Do “Pfizergate” à nomeação do representante das PME, as polémicas que marcaram o mandato de Ursula von der Leyen

  • Joana Abrantes Gomes
  • 4 Junho 2024

A pandemia e a Ucrânia conferiram protagonismo à política alemã. Mas casos como a negociação de vacinas com o CEO da Pfizer ou a parcialidade sobre o Médio Oriente podem custar-lhe o segundo mandato.

Quando Ursula von der Leyen apresentou a transição verde e digital como a prioridade política do seu mandato à frente da Comissão Europeia, estava longe de imaginar a série de desafios com que teve de lidar ao longo dos cinco anos seguintes. A resposta à pandemia de Covid-19 e o apoio à Ucrânia na sequência da invasão russa foram reconhecidos sucessos, mas ainda assim não a livraram de algumas polémicas.

A primeira controvérsia surgiu mesmo durante a pandemia, com a negociação da aquisição de milhares de milhões de vacinas numa troca de mensagens de texto com o CEO da Pfizer. Um caso que, passados três anos, está a ser investigado pela Procuradoria Europeia.

Não obstante, a polémica mais sonante, que mereceu, inclusive, críticas desde eurodeputados a diplomatas e líderes dos Estados-membros da União Europeia (UE), foi a “parcialidade” com que von der Leyen — que concorre a um segundo mandato à frente do Executivo comunitário — geriu o conflito na Faixa de Gaza, entre o Hamas e Israel.

Pfizergate, a negociação da compra de vacinas por mensagens

A gestão da pandemia de Covid-19 é amplamente vista como um grande sucesso do atual mandato da líder do Executivo comunitário. Por um lado, pelo investimento na investigação, que tornou possível a produção de uma vacina no espaço de um ano, e a própria distribuição célere das vacinas pelos 27 Estados-membros; e, por outro lado, o acordo para a emissão conjunta de dívida pública para financiar a recuperação da economia europeia.

No entanto, a primeira polémica de von der Leyen surgiu precisamente na resposta à pandemia. Face ao arranque demorado das campanhas de vacinação nos países da UE e as falhas na entrega de vacinas pela farmacêutica AstraZeneca, por problemas de produção, a presidente da Comissão Europeia entrou em cena, negociando diretamente com o CEO da Pfizer, por mensagens de texto, a compra de 1,8 mil milhões de doses, por um valor estimado de 20 mil milhões de euros.

Confrontada com acusações de falta de transparência, Ursula von der Leyen admitiu essa negociação em abril de 2021, mas, desde então, o Executivo comunitário tem recusado divulgar as mensagens de texto em causa — cujo acesso foi pedido, primeiro, por um site noticioso alemão e, depois, pelo jornal norte-americano The New York Times, tendo ambos apresentado queixas junto da Provedoria de Justiça Europeia –, alegando que, dada a sua “natureza de curta duração”, são classificadas como documentos da UE e, como tal, não foram arquivadas.

O caso, conhecido como “Pfizergate”, está agora nas mãos da Procuradoria Europeia, que se encontra a investigar suspeitas de “interferência em funções públicas, eliminação de mensagens de texto, corrupção e conflito de interesses”. A investigação, aberta inicialmente pelas autoridades judiciais belgas há mais de um ano, partiu de uma queixa-crime de um lobista local, a quem se juntaram, mais tarde, os governos da Hungria e da Polónia — que retirou a queixa após a tomada de posse de Donald Tusk.

Sofagate, a polémica que expôs a (falta de) relação com Michel

Ainda no auge da pandemia, a líder do Executivo comunitário viu-se envolvida noutra polémica, desta vez durante um encontro com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, e o Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, realizado em abril de 2021 em Ancara, na Turquia.

Num salão do palácio presidencial, os dois líderes sentaram-se lado a lado, em duas cadeiras, com as bandeiras da Turquia e da União Europeia como pano de fundo, enquanto à presidente da Comissão Europeia estava atribuído um lugar num sofá afastado de Michel e Erdogan. O incómodo de von der Leyen com o assento que lhe fora atribuído foi visível num vídeo filmado à sua chegada.

