BCE dá tiro de partida em ciclo lento e incerto de descida de juros

O BCE vai cortar os juros pela primeira vez em quase cinco anos, mas a persistência da inflação acima da meta deve limitar descidas adicionais. Os economistas apontam a um corte por trimestre.

O Banco Central Europeu (BCE) deverá anunciar esta quinta-feira o primeiro corte das taxas de juro da Zona Euro desde 2019, respondendo à tendência de alívio da inflação desde que atingiu um máximo histórico em outubro de 2022. A decisão é altamente expectável e será histórica por diversos motivos, desde logo por ser a primeira vez que o BCE se antecipa à Reserva Federal Fed) no corte de juros e inicia um ciclo de alívio de política monetária sem a economia da Zona Euro estar em recessão, ou a caminho dessa evolução negativa.

O Comité de Política Monetária do BCE deverá assim anunciar (13:15 hora de Lisboa) a descida da taxa dos depósitos em 25 pontos base, para 3,75%. A taxa de juro aplicável às operações principais de refinanciamento e as taxas de juro aplicáveis à facilidade permanente de cedência de liquidez devem baixar na mesma proporção, para 4,25% e 4,5%, respetivamente.

O BCE desceu os juros pela última vez em setembro de 2019, quando colocou a taxa dos depósitos em -0,5%. Os juros ficaram em mínimos históricos até julho de 2022, seguindo-se depois 10 agravamentos consecutivos em pouco mais de um ano, num total de 450 pontos base.

A taxa dos depósitos na Zona Euro está estável em 4% desde setembro do ano passado, sendo que o ritmo de descida de juros neste ciclo de alívio será bem menos intenso do que se verificou no ciclo de agravamento de juros, que foi o mais agressivo na história do BCE.

Se já não era expectável que o BCE embarcasse numa corrida desenfreada de corte de juros, os dados económicos mais recentes vieram reforçar a necessidade de o banco central adotar uma postura cautelosa. Depois de ter “arrastado os pés” no início do ciclo de subida de juros para responder ao disparo da inflação em 2021, o BCE não vai querer repetir o erro de política monetária de permitir que a evolução dos preços persista por muito mais tempo acima da meta dos 2%.

A inflação da Zona Euro aumentou em maio para 2,6% (2,4% em abril), o crescimento dos salários negociados em contratação coletiva acelerou para 4,7% no primeiro trimestre (4,5% no quarto trimestre de 2023) e a taxa de desemprego da Zona Euro recuou para 6,4% em abril, o que representa um mínimo histórico no conjunto dos países que partilham o euro. O PIB da Zona Euro cresceu 0,3% no primeiro trimestre e os indicadores avançados apontam para uma aceleração da atividade económica no resto do ano.

O BCE vai querer gerir, de modo muito conservador e cauteloso, as expectativas relativas a reduções futuras das taxas de juro. Este deverá ser um ciclo de descida de taxas de juro ‘atípico’. A possível persistência das pressões inflacionistas, sobretudo no setor dos serviços, fará com que tais cortes sejam relativamente pequenos e graduais.

Ricardo Sousa, professor da Universidade do Minho

Lagarde “esconde o jogo”

Os responsáveis do BCE deixaram bem claro que os juros iriam começar a descer em junho, pelo que estes dados não colocam em causa a decisão desta quinta-feira, que os economistas até admitem que pode ser unânime no Conselho do BCE. Contudo, vai refrear o discurso do banco central, pelo que as palavras de Christine Lagarde na conferência desta tarde deverão ser pautadas pela cautela, “escondendo o jogo” sobre as decisões que serão adotadas nos próximos meses.

“Mesmo antes dos dados mais recentes, já esperava que Lagarde deixasse claro que o ciclo [de corte de juros] será gradual e cauteloso”, diz ao ECO Bas van Geffen, senior macro strategist do RaboResearch, assinalando que os dados da inflação de maio e dos salários do primeiro trimestre “complicam a narrativa do BCE”, apesar do banco central ter a seu favor o argumento de que estas evoluções são temporárias e a “tendência continua a apontar para uma inflação mais baixa”. A subida da inflação em maio é sobretudo explicada pelo efeito base (fim de medidas de apoio baixaram os preços no período homólogo) e aceleração dos salários ficou circunscrita ao mercado alemão devido a subidas pontuais.

