BCE prepara terreno para cortar juros pela primeira vez desde 2019
O BCE deverá validar que o primeiro corte de juros acontecerá em junho, mas esconder o jogo na evolução da política monetária na segunda metade do ano.
Com a inflação da Zona Euro a aliviar em direção à meta dos 2% e a atividade económica a permanecer débil, estão reunidas as condições para o Banco Central Europeu (BCE) começar a baixar o nível restritivo da política monetária. O primeiro corte não deverá acontecer já na reunião desta quinta-feira, porque o banco central ainda necessita de uma maior confiança de que a inflação está controlada e não surgirão efeitos secundários relacionados com a evolução dos salários e dos preços das matérias-primas.
Contudo, o BCE não deverá esperar muito mais tempo e existe um consenso cada vez mais forte de que o mês de junho será marcado pelo primeiro corte de juros da Zona Euro em quase cinco anos. O BCE desceu os juros pela última vez em setembro de 2019, quando colocou a taxa dos depósitos em -0,5%. Os juros ficaram em mínimos históricos até julho de 2022, seguindo-se depois 10 agravamentos consecutivos em pouco mais de um ano, num total de 450 pontos base.
O banco central e Christine Lagarde deverão aproveitar a reunião de hoje para reforçar esta perspetiva, sendo que existe a dúvida se o vai fazer de forma explícita (pré-anunciando o corte de juros em junho), ou deixar apenas o terreno preparado avançar daqui a dois meses. Já na reunião de março a presidente do BCE tinha dado um passo em frente para baixar os juros, mencionando que “saberemos um pouco mais em abril, mas saberemos muito mais em junho”.
Os dados revelados desde então deram ao banco central maior confiança para inverter a política monetária. A inflação de março baixou para 2,4%, um mínimo desde julho de 2021. O indicador subjacente, que exclui alimentos e energia, baixou duas décimas para 2,9%, o que representa o nível mais baixo desde fevereiro de 2022.
No que diz respeito à atividade económica, os dados mais recentes apontam para a continuação da estagnação, embora com alguns sinais de melhoria em março. A indústria está finalmente a recuperar e os indicadores avançados sugerem que o ponto mais baixo do ciclo já ficou para trás. Este progresso não deverá, contudo, ser suficiente para impedir uma recessão técnica na Alemanha.
Até à reunião de 6 de junho serão conhecidos os dados do PIB dos países da Zona Euro no primeiro trimestre, os números da inflação de abril e maio e, mais relevante, a evolução dos salários. Será a última peça do puzzle para o BCE avançar com cortes de juros, sendo expetável que se acentue a tendência de abrandamento já evidente no último trimestre de 2024.
Ainda à espera destes dados, o Comité de Política Monetária do BCE deverá assim optar pela quinta manutenção da taxa dos depósitos, que está nos 4% desde o último aumento em setembro de 2023. A taxa de juro aplicável às operações principais de refinanciamento e as taxas de juro aplicáveis à facilidade permanente de cedência de liquidez devem permanecer nos 4,5% e 4,75%, respetivamente.
Não esperamos um corte nas taxas já em abril, mas acreditamos que o BCE deixará para junho o primeiro corte de 25 pontos base. O rumo da economia é propício a uma redução das taxas, com a inflação a aproximar-se dos 2%, sem sinais de efeitos de segunda ordem que comprometam o objetivo, e a atividade a estagnar num ambiente monetário restritivo.
BCE esconde o jogo após junho
As poucas dúvidas que existiam sobre a abertura para o BCE baixar os juros em junho ficaram desfeitas depois de dois dos membros mais conservadores (“falcões”) do Conselho do BCE (Joachim Nagel do Bundesbank e Robert Holzmann do banco central da Áustria) terem admitido este cenário. Alguns líderes de outros bancos centrais de países da Zona Euro defenderam que o corte de juros deveria estar em cima da mesa nesta reunião de abril, mas a probabilidade de tal acontecer é considerada “minúscula” pelos economistas.
