Não é apenas a falta de chuva que está a levar à seca no país. Especialistas apontam algumas medidas para combater a escassez de água.
Perdas na rede, baixa eficiência dos equipamentos, falta de origens de água alternativas, são alguns dos problemas com os quais o país se debate, no que diz respeito à seca. “O que temos de fazer é aumentar a eficiência do uso da água e obter novas disponibilidades de água”, sintetiza o presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, Filipe Duarte Santos.
Das soluções nas quais o país está já a dar alguns passos àquelas mais imberbes, conheça as mais citadas pelas entidades do setor da água, turismo e agricultura mas também pela academia.
- Este artigo integra a 7.ª edição do ECO magazine, e é a segunda parte do Especial “Um país atacado pela seca, mas ainda sem estratégia“. Pode comprar a revista aqui.
Remendar as perdas na rede
A Deco Proteste realça que, só em 2022, 162 milhões de metros cúbicos de água já tratada foram desperdiçados ao longo da rede de distribuição. Isto corresponde a 88 milhões de euros de água não faturada num ano e, olhando para o conjunto dos últimos dez anos, o custo atinge os 840 milhões.
De acordo com os dados da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), as empresas responsáveis pelo abastecimento em baixa (o que chega às casas) continuam a desperdiçar, em média, 27,1% da água que entra nas redes. Estes dados — os mais recentes, referentes a 2022 — mostram uma redução de apenas três pontos percentuais em cinco anos. Registam-se 39 empresas cujas perdas superam os 50%, e cujo desperdício supera os 80% nos casos mais gravosos, assinala a Indaqua.
Na ótica dos autores do Roteiro Nacional de Adaptação 2100 (RNA2100), as perdas de água na distribuição urbana deveriam atingir níveis de eficiência de 90%. No caso do Algarve, as perdas deveriam ser colocadas rapidamente abaixo dos 20%, defende também António Pina, presidente da Comunidade Intermunicipal do Algarve (AMAL). É, aliás, a AMAL que está a coordenar a aplicação dos cerca de 44 milhões disponíveis para a redução de perdas de água no setor urbano, no âmbito do Plano de Eficiência Hídrica. “Já foram aprovadas 33 candidaturas em 13 municípios algarvios, a que correspondem 25,83 milhões de euros e 95 empreitadas e aquisição de serviços, sendo que na grande maioria dos casos as obras já estão a decorrer”, informa.
"A falta de proatividade na renovação e reabilitação das redes é uma das principais causas dos elevados níveis de perdas, roturas e colapsos.”
No final da execução das medidas de redução de perdas, até 2026, prevê-se que estejam reabilitados 125 quilómetros de rede de abastecimento de água em baixa, o que se traduz numa redução de 2 hectómetros cúbicos (hm3) na procura.
“A redução de perdas é possível no curto prazo e com investimentos baixos” garante o CEO da Indaqua, Pedro Perdigão, sobretudo em comparação com soluções como barragens ou dessalinizadoras.
Uma opção é a aplicação de sensores ou ferramentas de inteligência artificial que permitam detetar fugas, roturas e padrões de consumo, eliminando-os rapidamente no terreno. Sendo que a água que se perde tem de ser captada, tratada, transportada, armazenada e distribuída, não estamos só a falar de uma perda ambiental mas também económica, salienta a ERSAR.
Também a redução de pressão em zonas críticas, a renovação de parques de contadores ou a deteção de consumos ilícitos são ações possíveis. “Quanto melhor a rede for gerida e ‘tratada’, mais será possível atrasar a sua substituição por completo”, defende Pedro Perdigão.
“A falta de proatividade na renovação e reabilitação das redes é uma das principais causas dos elevados níveis de perdas, roturas e colapsos”, identifica Vera Eiró. Estas deviam ser renovadas a uma taxa entre os 1,5% e os 4% ao ano, mas esta meta “está longe de ser cumprida”, com a taxa a ficar-se atualmente, em média, pelos 0,6%.
A ERSAR fala de “um país a duas velocidades”. Por um lado, existem entidades gestoras ao nível das melhores do mundo, com desempenho de excelência. Por outro lado, entidades que, devido à sua reduzida dimensão, à insuficiente capacitação técnica, à impossibilidade de obtenção de financiamento em condições vantajosas ou, simplesmente, menor capacidade ou inconsistência de gestão, têm demonstrado dificuldades em conseguir melhorar os serviços prestados às populações e em aumentar a sua sustentabilidade e resiliência.