“Os dados não impedem o corte de juros em junho, mas espero que Lagarde se abstenha de fornecer orientações sobre as próximas reuniões”, acrescenta Bas van Geffen, acreditando que se existir um forward guidance, será para “sinalizar que não haverá um novo corte de juros em julho”. O economista do banco dos Países Baixos salienta que como o mercado não está a contar com descidas consecutivas de juros, “há poucos motivos para o BCE proferir muitas palavras sobre este assunto”.

Ricardo Sousa, professor da Universidade do Minho, assinala que o “BCE vai querer gerir, de modo muito conservador e cauteloso, as expectativas relativas a reduções futuras das taxas de juro”. O economista destaca que “este deverá ser um ciclo de descida de taxas de juro ‘atípico’”, uma vez que o BCE vai antecipar-se à Fed e “a possível persistência das pressões inflacionistas, sobretudo no setor dos serviços, fará com que tais cortes sejam relativamente pequenos e graduais”. Também porque “a inflação não caiu ao ritmo desejado pelo BCE”.

Luca Mezzomo, head of macroeconomic analysis do Intesa Sanpaolo, estima que o BCE vai “manter a sua atual abordagem dependente de dados”, com decisões adotadas reunião a reunião. “Não será fornecida qualquer orientação sobre a reunião de julho, a menos que exista um consenso sobre o que fazer”, diz o economista ao ECO, salientando que “com os altos e baixos da inflação e alguma incerteza sobre se a produtividade pode compensar a dinâmica dos salários, espero que o BCE espere até setembro antes de cortar novamente os juros”.

“Com a dinâmica económica a superar as expectativas e a inflação interna a revelar-se rígida em 2024, o BCE pode dar-se ao luxo de agir devagar e deixar que os dados definam os parâmetros do ciclo de flexibilização da política monetária”, defende o Deutsche Bank. Os economistas do banco alemão acrescentam que “levará algum tempo até que os dados confirmem os progressos” que estarão espelhados nas novas projeções do staff do BCE, pelo que o banco central “manterá a opção política de abordagem reunião a reunião, dependente de dados”.

“Esperamos que a presidente Lagarde argumente que o processo de desinflação está no caminho certo”, permitindo o alívio da política monetária muito restritiva, “mas que as pressões internas sobre os preços permanecem firmes”, o que exige uma descida de juros dependente dos dados, refere o Goldman Sachs. “Esperamos que Lagarde note que o Conselho do BCE terá poucos dados novos em julho, mas mais informações com as projeções atualizadas em setembro para avaliar se a desinflação continua no bom caminho”, acrescenta.

Carsten Brzeski salienta que a evolução da política monetária do BCE após junho “é tudo menos clara”, pois o “risco de reflação aumentou claramente”. Para o global head of macro do ING, ainda é incerto se o corte de juros desta quinta-feira será o primeiro de muitos (“one is none”), ou um ato isolado (“one is done”). “Quaisquer sinais de subida da inflação e atividade económica mais forte vão limitar a margem de manobra” do BCE, por isso “esperamos que este seja um corte de juros conservador (‘hawkish’)” e que, “pelo menos na conferência de imprensa, tente não fornecer qualquer orientação” sobre os próximos movimentos.

A única coisa que justifica cortes mais rápidos nos juros é um progresso visivelmente mais rápido na desinflação e menor incertezas quanto ao cumprimento da meta de inflação. Mesmo que a recuperação da economia não altere as expectativas de inflação, um crescimento mais forte do que o esperado poderá acrescentar riscos ascendentes.

