É a diferença que mais o chocou em relação aos Estados Unidos e que o leva a defender as quotas. Sobre Trump diz que vai ser uma administração ineficaz num país polarizado.
Estamos na última parte da entrevista, oportunidade para falarmos dos Estados Unidos, do olhar de quem se sente estrangeiro em Portugal e no país onde é professor. Uma das diferenças que mais choca Nuno Garoupa é a desigualdade de género que ainda subsiste em Portugal manifestada nomeadamente com a identificação por “a mulher de…” alguém.
Sobre o que se passa agora nos Estados Unidos, antecipa que Donald Trump fará pouco do que prometeu mas usará algumas medidas como bandeira, É o caso do acordo de Paris que se traduz apenas em ganhos, incluindo as criticas internacionais que apenas o reforçam. A polarização da sociedade norte-americana merece também o alerta de Nuno Garoupa, muito diferente daquela a que se assiste em Portugal. Nos Estados Unidos é como que constituída por duas tribos que não se cruzam. E a administração Trump enfrenta grande dificuldades em encontrar quadros para preencher os lugares que tem.
Durante muitos anos deu aulas nos EUA, depois esteve em Portugal a liderar a Fundação Francisco Manuel dos Santos e voltou agora para os EUA. Sente-se um americano em Portugal e um português na América?
Penso que isso acontece com quase todos os emigrantes. A certa altura há esta mistura de culturas e acabamos por ser um pouco estrangeiros no nosso país, mas continuamos a ser estrangeiros noutro país.
Sentiu-se estrangeiro quando este aqui à frente da Fundação?
Senti. Há aspetos da cultura portuguesa que são algo perturbadores. O que é mais gritante é a igualdade de género, a forma como se continua a ter uma enorme desigualdade de género, a mim parece-se muito distinto do que nos EUA.
Há mais igualdade de género nos EUA?
Acho que sim. Tem a ver com a forma como os aspetos da vida pessoal da mulher não entram. Aqui, as pessoas continuam a conversar sobre se determinada senhora é a mulher de não sei quem. Isso é uma coisa que desapareceu completamente nos EUA.
Não consigo perceber o que me está a dizer…
Por exemplo, ainda hoje abro os jornais e tenho notícias sobre a mulher de fulano tal que vai ser candidata, ou foi nomeada para aquilo. Isto mostra uma desigualdade de género implícita ainda na nossa mentalidade, porque ninguém escreve o marido de fulana tal. É um aspeto cultural. É aquele tipo de desigualdade de género que não se consegue eliminar com legislação.
Como é que se confrontou com essa realidade quando veio para Portugal?
Porque na minha atividade tive de lidar com diferentes contextos políticos e económicos, com diferentes instituições, e foi uma das coisas que me surpreendeu em muitas conversas, como de facto inevitavelmente acabávamos a olhar para as pessoas como a mulher de… Isso revela de facto um problema subjacente à nossa cultura, que não se resolve com legislação.
"Hoje sou mais fã das quotas do que era há 20 anos quando fui para os EUA, porque a quotas têm custos mas criam um padrão de comportamento que, na geração seguinte, ajudam muito mais à igualdade de género.”
Acha que se resolve com quotas?
Hoje sou mais fã das quotas do que era há 20 anos quando fui para os EUA, porque a quotas têm custos mas criam um padrão de comportamento que, na geração seguinte, ajudam muito mais à igualdade de género. Vejo as quotas como uma espécie de via verde para a igualdade de género. Não gosto, não sou favorável, porque tendo uma visão muito mais liberal da economia acho que as quotas fazem parte de uma visão dirigista da economia e da sociedade. Mas, como via verde para essa igualdade, tenho uma visão muito mais favorável das quotas do que tinha há 20 anos.
A América está muito polarizada e foi isso que esta eleição mostrou. (…) De um lado, estão os brancos com níveis de educação mais baixos e, do outro, estão os brancos com níveis de educação mais altos e as minorias. E estes mundos não convivem.
A América mudou muito com Trump?
O grande problema de Trump vai ser que a América não mudou, nem muda tão facilmente. A América está muito polarizada e foi isso que esta eleição mostrou. A sociedade portuguesa também se polarizou muito à volta da austeridade e da esquerda direita, mas é uma polarização fundamentalmente ideológica e que coexiste em vários escalões da sociedade portuguesa. Já a polarização americana é sociodemográfica e isso tem uma consequência. De um lado, estão os brancos com níveis de educação mais baixos e, do outro, estão os brancos com níveis de educação mais altos e as minorias. E estes mundos não não convivem, não há discussão, nem confrontação de ideias. Isto está a vincar e a reforçar os diferentes enviesamentos que têm. Como duas tribos que vivem uma ao lado da outra, em que o ódio vai-se cultivando, mas como não falam uma com a outra tudo o que é preconceito vai-se reforçando. Daí que a vitória do Trump em muitos segmentos da população foi um verdadeiro choque, porque nunca lhes passou pela cabeça que ele pudesse ganhar. Mas bastava-lhes ter atravessado a rua para perceber que havia imensos apoiantes e eleitores de Trump.