Preço da água pode ter de subir
“Se pensarmos no valor da água, em como ela é essencial para todas as atividades económicas, provavelmente não estamos a fazer um bom trabalho do ponto de vista da valorização da água”, atira Pedro Matos Soares, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e coordenador da equipa que elaborou o RNA 2100.
“Estamos perante um setor com pouca capacidade de gestão, e não só da água”, defende Pedro Perdigão. Isto porque muitas entidades gestoras ainda não refletem nas faturas o custo real do abastecimento, algo que é obrigatório por lei, e que dificulta a melhoria das infraestruturas e inovação, indica o CEO da Indaqua.
A maioria das entidades gestoras que não recupera os gastos com a prestação dos serviços opera em gestão direta — serviços municipais, municipalizados e associações de municípios —, indica a ERSAR, afetando a respetiva a sustentabilidade económica e financeira.
"Estamos perante um setor com pouca capacidade de gestão, e não só da água.”
Uma das formas através das quais a ERSAR tem procurado otimizar os tarifários e a qualidade do serviço é a promoção de agregações entre entidades gestoras, no sentido de aumentar as economias de escala.
No caso do Algarve, e no âmbito das medidas de contingência de janeiro, o regulador recomendou que as entidades gestoras subissem os preços para os maiores consumos, de forma a desincentivar gastos de água maiores e menos essenciais, como o enchimento de piscinas. No entanto, só dois municípios (dos 16 no Algarve) atuaram no sentido de rever em alta as tarifas de água para clientes domésticos e não domésticos, respeitando a recomendação.
Neste cenário de maior alívio, António Pina, presidente da AMAL, acredita que “já não faz sentido continuar com esta medida”, e que era contraditório comunicar às famílias que os cortes impostos são menores, mas o preço, ainda assim, subiria.
Eficiência pede melhorias, da agricultura ao turismo
O controlo das perdas na rede é uma questão de eficiência, mas esta pode ser melhorada em muitos outros campos. No caso dos agricultores, o presidente da AJAP – Associação dos Jovens Agricultores de Portugal, Firmino Cordeiro, acredita que é apenas “uma minoria” a fatia que ainda tem de investir substancialmente na eficiência: tratar-se-ão, essencialmente, dos pequenos agricultores. O mesmo garante que o setor é cada vez mais eficiente em relação aos consumos e sistemas de rega e que está mais desperto para o mundo da agricultura de precisão, que consome menos água. “Da nossa parte, estamos a fazer tudo ao nosso alcance, porque olhamos para o nosso pequeno furo e pequena charca e dizemos: tenho de me ajustar”, ilustra o presidente da AJAP. O RNA2100 sugere que, em todos os casos aos quais seja aplicável a rega gota a gota, deve ser mesmo esta a opção, porque a eficiência desta solução está entre os 90 e os 95%.
O mesmo relatório é apologista da adoção de variantes agrícolas mais resistentes às alterações do clima, mas também à seca e ao calor, assim como às pestes associadas a um clima mais extremo. Firmino Cordeiro acredita que “nunca houve tanta sintonia” entre a academia e agricultores, que estão atentos às novidades da investigação e esperam aplicá-las o mais rápido possível. É contudo importante reduzir a burocracia que está entre a teoria e a prática, alerta. Mas e quanto à substituição das culturas por outras menos exigentes no consumo de água? Nesse sentido, Firmino Cordeiro levanta sobretudo questões: os citrinos sempre foram plantados no Algarve, e o consumo de água é elevado, como também o é o do abacate. “Vamos acabar com isso tudo? Fazemos só alfarroba no Algarve? E como se pagava o investimento a quem o fez?”, questiona.
No setor do turismo, desde março que a ação tem um nome: Selo de Eficiência Hídrica Save Water. Este selo é atribuído no momento em que os empreendimentos turísticos subscrevem um Compromisso com a Eficiência Hídrica, do qual deverão constar 30 medidas para uma melhor gestão e poupança da água. Estas devem ser aplicadas até ao final do ano, faseadamente. Além disso, as empresas passam a ter de monitorizar os consumos e a registar numa plataforma própria o respetivo progresso. A Agência Portuguesa para a Energia (ADENE) está encarregue de fiscalizar.