Bas van Geffen, senior macro strategist do RaboResearch

Um corte por trimestre

O consenso dos economistas também aponta para uma postura cautelosa e gradual do BCE, sendo estas duas das palavras mais repetidas nas notas de antevisão dos bancos à reunião desta quinta-feira. As habituais sondagens publicadas pela Reuters e Bloomberg sugerem que o banco central efetue três cortes de juros este ano, com uma redução em cada trimestre.

Após a reunião desta quinta-feira, o BCE tem reuniões a 18 de julho, 12 de setembro, 17 de outubro e 12 de dezembro. Os economistas estão a apontar para cortes em setembro e dezembro, sendo que nestas reuniões o staff do BCE vai atualizar as suas projeções económicas, que são habitualmente os momentos preferidos pelo banco central para alterar a sua política monetária.

Os mercados, habitualmente mais agressivos a prever cortes de juros, desta vez até estão mais contidos. Apontam atualmente para um corte de 60 pontos base em 2024, pelo que à descida em dezembro está a ser atribuída uma probabilidade em redor de 50%. Um cenário bem diferente do registado no início do ano, altura em que os investidores chegaram a precificar seis cortes de juros (150 pontos base) em 2024.

As expetativas têm sido alteradas em função dos dados económicos (baixa mais ténue da inflação) e a incerteza sobre os próximos movimentos continua a ser bastante elevada, o que está também espelhada na amplitude de estimativas dos diversos economistas.

Embora afaste o cenário de um novo corte de juros em julho, a Capital Economics estima reduções de 25 pontos base nas três reuniões seguintes, o que perfaz quatro cortes em 2024 até 3%. “Continuamos a pensar que o processo de desinflação está no bom caminho”, argumenta Andrew Kenningham, economista-chefe para a Europa da consultora.

O Goldman Sachs tem uma perspetiva alinhada com a média, estimando um corte de 25 pontos base por trimestre até a taxa dos depósitos atingir um valor terminal de 2,25% no final de 2025. O banco de investimento atribui uma probabilidade de 45% a este cenário base, 35% a uma descida ainda mais lenta (um corte por semestre) e apenas 20% a cortes mais rápidos.

O Deutsche Bank aponta para entre dois a quatro cortes de juros este ano, com o cenário central de três, tendo revisto em alta a taxa terminal, de 2% para um intervalo entre 2 e 2,5%. “Existem muitas fontes de incerteza pela frente, especialmente em 2025, pelo que a política do BCE poderá seguir vários caminhos”, referem os economistas do banco alemão.

Com os altos e baixos da inflação e alguma incerteza sobre se a produtividade pode compensar a dinâmica dos salários, espero que o BCE espere até setembro antes de cortar novamente os juros.

Luca Mezzomo, head of macroeconomic analysis do Intesa Sanpaolo

Fed não trava BCE

Um dos constrangimentos que pode condicionar a política monetária do BCE está nas decisões que serão adotadas no outro lado do Atlântico. A descida desta quinta-feira marcará uma rutura com o passado, já que nunca o banco central da Zona Euro se antecipou à Fed no pontapé de saída no ciclo de alívio da política monetária.

Os economistas defendem que o BCE tem argumentos para “avançar sozinho” e pode prosseguir com o alívio da política monetária mesmo que a Fed permaneça com as taxas de juro em máximos de mais de 20 anos até ao final do ano. Nos Estados Unidos a inflação elevada está a revelar-se mais persistente e a atividade económica permanece resiliente.

Luca Mezzomo destaca que “taxas de juro mais elevadas da Fed não exigem necessariamente taxas mais elevadas na Zona Euro”, pois a “questão está em saber se o efeito cambial prevalece sobre a correlação entre as yields do euro e do dólar”. O economista do Intesa Sanpaolo entende que “um menor alívio da Fed pode até exigir que o BCE corte mais os juros e não menos”.

