Ataque a Trump “une” candidatos na moderação do discurso, mas EUA continuam em “pré-guerra civil”
Depois de Biden e Trump apelarem à união na sequência do ataque ao ex-presidente, analistas antecipam um discurso mais moderado, mas não sabem por quanto tempo.
Reza a expressão popular que “uma imagem vale mais que mil palavras” e a fotografia tirada por Evan Vucci, o principal fotojornalista da agência Associated Press em Washington, segundos após Donald Trump ser atingido por uma bala na parte superior da orelha direita, é prova disso mesmo. A imagem em que se vê o ex-presidente norte-americano de punho erguido, com a bandeira dos EUA de fundo, enquanto o sangue lhe escorria pelo rosto, tem corrido mundo e, antecipam os analistas, deverá beneficiar – pelo menos por enquanto – o candidato republicano na corrida contra Joe Biden à Casa Branca. Apesar do apelo à união, há riscos de que o alegado atentado do último sábado faça escalar a violência política nas ruas de um país já bastante polarizado.
Com o início da convenção republicana esta segunda-feira, as sondagens já favoreceriam por si só o partido que realiza o evento, devido ao “efeito mediático” que dele resulta, mas o ataque ocorrido no último sábado, em que Trump teve “sorte” não só por ter sobrevivido com um ferimento muito ligeiro, como também por haver no local fotógrafos que registam imagens “icónicas” e “poderosas”, confere-lhe “vantagem” e coloca “dificuldades acrescidas” ao Partido Democrata e ao atual Presidente, explica Luís Tomé, professor catedrático na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), em declarações ao ECO. Isto porque, justifica, “numa primeira fase, um atentado favorece sempre a vítima“.
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António José Telo partilha esta opinião, enfatizando a atitude do ex-presidente na sequência do ataque – que, além de ter atingido Trump, matou uma pessoa e feriu outras duas com gravidade. “É o tipo de imagem e de atitude que a opinião pública norte-americana recebe muito bem, porque valoriza sempre o lutador, a pessoa que procura superar a adversidade e que não se dá por vencida. Num momento de grande perigo, tem uma atitude que não é de ‘deixem-me fugir’, é de apelar à luta”, assinala o historiador ao ECO.
As sondagens já começavam a favorecer Donald Trump em relação a Joe Biden antes do atentado no comício do candidato republicano no Estado da Pensilvânia, sobretudo desde o primeiro debate entre ambos no final de junho. A distância aumentou depois de na semana passada, durante a cimeira da NATO, o atual Chefe de Estado ter dado força às vozes preocupadas com a sua saúde quando, primeiro, introduziu o homólogo ucraniano como “Presidente Putin” – embora logo tenha corrigido a gafe – e, pouco depois, se tenha referido à vice-presidente Kamala Harris como “vice-presidente Trump”.
De acordo com o agregado de sondagens calculado pela plataforma especializada FiveThirtyEight, Biden e Trump surgiam taco a taco nas intenções de voto até à semana do debate. A partir de 28 de junho, a distância entre os dois candidatos começou a aumentar ligeiramente, com vantagem para o republicano. No domingo após o ataque que atingiu o ex-presidente, este surgia com 42,3% das intenções de voto contra 40,4% para o Presidente democrata.
Numa primeira fase, [um atentado] favorece sempre a vítima e, ainda por cima, Trump teve não só a sorte de ter sobrevivido com um ferimento muito ligeiro, como de haver fotógrafos que registam imagens verdadeiramente icónicas. Agora, não precisa de fazer muito, porque o peso de ser a vítima e imagens icónicas dão-lhe uma vantagem e colocam dificuldades acrescidas para o lado do Partido Democrata e para Biden.
