Excedente orçamental de 2023, a admissão tardia e a insustentabilidade previsível

Os aparentes bons resultados orçamentais de 2023 são bastante enganadores, conclui o economista e diretor da FEP. Óscar Afonso alerta para a necessidade de reformas estruturais.

Em 2023, após um défice de 0,3% no ano anterior, as contas públicas apresentaram um excedente de 1,2% do PIB. Esta informação consta do primeiro relatório de 2024 do Procedimento dos Défices Excessivos (PDE), enviado pelo INE ao Eurostat em março. Este excedente representa o valor mais elevado registado em democracia e apenas o segundo saldo positivo durante este período. Anteriormente, em 2019, sob a gestão de Mário Centeno como ministro das Finanças, foi alcançado um excedente de 0,1%.

É natural que o ministro das Finanças Fernando Medina, ligado ao notável excedente orçamental de 2023, tenha expressado a sua satisfação pelo resultado histórico. Este resultado contribuiu para a redução do rácio da dívida pública para 99,1% do PIB, abaixo do limiar psicológico dos 100%. Contudo, estes aparentes bons resultados são bastante enganadores, pois decorrem sobretudo:

  1. Da conjuntura favorável;
  2. Da opção deliberada de deixar valores significativos de investimento público por executar através da política de cativações, resultando uma deterioração acentuada e notória dos serviços públicos;
  3. Da não devolução aos contribuintes, sob a forma de um desagravamento fiscal relevante), o excesso de receita fiscal face ao orçamentado em resultado da inflação.

Tudo para acelerar a melhoria das contas públicas e, ao que tudo indica, tendo como objetivo último ‘forçar’ a obtenção de um rácio da dívida abaixo de 100% apenas por razões de ‘marketing político’.

Uma vez que este artigo se concentra na análise minuciosa do saldo orçamental de 2023, é relevante destacar a relação deste valor com o rácio da dívida pública. Nesse sentido, é importante começar por salientar que a estimativa de 99,1% do PIB para o rácio em 2023, divulgada a 22 de março pelo INE no reporte do PDE, representa uma significativa revisão em alta em comparação com os 98,3% anunciados na nota de informação estatística de 1 de março pelo Banco de Portugal, que posteriormente ajustou os seus dados em conformidade. Trata-se de uma revisão muito acentuada em menos de um mês, o que adensa as suspeitas que levantei num artigo anterior (de fevereiro).

De facto, mesmo após a revisão, a queda do rácio da dívida de 107,5% do PIB no 3º trimestre para 99,1% no final do 4º trimestre representa a maior redução trimestral (8,4 pontos percentuais) desde o início da série trimestral em 2000. Esta queda não pode ser apenas atribuída à evolução da atividade económica ou aos depósitos das administrações públicas utilizados para a amortização antecipada da dívida. É, pois, razoável suspeitar que outras estratégias foram adotadas de forma opaca, o que sugere uma clara manipulação do rácio, sem vantagens tangíveis para os cidadãos. Por exemplo, não melhoramos a nossa posição no ranking europeu do rácio de dívida pública por este se situar abaixo de 100%, uma vez que o país seguinte na lista, o Chipre, apresenta um valor muito inferior, aproximadamente 80%. Portanto, parece que esta manipulação serviu apenas para fins de ‘marketing político’. Aguardam-se explicações oficiais sobre os motivos desta evolução incomum do rácio de dívida pública no último trimestre de 2023.

A queda do rácio da dívida de 107,5% do PIB no 3º trimestre para 99,1% no final do 4º trimestre representa a maior redução trimestral (8,4 pontos percentuais) desde o início da série trimestral em 2000. Esta queda não pode ser apenas atribuída à evolução da atividade económica ou aos depósitos das administrações públicas utilizados para a amortização antecipada da dívida. É, pois, razoável suspeitar que outras estratégias foram adotadas de forma opaca, o que sugere uma clara manipulação do rácio, sem vantagens tangíveis para os cidadãos.

Como mencionei no artigo de fevereiro, embora seja positiva a redução do rácio da dívida pública em termos gerais, devido à diminuição dos custos de financiamento e à redução do risco do Estado perante os mercados, este processo não deve ocorrer a todo o custo. Isso porque os efeitos negativos, como a deterioração dos serviços públicos e um dos esforços fiscais mais elevados da UE – o que penaliza fortemente a nossa competitividade – têm tido um impacto muito negativo sobre as famílias e as empresas, especialmente num contexto de inflação e taxas de juros elevadas.