O interesse está assim na comunicação que será adotada pelo BCE para sinalizar o alívio em junho e qual será o grau de compromisso com descidas adicionais nos meses seguintes. Os investidores estão a descontar um corte acumulado entre 80 a 90 pontos base em 2024, o que aponta para pelo menos três cortes de 25 pontos base até dezembro. O consenso dos economistas é semelhante, com a sondagem da Bloomberg a apontar para três cortes de juros este ano, com uma redução em cada trimestre. Depois de junho, o BCE tem reuniões agendadas para 18 de julho, 12 de setembro, 17 de outubro e 12 de dezembro.
“Não esperamos um corte nas taxas já em abril, mas acreditamos que o BCE deixará para junho o primeiro corte de 25 pontos base”, anteveem os economistas do BPI, salientando que “o rumo da economia é propício a uma redução das taxas, com a inflação a aproximar-se dos 2%, sem sinais de efeitos de segunda ordem que comprometam o objetivo, e a atividade a estagnar num ambiente monetário restritivo, com elevada incerteza e fraca procura externa”.
A Capital Economics espera que o BCE sinalize claramente que os juros vão descer em junho, arriscando até a declaração que deverá ser utilizada por Lagarde: “se os próximos dados económicos confirmarem que as perspetivas de março do BCE continuam válidas, o Conselho do BCE espera cortar as taxas de referência em junho”.
Contudo, a consultora alerta que o banco central não deverá dar mais sinais, “evitando um compromisso, ou até um comentário, sobre qualquer trajetória específica para as taxas de juro além de junho”. Isto porque o BCE prefere esperar pela evolução dos dados económicos e “provavelmente não existirá um consenso sobre o rumo das taxas e juro ao longo do próximo ano ou dois”. A Capital Economics estima cortes de 100 pontos base este ano, mais 75 pontos base em 2025, o que colocará a taxa dos depósitos em 2,25%.
Enquanto a economia não estiver em recessão e os riscos para a inflação permanecerem ascendentes, o BCE optará por uma política ‘lenta’ de cortes de 25 pontos base em cada trimestre. Qualquer cenário mais agressivo induziria pânico e exigiria uma perspetiva de crescimento mais adversa para a Zona Euro.
A Ebury também considera “pouco provável que Lagarde indique o ritmo das reduções de juros”, optando antes por “reiterar a dependência dos dados”. A reunião desta quinta-feira será utilizada pelo BCE para aumentar a probabilidade de os juros descerem em junho, sem oferecer qualquer pista adicional para os movimentos posteriores, refere a firma especialista no mercado cambial, antecipando que qualquer desvio deste guião poderá gerar uma forte oscilação na cotação do euro.
A Allianz Global Investors alinha na mesma previsão, aguardando um discurso “cauteloso” do BCE, que “confirme a alta probabilidade de um primeiro corte em junho e o apresente como um primeiro passo para a normalização da política”. Contudo, “o BCE deve insistir que os futuros cortes não estão garantidos e dependerão da trajetória previsível da inflação”, salienta Franck Dixmier, diretor global de investimentos em obrigações da gestora alemã.
Ricardo Evangelista, diretor executivo da ActivTrades Europe, considera ser “mais provável” que o discurso do BCE “se mantenha cauteloso”, pois “em dois meses muita coisa pode mudar” e “haveria pouco a ganhar com o descartar de um cenário que pode não ser assim tão descabido, considerando que a economia da Zona Euro se mantém com níveis de crescimento baixos e a inflação tem caído mais rapidamente do que se chegou a antecipar”.
O Deutsche Bank é dos bancos mais agressivos nas expetativas para a evolução da política monetária do BCE, estimando cortes de 25 pontos base em todas as cinco reuniões que restam este ano e uma descida para 2% em 2025. O banco alemão reconhece que esta previsão “é um pouco agressiva e requer um enfraquecimento adicional dos indicadores de atividade económica”.
