As plataformas digitais (e os algoritmos) são um elemento chave dos partidos em altura de campanha eleitoral. UE vai regulamentar papel da IA, mas já não vai a tempo das eleições europeias.
Numa altura em que os 27 Estados-membros se preparam para ir a eleições para a formação do futuro Parlamento Europeu, a preocupação para o uso indevido da inteligência artificial (IA) e a disseminação de propaganda enganosa nas redes sociais em altura de campanha eleitoral volta a ganhar força. Além das ruas, os partidos recorrem às plataformas para expor as suas mensagens, e o algoritmo certifica-se de que estas chegam às pessoas certas.
“Não podemos dizer aos partidos para não usar as redes sociais. É aí que estão as pessoas agora. Mas não pode ser indiferente a forma como [usam]“, diz-nos numa conversa em Bruxelas, Dragos Tudorache, um dos correlatores da lei da IA da União Europeia, a primeira no mundo e que foi adotada este ano após vários anos de negociação.
O âmbito da lei é vasto, cobrindo várias áreas, entre elas, a proibição da vigilância biométrica, imposição de uma maior transparência em sistemas como ChatGPT, rotulagem de imagens, vídeos ou áudios gerados por IA (deep fakes), ou até mesmo a proibição de sistemas de pontuação social, algoritmos que condicionam o comportamento humano.
Apesar do avanço, a lei só deverá entrar em vigor em 2026, falhando o sufrágio europeu marcado para o próximo dia 9 de junho em Portugal, isto numa altura em que os temas relacionados com a segurança, defesa e alargamento dos membros da UE estão no topo da agenda do debate político na UE
Do lado das Nações Unidas, já foi emitido um alerta para o alto risco de uso indevido de IA em ano de muitas eleições (serão cerca de 70 em todo o mundo), no qual realça que os períodos pré-eleitorais são muitas vezes terreno fértil para propaganda enganosa. Os próprios partidos políticos concorrentes às eleições para o Parlamento Europeu comprometeram-se a renunciar ao uso de inteligência artificial para propaganda enganosa. Mas o risco continua presente.
Ao ECO, o eurodeputado romeno do partido europeu S&D (família do PS) e correlator da lei da IA admite que o pacote legislativo chega “muito tarde” e que nas próximas eleições europeias os eleitores terão que recorrer à “resiliência” e “pensamento crítico” para avaliar os conteúdos que consomem nas redes sociais em altura de campanha. Isto numa altura em que a própria União Europeia — e numa tentativa de chamar mais eleitores às urnas — prepara-se para usar as plataformas digitais para apelar ao voto.
Estamos a dois meses das eleições europeias, numa altura de rápido desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) nas plataformas digitais e com temas quentes em cima da mesa. Teme que a influência negativa desta tecnologia nestas eleições seja maior?
O mais importante não é pensar no que pode acontecer, mas sim no que tem acontecido sem nos apercebermos. O algoritmo das redes sociais desenvolve-se através de inteligência artificial. Toda a otimização de processos está no coração das plataformas digitais e dita como funcionam. Como promovem determinados conteúdos, como os apresentam aos utilizadores. Falamos de conteúdo que reflete aquilo que gostamos, que reforça e valida os conceitos e ideias que temos. E isto já acontece há algum tempo.
Quando falamos do impacto da AI nas eleições temos que perceber que isso já aconteceu, dentro e fora da Europa, porque as redes sociais não foram regulamentadas durante 15 anos. A tecnologia foi-se desenvolvendo e hoje contribuiu muito para os temas divisórios da nossa sociedade, porque nos prende em bolhas que só reproduzem aquilo que queremos ouvir e ler. E isso tem perturbado os níveis de tolerância, de debate e viciado ideias, refletindo-se também no comportamento eleitoral e político. Vimo-lo a acontecer no Brexit e vemos acontecer agora com muitos debates políticos, como a migração ou a guerra [na Ucrânia]. Demorámos algum tempo a perceber que, para além da reação orgânica da sociedade a certos temas, houve algo orquestrado. E essa engenharia é feita através da exploração de algumas vulnerabilidades. Portanto, isso já influenciou o espaço político. Não podemos continuar a ser todos selvagens e livres. Tem de haver algumas regras.
Além da lei da IA, o Regulamento Serviços Digitais (DSA) também desempenha um papel porque olha para estas plataformas, em particular as redes sociais, e atribui-lhes um sentido de responsabilidade. Essas plataformas já não se podem desresponsabilizar dos conteúdos que são publicados e proliferados nas suas redes sob o argumento da liberdade de expressão.
Mas condiciona de alguma forma a liberdade de expressão dos utilizadores?
As pessoas vão poder continuar a dizer o que querem. Não se trata dos utilizadores. A liberdade de expressão continua a ser o coração da democracia e portanto deve continuar a ser protegida. Mas não podemos permitir que as redes sociais sejam indiferentes. São canais dessa liberdade de expressão.
Se eu publicasse algo no Twitter e o Twitter o deixasse lá, então seria apenas um canal cego, surdo e indiferente à nossa expressão. Seria como se abríssemos uma janela e disséssemos alguma coisa para a rua. Mas as plataformas sociais não se limitam a ser apenas o local onde colocamos as nossas opiniões. Na verdade, pegam na vossa opinião, passam-na pelo algoritmo e enviam-na para os que pensam de igual fora. E este é o tipo de responsabilidade que dizemos que as plataformas devem ter. Pegam nesse conteúdo que é livremente expresso, e que não deve ser censurado de forma alguma, mas depois amalgamam-no, aceleram-no, simplificam-no. Enviam-no apenas para alguns e não para outros. E é aí que desempenham efetivamente um papel. Tornaram-se num player no jogo da informação, tal como um jornalista, uma estação de televisão ou um jornal.
