprar carteiras nesses mercados que faz com que os imóveis que vão a leilão, por exemplo, acabem por ser vendidos por preços muito superiores, fazendo com que o investimento seja mais difícil de recuperar.
Os balanços dos bancos estarão cada vez mais limpos e cada vez melhores em termos de crédito, porque os bancos vão tirar das suas contas aquelas reestruturações e aqueles PER (Processos Especial de Revitalização) que, a determinada altura, o banco sabe que vão incumprir.
As contas dos principais bancos revelam uma redução do stock dos créditos não produtivos e um aumento da cobertura deste crédito. Não parece que a gestão de NPL seja um problema para a banca. Antevê uma dificuldade acrescida para este ano na aquisição de carteiras de NPL?
É muito difícil comprar carteiras e por isso temos de gerir as expectativas dos investidores. Os hedge funds que venham ao mercado nacional com uma expectativa de fazerem negócios com altas rentabilidades não vão conseguir comprar carteiras.
Como perspetiva então 2024?
Acredito que este ano vamos ter algo igual ao ano passado. Vamos ter o mesmo volume de carteiras e um mercado estável. Cada banco vai vender o seu portefólio, que será maioritariamente misto.
Que diferença antevê para este ano face a 2023?
O que é diferente em relação a 2023 é que, tendo em conta a limpeza do stock dos últimos anos, as reestruturações que foram feitas e as várias moratórias que foram dadas, as carteiras podem vir com componentes não de NPL, mas daquilo que é chamado de “Stage 1”, “Stage 2” ou “Stage 3”, que é o incumprimento recente, os reestruturados e os “pouco prováveis de serem pagos”, que nunca entraram nas carteiras de venda pelos bancos, só que, por pressão também do Banco Central Europeu os bancos vão ter que começar a provisionar também parcialmente estes estágios.
Que impacto poderá ter isso nas contas dos bancos?
Significa que os balanços dos bancos estarão cada vez mais limpos e cada vez melhores em termos de crédito, porque os bancos vão tirar das suas contas aquelas reestruturações e aqueles PER (Processos Especial de Revitalização) que, a determinada altura, o banco sabe que vão incumprir. Isso vai ser bom para os bancos. Vai limpar os falsos performing.
E que impacto terá essa tendência no negócio de empresas de servicing como a Hipoges?
Vai haver cada vez mais servicing direto para bancos. Antes de as carteiras serem vendidas, os bancos vão socorrer-se de empresas como a Hipoges para fazer aquilo que durante os últimos dez anos os seus departamentos de recuperação de crédito fizeram. Hoje esses departamentos já não existem, tendo em conta a limpeza de stock que fizeram nos últimos anos, e com isso deixaram de ter equipas de recuperação de crédito. Esse será o grande desafio.
Se houvesse de facto uma onda de incumprimento muito grande, que não é previsível, esse seria o grande dilema, porque os bancos não têm neste momento estrutura. Teriam de fazer como entre 2008 e 2010, em que chamaram as equipas comerciais para fazer a recuperação de crédito. Mas isso não seria possível porque, como sabemos, muitas agências fecharam, os bancos deixaram de ter produto para trabalhar internamente e libertaram muito as suas equipas.
Esta nova realidade abriu espaço para oferecerem serviços aos bancos que anteriormente não o faziam?
Sim. Hoje, por exemplo, fazemos a gestão “de A a Z” dos imóveis que o banco teve que adjudicar na sequência dos processos judiciais. Isto foi sempre um tabu. Claro que tivemos uma exceção. Fizemos isto para o extinto Banif, mas tirando isso, raramente houve prestação de serviços para a parte imobiliária. Ou era muito difícil fazê-lo ou eram projetos apenas. Hoje já nos procuram para fazer regularização de imóveis, para prepará-los para ir para o mercado e para fazer as vendas ou o fecho da transação.
É uma espécie de serviço “chave na mão”?
Sim, porque, muitas vezes, os bancos já não têm sequer equipas para o fazer.
E caso o incumprimento aumente este será um serviço que aumentará significativamente.
O mercado de prestação de serviços para os bancos irá claramente desenvolver-se porque, como é óbvio, o incumprimento vai continuar a existir. Se vai crescer muito ou não, não sabemos.
Segundo dados do Banco de Portugal, o rácio de empréstimos NPL baixou significativamente nos últimos seis anos, passando de uma percentagem de 14,4% no terceiro trimestre de 2017 para 2,9% no terceiro trimestre de 2023. Espera que a taxa de incumprimento se mantenha neste nível ou venha de facto a aumentar?
Acho que sim, mas faço a ressalva de que algo extraordinário possa acontecer e mudar essa perspetiva. Da parte dos bancos, parece-me que hoje estão bastante robustos como resultado de terem concedido crédito com bastante cuidado nos últimos anos, já terem vendido as carteiras mais complicadas e as que têm são muito mais robustas.
Tem-se também assistido a um forte aumento de renegociações dos créditos à habitação, muito também porque os bancos abriram a porta para isso suceder. Significa que hoje os bancos são mais criativos e têm mais margem do que no passado?
Tornaram-se mais criativos e tiveram também mais margem para isso, quer tenha sido pelas moratórias dadas no tempo do Covid como agora com a solução de fixação da prestação; e os clientes também aproveitaram para renegociar os seus créditos. Nem todas as renegociações foram feitas por clientes que estivessem efetivamente com dificuldades financeiras; muitos procuraram simplesmente melhorar a sua situação. Mas concordo com a ideia de que, algumas dessas renegociações foram uma forma de empurrar com a barriga para a frente um problema porque, garantidamente, há contratos que não vão ser cumpridos a longo prazo.
Quem hoje estiver com dificuldades em pagar o empréstimo à habitação e perceba que não vai conseguir cumprir, consiga, por sua própria iniciativa, vender o imóvel onde vive, pagar o que deve ao banco e ficar com uma entrada para dar por uma casa com um custo menor que consigo suportar.
Há a possibilidade de estarmos a adiar um problema?
Estamos a empurrar um bocado esse problema, mas não vai chegar para aumentar os rácios de incumprimento vencido, porque os bancos vão avançar com “Stage 2” e o “Stage 3” retirando esses créditos do balanço e com isso não terão impacto.
Se para os bancos isso não será um problema, para empresas como a vossa será um produto bastante interessante.
Sim, desde logo pela questão do produto que entra como um produto novo e bem originado. Pode ter sido mal renegociado, mas foi bem originado porque o financiamento concedido foi feito com LTV baixos [rácio entre o montante do empréstimo e o valor do imóvel dado em garantia] e num montante bastante inferior ao valor do colateral.
Uma realidade exatamente contrária ao que sucedia no passado.
Completamente. Isso dá margem até para quem hoje estiver com dificuldades em pagar o empréstimo à habitação e perceba que não vai conseguir cumprir, consiga, por sua própria iniciativa, vender o imóvel onde vive, pagar o que deve ao banco e ficar com uma entrada para dar por uma casa com um custo menor que consiga suportar. Nós vemos isto já hoje nas nossas carteiras.
Mas isso acontece justamente porque o mercado continua a absorver “bem” as casas que chegam ao mercado.
O mercado continua a absorver, os imóveis continuam a valorizar – talvez um pouco menos do que se observou nos últimos anos. Mas nos últimos dois, três anos há uma liquidez no mercado imobiliário como nunca vi antes.
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“Não prevejo uma onda de incumprimento muito grande no crédito”
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