 

“Eu sou a presidente da Comissão Europeia, e é assim que esperava ser tratada quando visitei a Turquia há duas semanas: como presidente da Comissão. Mas não fui. Não posso encontrar nos tratados da UE qualquer justificação para a forma como fui tratada, pelo que tenho de concluir que aconteceu porque sou uma mulher”, comentou, mais tarde, num debate no Parlamento Europeu sobre os resultados da reunião em Ancara, em que abordou o incidente diplomático — que, ironicamente, passou a ser designado como “sofagate” e levou a críticas ao comportamento de Charles Michel, que se limitou a sentar-se na cadeira que lhe foi atribuída.

A gafe com o número de mortos na Ucrânia

O protagonismo de Ursula von der Leyen voltou a ser evidente na sequência da invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022, ao liderar, desde o primeiro momento, o apoio da UE a Kiev e ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Embora seja reconhecido como outro ponto positivo do seu mandato, para além da resposta à pandemia, também aqui teve mais um momento controverso.

No final de novembro de 2022, a presidente da Comissão Europeia estimava, num vídeo publicado na sua conta na rede social Twitter (agora designada X), que “mais de 100 mil oficiais militares ucranianos” tinham sido mortos até àquele momento. Mas o vídeo foi apagado e posteriormente republicado sem as declarações de von der Leyen sobre o número de ucranianos mortos desde o início do conflito.

Numa publicação na mesma rede social, a diretora para a Comunicação Política do Executivo comunitário clarificou as declarações de von der Leyen sobre as baixas ucranianas na guerra, agradecendo “àqueles que assinalaram a inexatidão em relação aos números numa versão anterior do vídeo”. “A estimativa utilizada, de fontes externas, deveria referir-se a vítimas, ou seja, mortos e feridos, e pretendia mostrar a brutalidade da Rússia“, esclareceu então Dana Spinant. Os números nunca foram confirmados, nem pelo Estado Maior General das Forças Armadas Ucranianas.

Acordos contra migração ilegal com regimes autoritários

Primeiro com a Tunísia, depois a Mauritânia e, por fim, o Egito. Nos últimos meses do seu mandato, a Comissão Europeia assinou acordos de milhões de euros para apoiar as economias destes países, mas que incluem verbas destinadas a travar os fluxos de migração irregular, sendo alvo de críticas de diversas organizações, que questionam o respeito pelos direitos humanos nesses Estados.

No caso da Tunísia, somam-se os relatos nos media de abusos e expulsões de migrantes da África subsariana, chegando a ser abandonados no meio de florestas ou desertos, perante os quais a Provedora de Justiça Europeia já pediu esclarecimentos ao Executivo comunitário sobre como é que o acordo salvaguarda os direitos e as liberdades dos migrantes.

A parceria com o Egito, por seu lado, prevê 200 milhões de euros para a luta contra o contrabando e o tráfico de seres humanos, depois de a UE ter assistido a um aumento dramático nos pedidos de asilo de cidadãos egípcios: de 6.616, em 2021, para 26.512, em 2023, segundo a Agência da União Europeia para o Asilo (EUAA), com a maioria destes pedidos a registar-se em Itália.

Gestão “parcial” do conflito em Gaza

Se na liderança do apoio da UE à Ucrânia começaram a surgir fricções com alguns líderes dos Estados-membros, que sentiam que estaria a extrapolar as suas funções — nomeadamente em matéria de política externa, em que os tratados não atribuem qualquer papel à Comissão –, a gestão do conflito no Médio Oriente fez chover críticas contra Ursula von der Leyen, acusada de “parcialidade” tanto lá fora como no seio das instituições europeias.

A polémica teve início quando um dos seus comissários anunciou, aparentemente sem consulta prévia, a suspensão “imediata” de todos os pagamentos ao abrigo do apoio destinado ao desenvolvimento da Palestina, no valor de 691 milhões de euros. A decisão não foi bem recebida na comunidade europeia e internacional, sendo criticada, inclusive, pelo Governo português e a Organização das Nações Unidas (ONU).