Dos 600 empreendimentos que o Turismo do Algarve tem registados, 100 já aderiram a esta iniciativa, e o peso “sobe” se se notar que estes 100 aderentes representam 30% do total de camas na região. “Em dois meses, creio ser um número interessante”, avalia André Gomes, presidente do Turismo do Algarve. Loulé, Portimão e Lagoa são os municípios com mais adesão.
As medidas mais escolhidas para aplicação foram melhorias através de dispositivos (cabeças de chuveiro, redutores de caudal para as torneiras), a diminuição dos volumes de rega e atuar nos “equipamentos”, que inclui a suspensão do funcionamento de lagos e fontes ornamentais, num âmbito mais imediato, e a adoção de máquinas de lavar a roupa e loiça mais eficientes, numa ótica mais estrutural.
Entre 1 e 15 de maio, deu-se a primeira fase de reporte, pelo que a associação já dispõe de alguns dados, mas ainda não estão tratados e disponíveis. De qualquer forma, “em termos genéricos, quer em abril quer em maio, deu-se uma redução efetiva do consumo urbano [turismo e residencial]”, indica o presidente do Turismo do Algarve.
O objetivo é não ficar por aqui. “Vimos com muito agrado outros subsetores da atividade do turismo a virem ter connosco”, no sentido de se juntarem à iniciativa, indica André Gomes. É o caso do alojamento local, que tem mais de 4.000 registos na região, mas também das empresas de aluguer automóvel e da restauração. “Estamos a trabalhar no sentido de que selo venha abranger estes subsetores”, afirmou o responsável. Entretanto, o Governo já veio acrescentar, como resolução do Consleho de Ministros, que estes subsetores passariam a ser abrangidos pelo Selo Save Water.
Por agora, a associação turística continua a divulgação do selo, e não só: dispõe de 10 milhões de euros, fundos do Turismo de Portugal, para atribuir a empreendimentos que decidam avançar com obras estruturais no âmbito de eficiência hídrica.
Além dos empreendimentos turísticos, há outro conjunto de empresas que está no “centro” do turismo que se pratica no Sul do país, e que também tem aplicado medidas de eficiência. No Algarve há 43 campos de golfe, a maior fatia dos 99 distribuídos pelo país.
“Os campos de golfe não são o ‘papão’ da água em Portugal”, sublinha Miguel Franco de Sousa, presidente da Federação Portuguesa de Golfe (FPG), apontando que esta atividade é responsável por 6,4% do total de água consumida nesta região.
“Atualmente, em particular no Algarve, os sistemas de rega utilizados pelos campos de golfe são cada vez mais modernos e sofisticados, permitindo um controlo da água minucioso”, garante o presidente da FPG. No Sul do país, os campos consomem entre 8.000 a 10.000 metros cúbicos (m3) de água por ano, sendo que a rega depende do clima local ou tipo de solo e relva. No Norte as necessidades de água para rega são mais reduzidas: cada hectare consome entre 4.000 a 5.000 m3.
Este setor tem melhorado a eficiência com a utilização de espécies de relva mais resilientes à escassez de água e através da redução da área regada para o estritamente necessário, de forma a regar somente a zona de jogo. “Os proprietários dos campos de golfe não têm qualquer interesse em apresentar consumos de água acima do estritamente necessário”, reforça Miguel Franco de Sousa. No entanto, a Federação não dispõe de dados sobre os consumos de água de cada clube e respetiva evolução.
A Federação realça ainda que esta atividade tem um impacto económico na ordem dos 2.000 milhões de euros anuais, ajudando a combater a sazonalidade do turismo no Algarve. Ainda assim, face à situação de seca da região, o responsável pela Federação reconhece que “toda a poupança poderá ser pouca”.
Da dessalinização à reutilização, novas fontes procuram-se
A principal vantagem da dessalinização, assinala a presidente da Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR), Vera Eiró, é o facto de a produção de água potável a partir de água do mar não ser afetada pelas condições climáticas que se venham a verificar no futuro. Assim, vem contribuir para o aumento da resiliência e das disponibilidades hídricas da região algarvia, independentemente de se tratar de um ano húmido ou de um ano seco.