O ING classifica esta reunião como a “paragem final antes do corte”, servindo como um “prelúdio de mais um ponto de viragem” para a política monetária na Zona Euro. “Enquanto a economia não estiver em recessão e os riscos para a inflação e as perspetivas de inflação permanecerem ascendentes, o BCE optará por uma política ‘lenta’ de cortes de 25 pontos base em cada trimestre”, referem os economistas do banco dos Países Baixos, salientando que “qualquer cenário mais agressivo de redução das taxas induziria pânico e exigiria uma perspetiva de crescimento mais adversa para a Zona Euro”.
A economia da Zona Euro está longe de apresentar a vitalidade da norte-americana, com a inflação a estar também em níveis mais baixos. O mais provável é que o BCE avance mesmo com um primeiro corte em junho, que será de 25 pontos base, e que repita, pelo menos, mais duas vezes até ao final do ano.
Fed e petróleo representam ameaça
Como se tem visto nos últimos meses, as perspetivas para a evolução da política monetária mudam de forma célere, pelo que não deve ser dado por garantido que o BCE vai mesmo avançar com um ciclo de corte de taxas de juro. A política monetária da Fed e a evolução dos preços do petróleo representam a maior ameaça, embora os economistas descartem que seja suficiente para demover o BCE de reduzir o nível restritivo das taxas de juro.
A evolução robusta da economia norte-americana, a par da persistência da inflação em níveis elevados nos Estados Unidos, levou o mercado a reduzir o número de cortes de juros estimados para a Fed este ano para apenas dois, estando em dúvida se a primeira baixa de juros acontece já em junho. O petróleo atingiu um máximo desde outubro acima de 90 dólares por barril, acumulando uma subida de 16% em 2024, o que faz ressurgir o fantasma das pressões inflacionistas impulsionadas pelos preços da energia.
Ricardo Evangelista reconhece que “é real a possibilidade de a Fed esperar até à segunda metade do ano para começar a cortar nas taxas de juro”, bem como o “risco de uma nova crise energética provocada pela turbulência geopolítica”. Mas assinala que “a economia da Zona Euro está longe de apresentar a vitalidade da norte-americana, com a inflação a estar também em níveis mais baixos”, pelo que “o mais provável é que o BCE avance mesmo com um primeiro corte em junho, que será de 25 pontos base, e que repita, pelo menos, mais duas vezes até ao final do ano”.
A Ebury considera que o BCE tem argumentos mais fortes do que os bancos centrais dos EUA e Reino Unido para começar a baixar os juros, pelo que “se o processo de desinflação não descarrilar, é provável que venhamos a assistir a um progresso decente na normalização da política monetária da Zona Euro este ano”.
O Deutsche Bank salienta que o BCE deve definir a política monetária em função dos dados económicos. “Tendo em conta o crescimento mais baixo, inflação mais reduzida e condições orçamentais mais rigorosas, o BCE pode cortar os juros antes da Fed e adotar uma magnitude e frequência diferente, sobretudo no início do ciclo”, referem os economistas do banco alemão. Advertem que “com o andar do tempo e as condições de política monetária normalizadas, o papel do diferencial de taxas de juro entre os EUA e a Zona Euro assumirá maior importância e poderemos assistir a uma influência mais forte da política da Fed nas decisões do BCE”.
O cenário de o BCE descer os juros antes da Fed e reduzir a política monetária de forma mais intensa saiu reforçada esta quarta-feira, depois de ter sido revelado que a inflação de março nos Estados Unidos subiu para 3,5%, superando o estimado pelos economistas e o registado em fevereiro (3,2%). O dólar reagiu em forte alta e vários analistas já admitem a possibilidade de o euro regressar à paridade face ao dólar (desvalorização de 8% face aos níveis atuais).
A Capital Economics acredita que este cenário não devera demover o BCE de cortar os juros em junho, pois os dois bancos centrais “estão a responder a condições económicas domésticas diferentes”. Mesmo que o euro enfraqueça, ”duvidamos que os responsáveis do BCE fiquem particularmente preocupados” e só uma desvalorização muito pronunciada da moeda europeia “terá um impacto significativo nas perspetivas para a inflação”.
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