No mundo em que se movimenta, como é que o veem?
O mundo académico nos EUA é muito diferente do português. O mundo académico português é muito mais diverso do ponto de vista ideológico, há pessoas de esquerda e de direita. Nos EUA, há muitos anos que o mundo académico americano é de um lado, portanto é esmagadoramente contrário ao Trump. Com uma agravante, a grande parte da direita académica é uma direita libertária, que não votou Trump e não gosta da administração Trump. Desse ponto de vista, é difícil encontrar alguma universidade, das de elite, que se possa dizer que é do mundo do Trump. Isto tem consequência que em Portugal não estamos a acompanhar com cuidado. Trump ainda não conseguiu preencher todos os lugares da administração, porque não tem nomes para os lugares. A administração norte-americana é um pouco semelhante a Portugal: o partido que ganha tem direito a nomear tudo, a começar pelo porteiro do Ministério. O partido Republicano ganhou e quer ficar com esses lugares da administração, o problema é que Trump e a sua equipa não têm quadros. Neste momento, quase dois terços das embaixadas norte-americanas estão por preencher porque não têm quem queira ou quem eles confiem que possa executar as políticas da administração Trump. Isso está a criar até problemas ao funcionamento da administração norte-americana. Uma situação que se agravou por Trump ter dito, durante a sua campanha, que não queria ter lobistas no seu governo, sendo que três quartos do pessoal que os partidos recrutam são lobistas. É preciso não esquecer que nos EUA isto está regulamentado. Quando o partido passa à oposição todo aquele pessoal político que passa para a oposição vai funcionar como lobista. As carreiras destas pessoas normalmente passam por estarem entre a administração e as empresas de lóbi. Como Trump não quer ter lobistas, que seria a segunda fonte de recrutamento, não encontra facilmente pessoas para os lugares.
É possível adivinhar o que é que vai acontecer?
Eu creio que a administração Trump vai ser uma administração bastante ineficaz, o que significa que tem aspetos positivos e negativos. O aspeto positivo é que grande parte das políticas nem sequer vão começar a ser implementadas, quanto mais executadas. Portanto, muitas das preocupações que temos, mais domésticas do que internacionais, vão desaparecer porque ele não tem condições para as executar. O lado negativo é que ele, vai compensar isso com decisões emblemáticas – e parte disso tem a ver com o acordo de Paris – para convencer o seu eleitorado de que está a fazer grandes alterações. Podemos discordar completamente da decisão dos EUA abandonarem o acordo de Paris, mas temos de perceber que, do ponto de vista de Trump, é uma decisão relativamente barata. Porque tem enormes benefícios eleitorais e os custos são mínimos. As empresas que já fizeram os investimentos para estarem de acordo com os objetivos de Paris vão continuar a fazê-lo, porque não os vão reverter. Os que não fizeram também não vão fazer. De certa maneira é win win para ele. Estar a ser criticado no mundo inteiro é também um win para ele. As pessoas cá não percebem que quanto mais criticado a nível internacional, mais Trump sai reforçado a nível interno. Outra questão são as parcerias comerciais. Acabar com a NAFTA vai ter repercussões na economia do Texas e da Califórnia e, apesar da administração Trump não querer saber da economia da Califórnia, porque é um Estado democrata, o facto é que é uma das maiores economias dos EUA. Portanto, uma recessão na Califórnia pode acarretar uma recessão em todos os EUA. O Estado do Texas é completamente diferente: é um baluarte dos republicanos, e uma saída da NAFTA que leve, como se estima, à perde de um milhão de empregos, preocupa a administração Trump porque afeta diretamente a sua base eleitoral. A questão da NAFTA vai ter decisões completamente diferentes do que teve o acordo de Paris.
Trump pode recuar?
Pode recuar, pode tentar encontrar um meio-termo, pode fazer aquilo que eu acho que ele faz que são soluções em que na prática mantenham a NAFTA, com uma retórica que lhe permita dizer que a redesenhou completamente.
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O que mais me choca é a desigualdade de género em Portugal, diz Nuno Garoupa
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