Após esta contextualização, que contribui para compreender as opções tomadas, avanço para uma análise mais minuciosa do excedente orçamental de 2023, recordando que a sua origem só foi reconhecida tardiamente pelo Ministério das Finanças, mostrando um certo desconforto dentro do Partido Socialista (PS). Esse desconforto é hoje ainda mais visível na oposição, agora sob o comando de Pedro Nuno Santos (PNS), pertencente à ‘ala’ mais à esquerda do Partido.

No final de setembro, o reporte do PDE do INE desse mês indicava um saldo de -0,4% do PIB em 2023. Este valor coincidia com o inscrito no Programa de Estabilidade de abril, que reviu em alta o saldo inicialmente previsto, de -0,9% do PIB, em outubro de 2022, devido à melhoria da projeção de crescimento económico de 1,3% para 1,8% (ver Tabela 1). No entanto, na mesma altura, o Conselho de Finanças Públicas (CFP) estimava um excedente orçamental de 0,9% para o ano, com base nas estimativas de execução orçamental fornecidas pelo próprio Ministério das Finanças. Poucos dias depois, em 15 de outubro, o Ministério das Finanças colocou no relatório da proposta de Orçamento do Estado (OE) uma previsão de saldo orçamental de 0,8% do PIB em 2023 (ver Tabela 1). Trata-se de uma revisão sem precedentes, pois o habitual é a confirmação (ou ligeira revisão) do saldo previsto no PDE.

O desconforto de PNS com o elevado excedente orçamental é tanto maior quanto eleva a dissonância entre o “orgulho” na herança da governação Costa e a necessidade de se mostrar diferente, mas também porque já federou uma ‘geringonça’ de oposição com os partidos à esquerda do PS, que se têm mostrado muito desagradados com o elevado valor do excedente e a má resposta dos serviços públicos.

É nesse contexto que deve ser entendida a proposta de PNS de viabilizar um Orçamento Retificativo que aumente salários de determinados grupos consensuais (professores, médicos e polícias, nomeadamente) por parte do novo Governo da AD. Trata-se de uma manobra tática, pois PNS sabe que há margem orçamental para acomodar essas medidas este ano – mais para a frente é outra questão, como refiro abaixo – sem ser necessária a apresentação de um Orçamento Retificativo. Aliás, o próprio ministro das Finanças Fernando Medina afirmou isso mesmo, mas pertence à ala mais centrista do PS e foi o ‘pai’ do excedente, pelo que se compreende esta (pelo menos aparente) dissonância com o atual líder do PS.

Mais importante do que a paternidade tardia do excedente e o desconforto de PNS em contraste com o orgulho de Medina no excedente alcançado, quero sobretudo realçar o caráter insustentável do mesmo, quer ao nível da conjuntura económica quer das opções políticas subjacentes.

De facto, a perspetiva do anterior Governo quando apresentou a proposta de OE de 2024, aprovado já após a convocação de eleições, era de uma redução do excedente orçamental para apenas 0,2% do PIB nesse ano (previsão essa confirmada no PDE de março de 2024), mas o saldo estrutural – que corrige o saldo orçamental do efeito do ciclo económico e de medidas temporárias – seria negativo (-0,1% do PIB potencial, como mostra a Tabela 1), a refletir um valor de crescimento económico bem menor (previsão de 1,5%, após 2,3% em 2023), mais em linha com o potencial da economia.