Horas após o anúncio, o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, esclareceu que a Comissão Europeia iria apenas rever a ajuda humanitária à Faixa de Gaza – que, no final dessa semana, decidiu triplicar, para 75 milhões de euros – e não suspender os devidos pagamentos, argumentando que “castigar o povo palestiniano só iria prejudicar os interesses da União Europeia na região e encorajar ainda mais os terroristas”.

As reações políticas negativas atingiram o seu auge, no entanto, na sequência da viagem de von der Leyen a Israel. Ao lado do primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, a presidente da Comissão Europeia afirmou que o país tem o direito de se defender, sem instar ao respeito pelo direito internacional humanitário. Esta posição estava longe daquela acordada dias antes pelos ministros dos Negócios Estrangeiros dos 27 Estados-membros, que, além de condenar os ataques do Hamas, apelava “à proteção dos civis e à contenção, à libertação dos reféns e à permissão do acesso a alimentos, água e medicamentos em Gaza, em conformidade com o direito humanitário internacional”.

Desde eurodeputados e diplomatas a chefes de Governo e de Estado, os críticos não se tardaram a fazer ouvir. Porém, o principal “puxão de orelhas” veio mesmo do seio da Comissão, com o chefe da diplomacia europeia a deixar claro que a “posição oficial” da UE sobre qualquer política externa é definida pelo Conselho Europeu e pelo Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros – o que exige sempre a unanimidade dos 27.

Von der Leyen procurou retratar-se das acusações logo no dia seguinte à viagem, no comunicado em que a Comissão anunciava o aumento da ajuda humanitária a Gaza, declarando o “apoio ao direito de Israel de se defender contra os terroristas do Hamas, no pleno respeito do direito humanitário internacional”, enquanto o porta-voz do Executivo afirmou, dias depois, que a alemã fora a Israel representar apenas a Comissão e não a posição dos Estados-membros.

A presidente da Comissão Europeia no momento em que fez uma distinção, pela primeira vez, entre o ataque do movimento islamita Hamas e a população palestiniana, defendendo que “o terror” também está a ameaçar “os inocentes palestinianos”.Lusa

Favoritismo na escolha do representante das PME

Numa altura em que já faltavam poucos meses para as eleições europeias e von der Leyen já tinha anunciado a sua candidatura como spitzenkandidat pelo Partido Popular Europeu (PPE), a líder do Executivo comunitário vê-se envolvida em mais uma controvérsia, desta feita enfrentando acusações de favoritismo por membros do Colégio de Comissários.

Estava em causa a nomeação do eurodeputado alemão Markus Pieper, membro da União Democrata-Cristã da Alemanha (CDU, na sigla em alemão) – o mesmo partido de von der Leyen –, para o cargo de representante para as pequenas e médias empresas (PME), apesar de não ser o candidato recomendado pelo júri do concurso de recrutamento, que atribuiu uma classificação 30% superior a outras duas finalistas consideradas mais qualificadas para o posto, de acordo com o Politico.

Preocupados com a transparência da nomeação, quatro comissários – Josep Borrell; Nicolas Schmit (com a pasta do Emprego e Direitos Sociais e que concorre às europeias como spitzenkandidat dos Socialistas & Democratas); Paolo Gentiloni (com a pasta da Economia); e Thierry Breton (com a pasta do Mercado Interno) – escreveram uma carta a pedir esclarecimentos a Ursula von der Leyen.

“Todos os processos são claros, limpos e transparentes, e é por isso que o representante das PME tem uma posição forte”, respondeu a presidente da Comissão, em meados de abril, quando questionada sobre a polémica nomeação. Markus Pieper acabaria por renunciar ao cargo dias mais tarde, pondo fim a um caso que também granjeou um título: “Piepergate”.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Do “Pfizergate” à nomeação do representante das PME, as polémicas que marcaram o mandato de Ursula von der Leyen

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião