Formado em Direito, foi jornalista e ajudou a lançar a Exponor. Conheça o portista por quem passam os milhões que financiam a internacionalização do têxtil e que está no centro da Operação Maestro.
“Uma vez fomos ao Chile, onde chegámos às 3h da manhã e tínhamos reuniões marcadas para as 8h no hotel. Desci por volta das 7h e o Dr. Manuel Serrão já tinha a sala pronta para os encontros com as empresas e a AICEP local. É um indivíduo altamente trabalhador, muito responsável e disponível, que desempenha a função com grande eficiência e qualidade”. O relato é de João Costa, antigo presidente da Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), que durante vários anos trabalhou de perto com o responsável executivo da Associação Selectiva Moda, o principal alvo da Operação Maestro, relacionada com um alegado desvio de 40 milhões de euros de fundos comunitários, através dos 14 projetos cofinanciados pelo FEDER e executados entre 2015 e 2023.
Manuel José de Valadares Souto Pinto Serrão, nascido a 8 de julho de 1959 na Ordem do Carmo, filho de uma professora de Educação Física e de um sportinguista catedrático de Anatomia Patológica, considerado o “pai” da Bioética em Portugal, está ligado há mais de três décadas ao associativismo têxtil e à promoção nacional e internacional da moda portuguesa.
Apesar de nunca ter sido um industrial do setor, foi pelas suas mãos que nos últimos 20 anos passaram dezenas de milhões de euros de fundos comunitários, no âmbito dos projetos conjuntos de internacionalização da fileira (From Portugal) em que participaram quase 850 empresas. Sobretudo em feiras internacionais, mas também no Modtíssimo, considerado o mais antigo salão têxtil da Península Ibérica.
“O feirante mais antigo da moda nacional”. Em várias entrevistas, foi assim que se apresentou Manuel Serrão, conhecido pela pontualidade britânica e por dormir pouco, que durante os seis anos em que foi vice-presidente da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) teve o pelouro do Portugal Fashion, evento a que continuou depois ligado como consultor, tendo mais tarde criado também a Porto Fashion Week.
Deixou de trabalhar por conta de outrem em 1992 e tem também uma empresa que organiza eventos ligados à moda, gastronomia e vinhos. Mas é enquanto responsável da Selectiva Moda, constituída em 1992 para ser o “braço” desta indústria para a internacionalização – atualmente constituída pela ATP e pela Associação Nacional da Indústria de Lanifícios (ANIL) –, que está quase sempre de malas feitas para acompanhar os empresários nas feiras internacionais do setor.
Manuel Serrão tem um papel importante. Muitas empresas pequenas que só estão nas feiras por via desse trabalho. Na lógica desta captação de verbas, faz um trabalho muito útil. Esse tem de ser um processo rigoroso, ninguém está acima da lei, mas espero que não se crucifique ninguém.
É esta associação com sede em Matosinhos, que esta manhã foi alvo de buscas, que dinamiza e organiza as ações coletivas de internacionalização da indústria têxtil e do vestuário. Apresenta as candidaturas para a obtenção de fundos europeus e depois cabe-lhe distribuir o dinheiro pelas empresas. “Do que sei, tem um papel importante. Muitas empresas pequenas só estão nas feiras por via desse trabalho. Na lógica desta captação de verbas, faz um trabalho muito útil. Esse tem de ser um processo rigoroso, ninguém está acima da lei, mas espero que não se crucifique ninguém”, comenta Miguel Pedrosa Rodrigues, administrador da Pedrosa & Rodrigues (Barcelos), que é também vogal da ATP.
“Com tantas feiras anuais e com tantas empresas a participar, ao longo de tantos anos e com situações que não são facilmente definíveis em termos de limites – o que é cada operação, o que representa, o que custa, depois quem fornece os serviços –, percebo que os contornos em torno destas realizações não sejam assim tão fáceis de perceber para quem tem de fazer a análise de qualquer situação no que respeita à utilização de incentivos. Percebo que isto seja suscetível de gerar dúvidas para quem faça algum tipo de investigação ou queira validar a utilização dos fundos públicos, nacionais ou comunitários”, admite João Costa, mostrando-se “surpreendido” com a operação da PJ e repetindo os elogios aos eventos “muito bem estruturados” organizados por Serrão.