“Apesar de um corte das taxas de juro por parte do BCE não acompanhado de uma redução das taxas de juro por parte da Fed poder levar a uma depreciação do euro face ao dólar, é pouco crível que o diferencial de taxas de juro entre as duas economias tenha impacto significativo ao ponto de causar alguma inflação importada”, assinala Ricardo Sousa, acrescentando que “seria, sobretudo, um potencial ressurgimento dos choques da oferta agregada a ‘atrasar’ ou ‘pôr em cheque’ qualquer redução futura das taxas de juro”.

“O diferencial de taxas de juro e das taxas de câmbio são possíveis motivos de preocupação, mas o euro tem de desvalorizar bastante para ter impacto significativo na Inflação”, assinala Bas van Geffen. O economista do RaboResearch estima que uma queda de 1% na cotação do euro só impulsiona a inflação europeia em 5 pontos base, prevendo um impacto mais significativo noutras divisas se a Fed continuar a adiar os cortes de juros.

Ricardo Evangelista considera que a política monetária da Fed terá uma maior influência. “A inflação continua a ser um problema e, ao baixar os juros em junho, o BCE adianta-se relativamente à Fed e Banco de Inglaterra, um cenário que poderá provocar uma desvalorização do euro e que, por conseguinte, pode agravar o problema da subida dos preços, sobretudo da energia e matérias-primas”, alerta o diretor executivo da ActivTrades Europe.

Penso que não seria prudente da parte do BCE ter uma postura mais agressiva relativamente aos cortes dos juros, uma vez que arriscaria perder de novo o controlo da inflação e potencialmente ter que reverter esses cortes.

Ricardo Evangelista, diretor executivo da ActivTrades Europe

Inflação é que manda

Tendo o BCE a convicção mais firme de que a inflação está a caminho da meta dos 2% e o crescimento económico ainda frágil, faria sentido o BCE acelerar a redução de juros para apoiar a evolução da atividade económica? Os economistas ouvidos pelo ECO não metem as fichas neste cenário.

A única coisa que justifica cortes mais rápidos nos juros é um progresso visivelmente mais rápido na desinflação e menor incertezas quanto ao cumprimento da meta de inflação”, comenta Bas van Geffen. “Mesmo que a recuperação da economia não altere as expectativas de inflação, um crescimento mais forte do que o esperado poderá acrescentar riscos ascendentes”, pelo que “não defenderia cortes mais rápidos nas taxas se a recuperação acelerar”, refere o economista do RaboResearch, salientando que “poderá justificar ainda mais cautela por parte do BCE no futuro”.

Penso que não seria prudente da parte do BCE ter uma postura mais agressiva relativamente aos cortes dos juros, uma vez que arriscaria perder de novo o controlo da inflação e potencialmente ter que reverter esses cortes”, adverte Ricardo Evangelista.

Luca Mezzomo destaca que o banco central “tem de ser preventivo” e “não podemos esquecer que as perspetivas são incertas e o BCE tem como principal mandato a estabilidade dos preços”. Após “três anos com a inflação acima da meta, penso que não basta que a média das expectativas estejam alinhadas com a meta: o BCE também necessita de manter bastante baixo o risco de superar o objetivo”. É por isso que o economista do Intesa aguarda que o “BCE alivie a política monetária de forma muito gradual este ano, para poder cortar os juros de forma mais célere no próximo ano, salvo quaisquer choques negativos”.

O professor da Universidade do Minho assinala que “a inflação elevada observa-se, sobretudo, nas categorias de produtos e serviços que, grosso modo, o BCE não controla”. Culpando o “endurecimento monetário levado a cabo pelo BCE” pela estagnação da atividade económica na Zona Euro, Ricardo Sousa considera que “sacrificou-se o crescimento económico a troco de uma meta de 2% para a inflação”.

Como as “condições monetárias continuam a ser bastante restritivas”, a “probabilidade da Zona Euro arriscar uma aterragem brusca (hard landing) continua a ser real”, pelo que Ricardo Sousa defende que, depois da “elevada magnitude e o ritmo acelerado” de subida das taxas de juro, devia agora surgir uma “reversão semelhante da condução da política monetária durante a trajetória descendente da inflação”.

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