O ataque contra Trump tem sido comparado com o momento em que Ronald Reagan foi baleado, em março de 1981. Na altura, as intenções de voto do então Presidente norte-americano junto do eleitorado esvaneceram-se poucas semanas após o atentado. Houve uma “compaixão” no imediato, mas isso esvaziou-se depois de se perceber que o atirador não tinha nenhuma motivação política ou contra Reagan, apenas tinha algumas perturbações e uma fixação na atriz Jodie Foster por causa do filme “Taxi Driver”, lembra Luís Tomé. No caso de Trump ainda não se esclareceu o que motivou o ataque. “Se se vier a saber, pode ajudar a amenizar tensões ou a agravá-las”, disse o também diretor do Departamento de Relações Internacionais da UAL.
Por enquanto, no curto prazo, é difícil ver que possa ter outro efeito que não seja favorecer o candidato republicano. Como nota também Bruno Cardoso Reis, professor convidado na Universidade de Georgetown, em Washington, “o efeito pode não ser enorme, mas as eleições nos EUA têm sido decididas por margens mínimas e [este ataque] tenderá a reforçar a vantagem que Trump já parecia ter em alguns Estados chave“, embora não signifique que a vitória deste seja garantida. Ainda assim, é necessário ver como evolui a campanha e as sondagens, inclusive se Joe Biden se irá manter na corrida – o que só se confirmará na convenção do Partido Democrata em agosto.
Candidatos moderam o discurso, mas candidato a vice de Trump já apontou o dedo a Biden
A menos de quatro meses de se poder conhecer os efeitos que terá nas urnas, o ataque contra o ex-presidente está a mudar, para já, o discurso dos dois principais partidos às presidenciais de novembro. Apesar de haver quem, à esquerda, considere o incidente uma encenação, nenhuma figura do Partido Democrata alimentou essas visões. Joe Biden, aliás, fez três declarações nas 24 horas seguintes, tendo não só condenado o mais recente episódio de violência política nos Estados Unidos, como apelou também à união. “Na América, resolvemos as nossas diferenças nas urnas, não com balas“, frisou.
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A expectativa é de que, pelo menos nas próximas semanas, a campanha democrata reforce a mensagem de que Joe Biden já tem denunciado há muito a violência política no país, desde o momento do assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021, em que apoiantes de Trump, instigados pelo então Presidente, tentaram impedir a contagem dos votos do colégio eleitoral e a certificação da vitória do democrata, até ao ataque do marido da ex-presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, em outubro de 2022. Além disso, o responsável da campanha já admitiu recuar nas mensagens que acusam Trump de ser uma “ameaça à democracia”.
Segundo Luís Tomé, ao mesmo tempo que Biden e o Partido Democrata mostram compaixão pelo adversário republicano, “não quererão vitimizá-lo nem dar muito azo a [eventuais] falhas do sistema de segurança, muito menos por responsabilidade da [sua] Administração”. “Continuará a manifestar as diferenças que tem em relação a Trump, mas de uma forma teoricamente mais contida”, antecipa o investigador da UAL, apesar das “dúvidas” de que seja capaz de o fazer devido à elevada polarização política no país.
É ainda expectável que alivie, mesmo que apenas temporariamente, o debate no seio do Partido Democrata e entre os seus apoiantes sobre se Joe Biden deve ou não abandonar a corrida. Contudo, Alberto Cunha, doutorando em Estudos Europeus no King’s College de Londres, considera possível que o atentado “acelere as movimentações no seio do partido para se encontrar uma alternativa”, devido à desvantagem de Biden nas sondagens, nomeadamente nos chamados “swing states“, diz ao ECO.
Donald Trump, por sua vez, parece estar a mudar de estratégia. Embora seja o “expoente mais influente da violência política” nos EUA, como descreveu Edward Luce no Financial Times, ao ter elogiado os “patriotas” que invadiram o Capitólio e gozado com o ataque ao marido de Pelosi, o candidato republicano revelou, em entrevista ao Washington Examiner, que mudou o discurso que fará na convenção do GOP (Grande Velho Partido, em português, como é comummente referido nos Estados Unidos) para se concentrar em “unir o país”, por considerar que essa oportunidade lhe foi dada depois de ter sobrevivido ao alegado atentado contra si.