Com tantas feiras e empresas a participar, ao longo de tantos anos e com situações que não são facilmente definíveis em termos de limites – o que é cada operação, o que custa, quem fornece os serviços -, percebo que os contornos não sejam assim tão fáceis de perceber para quem tem de fazer a análise da utilização dos incentivos.
O presidente da direção da ASM — embora o Ministério Público confirme que Serrão é “o único decisor da gestão diária e financeira — garante que a atribuição dos apoios às empresas “sempre foi transparente”. “As empresas participam, não há nem pode haver favores a ninguém – nem há meios para isso. Agora, depois se quem fornece fez a devida candidatura, se as consultas cumpriram ou não todas as normais legais, isso são questões que podem sempre ser suscitadas. Mas em termos do empenho, da qualidade do serviço, da disponibilidade e da organização das coisas, o Dr. Manuel Serrão tem sido sempre muitíssimo capaz e estado muito à altura da exigência que se coloca. Até diria que o setor terá de encontrar uma alternativa a ele no futuro porque não vai conseguir aguentar isto para sempre”, acrescenta.
Esta operação a cargo da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da PJ envolve suspeitas de crimes de fraude na obtenção de subsídio, fraude fiscal qualificada, branqueamento e abuso de poder. Segundo a PJ, o modus operandi assenta na “criação de estruturas empresariais complexas, visando a montagem de justificações contratuais, referentes a prestações de serviços e fornecimentos de bens para captação fraudulenta de fundos comunitários no âmbito de, pelo menos, 14 operações aprovadas, na sua maioria, no quadro do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI), executadas desde 2015”.
Do Direito em Lisboa ao jornalismo no Porto
Conhecido do grande público pela participação em programas de comentário político, como “A Noite da Má Língua”, nas últimas décadas redobrou a fama nacional em programas desportivos como “Os Donos da Bola” (SIC) ou o “Prolongamento” (TVI), estando atualmente em antena na CMTV, sempre como defensor do Futebol Clube do Porto. Para o anedotário futebolístico, que até virou um meme, ficou a discussão acesa com Pedro Guerra (afeto ao Benfica) ao gritar a plenos pulmões: “Diga um! Diga um! Diga um!”
O sócio 4.517 da agremiação portista até tem no currículo um título de campeão nacional de basquetebol, na categoria de iniciados, pelo clube do coração. Jorge Nuno Pinto da Costa, a quem tem dirigido algumas críticas nos anos mais recentes, andou com ele ao colo quando era vizinho dos pais na rua Conde Abranches e ainda apenas um vendedor de fogões. Foi ele, aliás, e numa altura em que já chefiava o departamento de futebol, que o levou pela primeira vez a assistir a um jogo do clube, em Coimbra, porque o estádio das Antas estava interdito.
Manuel Serrão, que ganhou muito dinheiro na bolsa no final dos anos 1980 e é um apreciador de bossa nova, apresentou-se em 2018, numa entrevista à publicação Villas & Golfe, como “um especialista em generalidades”. “Na verdade, nunca me senti atraído por fazer uma carreira única ou numa única direção, em termos profissionais, e sempre preferi tocar vários instrumentos”.
E o primeiro que tocou foi o da advocacia, embora tenha sido por pouco tempo – em 1983 iniciou um estágio de ano e meio no escritório de João Lopes Cardoso, onde tratou apenas de um caso de divórcio –, após terminar o curso de Direito na Universidade Católica, em Lisboa, já depois do 25 de Abril. Um período de sete anos em que morou no Colégio Pio XII, onde foi colega de Fernando Seara, e em que ponderou mudar para Gestão de Empresas.
Costumo dizer, meio a sério, meio a brincar, que sou um especialista em generalidades. Na verdade, nunca me senti atraído por fazer uma carreira única ou numa única direção, em termos profissionais, e sempre preferi tocar vários instrumentos. All in one não é mesmo a minha praia.
Foi a segunda vez que morou na capital. É que depois de ter iniciado o ensino primário na escola da Azenha, na rua de S. Tomé (Porto), aos sete anos foi morar para Lisboa com dois tios, enquanto o pai Daniel cumpria em Luanda o serviço militar obrigatório, como capitão médico. Alinhado com os preceitos da educação católica e conservadora, fez a 2ª e a 3ª classe no Colégio da Avé Maria, em Lisboa.