De acordo com os dados disponibilizados pelas Águas do Algarve, o funcionamento em pleno da central de dessalinização permitirá produzir cerca de 16 hectómetros cúbicos (hm3) por ano, o que corresponde a cerca de 20% das necessidades hídricas anuais do setor urbano. E já se coloca a possibilidade de expansão no futuro, caso se venha a revelar necessário.
Do lado da AMAL, já se fala de um segundo investimento. “Defendemos uma segunda dessalinizadora, para termos uma forma de servir as populações e a principal atividade económica, que é o turismo”, introduz António Pina. Em Espanha, há mais de 500 centrais deste tipo, sublinha Filipe Duarte Santos, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável.
Outro aspeto positivo, retoma a ERSAR, reside no facto de a instalação de uma central desta natureza em Portugal permitir adquirir experiência e conhecimentos técnicos acerca do processo de dessalinização, que poderão vir a ser úteis no futuro, se se optar pela construção de outras instalações que recorram a esta tecnologia. A possibilidade de o Plano de Recuperação e Resiliência financiar, ainda que parcialmente, o investimento “constitui uma oportunidade única e de grande relevância, na medida em que permite a redução muito significativa do custo específico de produção de água”, conclui Vera Eiró.
"Defendemos uma segunda dessalinizadora, para termos uma forma de servir as populações e a principal atividade económica, que é o turismo.”
Do outro lado da moeda, Pedro Matos Soares relembra que “há muito poucos estudos claros do ponto de vista dos impactes ambientais e do custo da água associado a estes investimentos”, pelo que se impõe “decidir politicamente o que é uma visão estratégica, olhando para os recursos hídricos existentes” e balançando as vantagens com estes fatores contra.
No capítulo das “novas disponibilidades de água”, está ainda a possibilidade de usar águas residuais urbanas, devidamente tratadas, acrescenta Filipe Duarte Santos. A primeira vez que foi publicada legislação para esta atividade foi em 2019. Há “um grande atraso do nosso país relativamente a outros”, acusa o presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável.
Há iniciativa privada — o setor da hotelaria, em particular os campos de golfe — que no Algarve usa águas residuais tratadas, “mas é uma coisa mínima, com pouca expressão”, avalia Duarte Santos. No país, os três únicos campos de golfe que recorrem à água reutilizada para rega localizam-se todos no Algarve: os Salgados, Castro Marim e San Lorenzo.
Mais barragens e transvases?
Uma sugestão menos generalizada mas que vai sendo mencionada é a criação de novas barragens. Do ponto de vista da AMAL, não é necessário construir muitas barragens e com grande dimensão. Pequenas barragens e pequenos açudes, que provocam menos alterações na paisagem e na fauna, são uma melhor opção, sugere António Pina. O Governo afirma estar a avaliar a necessidade de criar novas infraestruturas, como é o caso das barragens, e que tem como prioridade aumentar a capacidade de armazenamento das infraestruturas existentes.
O Governo afirma estar a avaliar a necessidade de criar novas infraestruturas, como é o caso das barragens, e que tem como prioridade aumentar a capacidade de armazenamento das infraestruturas existentes.
Entre os agricultores, pedem-se mais soluções de armazenamento de grande dimensão. “Precisávamos de mais dois ou três Alquevas”, defende o líder da AJAP, referindo-se a barragens de grande capacidade. “Temos barragens que só fazem eletricidade no país, que não dão um litro de água para agricultura”, lamenta. “Seria uma ajuda” permitir aos agricultores que avançassem com charcas, furos e com barragens próprias de pequenas dimensões, defende Firmino Cordeiro.
Em paralelo, várias entidades vão invocando a possibilidade de construir transvases, isto é, uma ligação entre as bacias hidrográficas de diferentes rios. “Há uma certa desinformação sobre este assunto em Portugal. Diz-se ‘que horror’, uma autoestrada da água, mas já há transvases em Portugal”, indica Filipe Duarte Santos, referindo a ligação entre o Rio Tejo e o Rio Segura.
“O país é um só”, pelo que, desde que existam estudos a indicar que a redistribuição da água é boa para a economia e que não há impactes ambientais relevantes, os transvases devem estar em cima da mesa, na ótica do mesmo representante dos agricultores. O Turismo do Algarve está de acordo: “É uma questão de coesão territorial, ao nível do que são as disponibilidades de água do país.” A AMAL sublinha a necessidade de haver uma ligação à barragem do Pomarão, tendo em vista uma futura ligação ao Alqueva.
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