Mas tem efeitos práticos? Já os vemos?
Ainda não. O DSA foi aprovado no ano passado e apenas se tornou legalmente aplicável em fevereiro. Já a lei da IA só entrará em vigor em 2026. A Comissão já arrancou com a primeira ronda de negociações com as grandes plataformas no sentido de perceber de que forma os pacotes devem ser adotados.
E as plataformas estão dispostas as fazer essa mudança?
Claro que não.
Porquê?
Porque afeta o modelo de negócio que tem como base o engagement. O objetivo fundamental de uma plataforma é manter os utilizadores o maior tempo possível na plataforma, por causa da publicidade. E os algoritmos são ajustados de forma a maximizar a permanência dos utilizadores na plataforma.
Mas não será tarde demais para essa transformação?
É certamente muito tarde. Ao longo dos últimos dez anos temos tentado revolver o problema através do diálogo. Tentámos com compromissos voluntários, com princípios, com a criação de um código de conduta para as plataformas. De alguma forma, pensámos que as plataformas compreenderiam os riscos sociais do seu modelo de negócio e não queríamos ter de forçar uma ação por via da regulamentação. Mas rapidamente percebemos que não estava a funcionar. Houve alguma resistência. E vimos isso refletido nos temas divisórios.
A lei da IA tenta antecipar um pouco o que deveríamos ter feito com as redes sociais há dez anos. Agora somos reativos. Estamos a tentar recuperar o terreno perdido. Poder-se-ia dizer que é demasiado tarde. Eu diria que mais vale tarde do que nunca.
É certamente muito tarde. Para as eleições deste ano a única coisa que nos resta é a nossa própria resiliência como eleitores. Os utilizadores devem prestar mais atenção e ter um pensamento crítico mais forte.
Intervieram agora, mas não a tempo das eleições europeias.
É verdade. Para as eleições deste ano, penso que estamos sobretudo no status quo. Estamos, em grande parte, no mesmo tipo de ambiente em que estávamos nos últimos anos, sem estas salvaguardas adicionais, digamos, em vigor. Portanto, a única coisa que nos resta é a nossa própria resiliência como eleitores, de certa forma. As mudanças começarão a surtir efeito no próximo ciclo eleitoral.
Mas penso que estas leis também têm a sua vantagem. O debate criado em torno destas regras também é importante. Leva a uma maior consciencialização da sociedade. Os utilizadores devem prestar mais atenção e ter um pensamento crítico mais forte. Mas sei que não é fácil quebrar hábitos.
Especialmente quando os partidos têm levado as campanhas também para as redes sociais.
Sim, mas não podemos dizer aos partidos para não usar as redes sociais. É aí que estão as pessoas agora. Se quisermos falar com os jovens hoje em dia, quer gostemos ou não do TikTok, temos de ir para o TikTok. Mas não pode ser indiferente a forma como isso se faz. Os partidos devem continuar a utilizar essas ferramenta, mas de forma responsável.
A legislação aplica-se apenas na UE. É esperado que outros países sigam o mesmo caminho?
Estou convencido que sim. Recebemos esse feedback de vários países nesse sentido. A partir do momento em que definamos um modelo aqui na União Europeia, outros seguirão.
Então, podemos dizer que estamos à beira de uma nova era das redes sociais?
Será interessante ver o que vai acontecer. Não consigo prever exatamente a direção que isto vai seguir. As plataformas digitais vão ter que adaptar os seus modelos de negócio, quer queiram quer não, ao mercado europeu. O nosso dever enquanto decisores políticos, é não baixar os braços e ser muito claro quanto à missão, os valores e os objetivos destas leis. Continuaremos a exercer pressão sobre os grandes operadores do mercado para que cumpram as suas obrigações.
Não podemos dizer aos partidos para não usar as redes sociais. É aí que estão as pessoas agora. Mas não pode ser indiferente a forma como [usam]. Os partidos podem devem continuar a utilizar essas ferramenta, mas de forma responsável.
Os partidos mais extremados tendem a ser os que mais beneficiam dos efeitos negativos destes algoritmos, sobretudo nos ditos temas quentes. Está preocupado com a possibilidade de isso se refletir nos resultados eleitorais?
Penso que [nas eleições europeias] vamos ter resultados semelhantes em muitos outros Estados-Membros. O que significa que, sim, haverá também uma maior presença dessas vozes e desses pontos de vista no Parlamento Europeu, nas instituições europeias. Se isso será isso suficiente para alterar o equilíbrio? Continuo a pensar que continuaremos a ser uma maioria fortemente pró-europeia.
Existem Estados-membros mais suscetíveis aos impactos negativos destas tecnologias?
Alguns Estados-membros estão mais concentrados em acelerar os benefícios da IA, atuando de forma proativa na estimulação de ecossistemas de IA, como em França, Espanha, Dinamarca e Países Baixos. Há alguns que são mais eficazes do que outros. Penso que os governos que não compreenderem a necessidade de investir muito rapidamente — não só monetariamente, mas também na educação e requalificação da população — serão os mais negativamente afetados. Há uma enorme responsabilidade sobre os governos. Terão de investir agora, o mais rapidamente possível.
A jornalista viajou para Bruxelas a convite do Parlamento Europeu
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UE prepara eleições com campanha nas redes e sem lei da IA. Eleitores devem ter “pensamento crítico forte”
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