Mais tarde, já de regresso à cidade Invicta, frequentou o Liceu D. Manuel II, transitando depois para o Liceu António Nobre, onde integrou a direção da associação de estudantes. Chegou a ser dirigente regional da Juventude Centrista e diz ter sido uma das 700 pessoas que, durante uma noite, foram feitas reféns no Palácio de Cristal, aquando da realização do famoso Congresso do CDS em 1975.
“Aos 16 anos fazia sessões de esclarecimento em Gondomar, Rio Tinto, Lousada. Hoje, rio-me desses tempos. Sou de direita, mas tenho um olhar diferente. Mudei eu e mudou a sociedade. Fui preso no liceu pelo COPCON em 1975, juntamente com outros. Uns foram para Custóias. Eu, como só tinha 15 anos, fui libertado. No dia seguinte, entrei como um herói no liceu. Nessa altura quem se metia com a esquerda levava mesmo. Acusaram-me de ter dado um pontapé numa grávida e colar cartazes fascistas. Queriam implicar-me na famosa rede bombista, mas não tinha idade mínima para isso”, relatou em 2016 à Notícias Magazine este empresário que só trabalha com mulheres e que gosta de comer francesinhas na Duvália e no Capa Negra.
Joaquim Jorge, fundador do Clube dos Pensadores, em Gaia, foi colega de equipa de Manuel Serrão na equipa de futebol de salão “Dragões 85/”O Comércio do Porto”. Recorda um episódio em que ele mandou retirar a equipa de campo ao intervalo por estar a ser insultada pelos adeptos adversários para ilustrar que “sempre foi uma pessoa com uma personalidade forte”. “Tem um feitio especial e é preciso saber lidar com ele. Se tiver de dizer uma coisa, diz. É polémico. Mas as pessoas gostam dele e ele gosta de estar com as pessoas e em amena cavaqueira. Sempre o achei uma pessoa bem relacionada”, completa o professor de Biologia.
Na indústria têxtil, quem o conheceu nos últimos anos no âmbito das iniciativas de promoção internacional, como Luís Figueiredo, que detém a marca infantil Laranjinha, fala de um “conhecedor profundo do setor” e de uma “pessoa experiente”. Mário Jorge Silva, administrador da tinturaria Tintex, de Vila Nova de Cerveira, destaca o “dinamismo” do CEO da Selectiva Moda, que “tem contribuído para a internacionalização das empresas”.
Tem um feitio especial e é preciso saber lidar com ele. Se tiver de dizer uma coisa, diz. É polémico. Mas as pessoas gostam dele e ele gosta de estar com as pessoas e em amena cavaqueira. Sempre o achei uma pessoa bem relacionada.
Antes de entrar no mundo dos têxteis e da moda em 1986 – recebeu um convite da então Associação Industrial Portuense (atual AEP) para coordenar o lançamento da Exponor e ganhar o triplo – e depois de abandonar a advocacia, ainda trabalhou durante três anos e meio como jornalista do extinto O Comércio do Porto. Escreveu sobre acidentes de viação, tribunais, política e acabou a editar a secção de desporto, onde trabalhou com João Bonzinho, antigo diretor d’ A Bola, ou Júlio Magalhães (TVI e Rádio Observador), que esta terça-feira também foi alvo de buscas e, entretanto, suspendeu funções na TVI.
Os também jornalistas Rogério Gomes e Jorge Fiel são alguns dos melhores amigos, com quem faz questão de jantar com frequência em Matosinhos. Ao longo das últimas quatro décadas manteve a colaboração regular com vários órgãos de comunicação social, sobretudo enquanto colunista e sempre defensor da regionalização. Desde a fundação, em 2015, o mais velho de seis irmãos dirige o Jornal T, uma publicação especializada no setor têxtil e detida pela ATP. Tal como a sede do Compete, o escritório do jornal no edifício de serviços da AEP em Leça da Palmeira (Matosinhos) foi também esta manhã alvo de buscas da PJ.
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Manuel Serrão, o “feirante” têxtil que andou ao colo de Pinto da Costa
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