O caráter insustentável do excedente observado de 1,2% do PIB em 2023 era já visível nas previsões de outubro (dados do Relatório da Proposta de OE de 2024), pois a estimativa de um excedente de 0,8% nessa altura era acompanhada de um saldo estrutural de 0,0% e uma previsão de crescimento de 2,2%. Isto significa que parte da revisão em alta do excedente (de 0,8% para 1,2%) resultou da maior dinâmica do PIB (de 2,2% para 2,3%) e o saldo estrutural final de 2023 deve ter sido apenas marginalmente positivo

O caráter insustentável do excedente observado de 1,2% do PIB em 2023 era já visível nas previsões de outubro (dados do Relatório da Proposta de OE de 2024), pois a estimativa de um excedente de 0,8% nessa altura era acompanhada de um saldo estrutural de 0,0% e uma previsão de crescimento de 2,2%. Isto significa que parte da revisão em alta do excedente (de 0,8% para 1,2%) resultou da maior dinâmica do PIB (de 2,2% para 2,3%) e o saldo estrutural final de 2023 deve ter sido apenas marginalmente positivo, confirmando que o ‘brilharete’ orçamental resultou sobretudo da conjuntura económica positiva, com vários fatores anormais, como a inflação, o ‘boom turístico’ (fruto da imagem de país bonito e longe da guerra e da forte procura pós-pandémica) e efeitos temporários do PRR, como explicado no referido artigo de fevereiro (nesse caso, numa análise centrada na evolução do rácio da dívida pública).

Das opções políticas que contribuíram para o excedente orçamental de 2023, já anteriormente referidas, destaco a subida de 7,8% da receita fiscal em 2023 face a 2022 (8,1% face ao orçamento inicial e 1,5% face à previsão de outubro de 2023 – ver Tabela 2), que explica a maior parte do aumento de 9,0% da receita pública total e para a qual contribuiu o efeito da inflação, tendo o governo decidido não devolver aos contribuintes o agravamento fiscal associado. Seguiram-se os aumentos de 10,4% das contribuições sociais e de 68,9% na receita de capital, neste caso empolado pela receita do PRR (que “é registada em Contabilidade Nacional no mesmo momento em que ocorre a despesa de capital, garantindo a neutralidade dos fundos europeus no saldo das AP”, como explica o INE).

A melhoria acentuada do saldo orçamental de -779 milhões de euros (M€) em 2022 para 3194 M€ em 2023 – i.e., de -0,3% para 1,2% do PIB –, refletiu o crescimento mais forte da receita (9,0%, como referido) do que da despesa. Esta registou uma subida de 5,2%, repartida entre 4,6% na despesa corrente e de 11,1% na despesa de capital, com valores de 16,8% na FBCF (investimento público) e 1,4% na outra despesa de capital. Realço que a subida de 16,8% FBCF face a 2022 é enganadora, porque a comparação com o orçamento inicial mostra uma descida de 21,8% ou 1875 M€, valor que ficou, assim, por executar e eleva para 6,5 mil M€ a FBCF pública não executada entre 2016 e 2023 (valor acumulado da diferença entre os valores executados e os orçamentados dessa rubrica nos vários anos) – ver Figura 1 –, fruto da política de cativações iniciada por Mário Centeno e utilização do investimento público como variável fulcral de consolidação orçamental, que conduziu ao degradante estado atual dos serviços públicos.

A comparação com o orçamento inicial mostra ainda uma revisão em alta da outra despesa de capital (478 M€ – ver Tabela 2), onde relevam as transferências de capital, influenciadas em boa medida pelos investimentos do PRR (transferências para beneficiários intermédios, predominantemente da administração pública), evidenciando assim uma substituição de investimento público nacional por fundos europeus ao nível da despesa de capital, mascarando apenas algumas insuficiências.

Essa substituição concentrou-se na parte final do ano para efeitos da ‘maquilhagem’ final do excedente orçamental e do rácio de dívida pública, pois a comparação com as previsões de outubro de 2023 (dados do Relatório da Proposta de OE de 2024) mostra uma revisão em baixa de 661 M€ na FBCF pública e em alta de 1184 M€ na outra despesa de capital. Ou seja, aparentemente, a aceleração do PRR no final do ano – denotando e confirmando problemas de execução, apontados, nomeadamente, pelo Tribunal de contas – permitiu acomodar uma redução da FBCF e assegurar, mesmo assim, uma subida assinalável da despesa de capital face a 2022.

A Figura 2 revela que, caso da FBCF pública orçamentada em 2023 (3,2% do PIB) tivesse sido totalmente executada (ou seja, mais 1875 M€ do que o observado, ou 0,7% do PIB), o rácio da dívida pública teria ficado em 99,8%, ‘perigosamente’ próximo de não baixarmos da fasquia ‘cosmética’ dos 100%.