“É natural neste tipo de eventos haver um apelo à união quer do lado democrata, quer do lado republicano. Trump, Biden e as [respetivas] esposas e pessoas próximas deram sinais de que perceberam que a retórica violenta e o extremismo político, que a forma como se têm dirigido aos adversários, com termos muitas vezes violentos, pode resultar em violência política”, nota o professor Luís Tomé, acrescentando que não foi só o ex-presidente a instigá-la: “Do outro lado também vemos acusações de fascista, terrorista e atentado à democracia”.
Bruno Cardoso Reis respalda a ideia de que se poderá esperar uma “maior moderação na linguagem” e um “maior cuidado em deixar claro que, mesmo quando se faz críticas duras do outro lado, a solução é sempre o voto e não a bala ou a violência”. “Mas temo que isso não seja possível, até por algumas declarações que já vimos”, lamentou, ao ECO.
O doutorado em Estudos de Guerra pelo King’s College de Londres refere-se a algumas figuras de relevo do Partido Republicano, que não demoraram a apontar o dedo aos democratas minutos após o ataque. Por exemplo, J.D. Vance, senador do Ohio de 39 anos que acabou de ser confirmado como candidato a vice-presidente de Trump, escreveu na rede social X (antigo Twitter) que a “premissa central” da campanha de Biden, de que o seu antecessor “é um fascista autoritário que tem de ser travado a todo o custo”, “levou diretamente à tentativa de assassinato do Presidente Trump”.
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Também o senador da Carolina do Sul, Tim Scott, passou mensagem idêntica, afirmando que a “retórica inflamatória dos democratas coloca vidas em risco”, enquanto Elon Musk, dono da rede social onde foram publicadas as declarações destes republicanos, deu voz às teorias de conspiração. “Ou foi incompetência extrema ou foi deliberado”, disse.
Luís Tomé antevê que muitos discursos na convenção do GOP, que decorre no Milwaukee (Wisconsin) até à próxima quinta-feira, irão atribuir responsabilidades a Biden e aos democratas, acusando-os de “uma retórica irresponsável, que criaram um ambiente tóxico que levou a este atentado contra a vida do ex-presidente Trump, a imputar à Administração norte-americana falhas no sistema de segurança”.
Outra consequência que se pode esperar é uma maior mobilização do eleitorado para se deslocarem às urnas. Esse tem sido, ademais, o “efeito de uma política mais polarizada”, sublinha Bruno Cardoso Reis. “Os dois lados consideram que o país será colocado em perigo pelo outro, e mobilizam-se mais para votar, sobretudo contra o outro lado”, explica, ao lembrar o recorde de votação nas eleições de 2020, mas questionando se, com esta situação, “alguns eleitores moderados se desmobilizarão”.
Para Alberto Cunha, o atentado “irá aumentar ainda mais a adesão republicana” ao voto em Trump, com a “mensagem de união total do partido na convenção desta semana”. Do lado dos democratas, a mobilização só aumenta “se – e é um enorme se – existir um novo candidato” a ser anunciado na convenção do partido em agosto. “Se Biden se mantiver, tal afigura-se improvável”, remata.
“Em última análise”, o catedrático Luís Tomé prevê um “efeito paradoxal” caso, de facto, se verifique um abrandamento do tom da retórica: “Biden confirmar-se como o candidato do Partido Democrata, pelo silenciamento de outras vozes, mas ter menos chance de sair vencedor no confronto com Trump”.
Ainda assim, “o principal efeito deste atentado é que poderia desencadear uma vaga de violência nas ruas” e “isso não aconteceu, não só por causa do apelo do Presidente Biden, mas também pela própria atitude relativamente moderada do ex-presidente Trump”, realçou António José Telo, ressalvando, porém, que a situação nos EUA continua a ser de “quase pré-guerra civil”. “Ou seja, de um momento para o outro, qualquer acontecimento pode desencadear uma vaga de violência, como já vimos noutras crises no caso da sociedade norte-americana. Desta vez, eventualmente, se se desencadear, será mais forte do que qualquer uma das anteriores“, antecipa o especialista em Relações Internacionais e em História Militar.
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