Por maioria de razão, não haveria também margem para acomodar um desagravamento fiscal como o proposto pelo PSD para 2023, ficando assim evidente que, para além do objetivo do último Governo de Costa de concentrar benesses em 2024, ano de eleições europeias, havia uma meta adicional pessoal de Medina a justificar a rejeição, baixar o rácio de dívida pública abaixo da dita fasquia de 100%.

A degradação dos serviços públicos revela a insustentabilidade da política de desinvestimento dos governos de António Costa, mais a deficiente organização e a ineficiência dos serviços. A ineficiência da despesa, por ausência de uma reforma da Administração Pública, significa que ela é maior do que deveria ser, explicando os aumentos sucessivos da carga fiscal, cada vez mais insustentável. A subida da carga fiscal e a queda do investimento, que ajudaram ao excedente de 2023, não podem, por isso, continuar, até porque penalizam o potencial de crescimento da economia e a continuidade do Estado social.

A outra conclusão que retiro é que a política orçamental de 2023 esteve refém de uma meta artificial para o rácio da dívida pública apenas para efeitos de ‘marketing político’, que já não dá jeito no atual momento político ao novo líder do PS, mas que prosseguiu a narrativa das ditas ‘contas certas’ da herança de Costa. Uma estratégia escolhida para descolar da quase bancarrota da governação socialista de José Sócrates, que conduziu o País ao doloroso programa de ajustamento económico e financeiro de 2011-2014.

Em perspetiva, retomando a questão da capacidade de acomodação de aumento de salários de determinados grupos no atual OE 2024, essa margem parece existir este ano, mas a sustentabilidade a médio e longo prazos dessa e de outras medidas de acréscimo permanente da despesa pública exige uma alteração de políticas tendo em vista a elevação do potencial de crescimento da economia. Desde logo a redução da elevada carga fiscal, o aumento do investimento público reprodutivo e o necessário aumento da eficiência da despesa pública em geral enquanto fator permissivo – através, nomeadamente, de uma melhor organização e gestão dos serviços e recursos –, entre outras medidas de redução dos custos de contexto e promoção da competitividade da economia como os propostos no programa eleitoral da AD.

De facto, assumindo que o saldo estrutural de 2024 de -0,1% do PIB potencial está bem calculado, significa que, mesmo sem as medidas de aumento de despesa permanente a adotar proximamente, o rácio da despesa corrigida (do ciclo e de medidas temporárias) no PIB potencial já é ligeiramente superior ao rácio da receita corrigida no PIB potencial. Assim, o aumento da despesa permanente só será sustentável a longo prazo (i.e., só não gerará desequilíbrio orçamental) se houver, em simultâneo, uma elevação do crescimento económico potencial, até porque os efeitos do PRR a esse nível são temporários, como mostra o Ageing Report de 2024 da Comissão Europeia.

Ora, reformas estruturais requerem estabilidade de políticas, o que, no atual quadro de fragmentação do Parlamento -– em que a força política mais votada, a AD, tem apenas uma frágil maioria relativa -–, exigirá uma enorme capacidade de diálogo e construção de pontes por parte do novo Governo. Só assim as medidas do seu programa eleitoral poderão ser tomadas e implementadas sem reversão, mas tal requer, também, abertura ao diálogo por parte das outras forças políticas. A responsabilidade cabe a todos os agentes políticos do novo Parlamento eleito, foi essa uma das principais mensagens do voto popular, assim como a necessidade urgente de uma mudança substantiva de políticas públicas.

Tabela 1 – Saldo orçamental (% do PIB) e crescimento económico (%) em 2023 e 2024 – dados oficiais entre outubro de 2022 e março de 2024

Tabela 2 – Saldo orçamental de 2023 e principais componentes comparados com a execução de 2022 e com as previsões para 2023 do OE 2023 e do OE 2024 (dados em Contabilidade Nacional)

Figura 1 – FBCF pública: orçamento e execução (mil milhões de euros)

Figura 2 – Rácio de dívida pública (RDP) em 2023 observado e o que se teria verificado na hipótese da FBCF pública orçamentada ter sido integralmente executada (valores em % do PIB)

  • Diretor da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, Professor Catedrático e sócio fundador do OBEGEF

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