• Especial por:
  • Joana Abrantes Gomes

Venezuela com “possibilidade real” de derrotar o chavismo nas urnas. Receio de fraude causa preocupação

A democracia, a recuperação económica e a emigração vão a votos na Venezuela, onde uma coligação de direita ameaça pôr fim a 11 anos de mandato de Nicolás Maduro. Porém, teme-se nova fraude eleitoral.

Mais seis anos de chavismo ou uma mudança radical resumem a escolha que cerca de 21 milhões de pessoas terão de fazer, este domingo, na Venezuela. Desde 2013 que o país com o maior stock de petróleo e as oitavas maiores reservas de gás natural do mundo enfrenta uma economia em colapso, com a hiperinflação a tocar os 130.000%, e o êxodo de quase oito milhões de venezuelanos, em fuga da estatística que colocava mais de metade da população na pobreza em 2023. É neste cenário que Nicolás Maduro procura conquistar um terceiro mandato consecutivo no Palácio de Miraflores, perante o desafio colocado por uma coligação de direita que lidera as sondagens por uma larga margem.

Tanto o herdeiro de Hugo Chávez, como a oposição apontam estas eleições como um momento decisivo para o futuro do país sul-americano: para Maduro, a escolha é entre “paz ou guerra”, “protestos da oposição ou tranquilidade”, “extrema-direita ou chavistas”, “fascismo ou democracia popular”, “capitalismo selvagem ou socialismo cristão”; para a Plataforma Unitária Democrática, está em jogo a despolitização das instituições do Estado, a libertação dos quase 300 presos políticos e a reanimação da economia através da privatização de empresas do setor energético, da reestruturação da dívida pública e da aproximação a organizações multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.

Segundo a maioria das sondagens, o vencedor será Edmundo González Urrutia, um diplomata reformado de 74 anos, que passou pelas embaixadas de Caracas nos EUA, na Bélgica, em El Salvador, na Argélia e na Argentina, e, agora, lidera a plataforma da oposição, após a candidata nomeada, a ex-deputada María Corina Machado, ter sido impedida de exercer cargos públicos por 15 anos, na sequência de uma condenação por corrupção pelo Supremo Tribunal da Venezuela.

Edmundo González Urrutia (à esquerda), que encabeça a coligação Plataforma Unitária Democrática, lidera as sondagens para as eleições deste domingo por larga margem. Nicolás Maduro (à direita), sucessor de Hugo Chávez, é Presidente da Venezuela desde 2013 e procura o terceiro mandato.

As estimativas mais recentes da Delphos, uma empresa de sondagens sediada na capital venezuelana, mostram a larga distância entre as intenções de voto nas duas principais candidaturas. Num cenário de baixa afluência às urnas, de cerca de 9 milhões de eleitores, Edmundo González lidera por 59% contra 25% para o atual Presidente — ou seja, por cerca de 2 milhões de votos; no caso de uma elevada taxa de participação, à volta de 13,5 milhões de votantes, a Delphos prevê o opositor na frente por 62%, contra 28% para Maduro, uma diferença de quase 4 milhões de votos.

Apesar de as sondagens apontarem, como descreve o diretor da Delphos, Félix Seijas, para uma “possibilidade real de derrota do chavismo pela primeira vez em anos“, a ida às urnas deste domingo é encarada com desconfiança.

Depois da morte de Hugo Chávez em 2013, Nicolás Maduro venceu umas eleições renhidas nesse mesmo ano, confirmando o que antecipavam as pesquisas de opinião. Porém, os resultados das eleições seguintes, em 2018, não foram reconhecidos pela oposição e vários países. O Supremo Tribunal da Venezuela, sob controlo do Governo, havia proibido a coligação Mesa de Unidade Democrática (MUD) e outros dois partidos de apresentarem candidatos, o que favoreceu a conquista de um segundo mandato pelo líder do Partido Socialista Unido da Venezuela.

Se, na altura, a Organização dos Estados Americanos (OEA) rotulou a reeleição de Maduro como “fraudulenta”, enquanto os EUA consideraram-na uma “farsa” e a União Europeia (UE) denunciou uma votação “sem padrões democráticos internacionalmente reconhecidos”, agora, quase metade (47%) da população diz-se disposta a protestar em caso de fraude eleitoral, de acordo com um inquérito conjunto da Delphos e da Universidade Católica Andrés Bello. Além disso, dada a forte liderança da Plataforma Unitária Democrática nas sondagens, será difícil que a estratégia conhecida como rebanado funcione desta vez.

Ainda assim, o Presidente e os seus representantes institucionais têm tentado. Depois de terem impedido a candidatura de Corina Machado, contrariando o compromisso assumido com a oposição para estas eleições e que levou à reativação das sanções norte-americanas contra o setor petrolífero e do gás venezuelano, mais de 100 pessoas foram detidas em casos de motivação política desde o início do ano, na sua maioria ligadas à Plataforma Unitária, segundo o grupo jurídico pro bono Foro Penal. Contabilizam-se ainda centenas de ataques contra organizações de direitos humanos, fora as pressões sobre os meios de comunicação social para suprimir histórias, sobretudo aquelas dedicadas à investigação da corrupção política.

Simultaneamente, tornaram mais difícil o recenseamento eleitoral, com requisitos rigorosos, alegadas falhas técnicas e informação inadequada, sobretudo para a diáspora. Entre os quase 7,8 milhões de venezuelanos a viver no estrangeiro, mais de cinco milhões estavam aptos para votar, mas apenas 69 mil conseguiram registar-se — o equivalente a 1% dos emigrantes venezuelanos.

A falta de observadores independentes, por outro lado, pode impedir o escrutínio da votação. Em maio, as autoridades eleitorais venezuelanas retiraram o convite à missão de observação eleitoral da UE, invocando a continuação das sanções, enquanto o Brasil e a Colômbia se recusaram a enviar equipas de observadores, o que evidencia que as relações com estes países vizinhos, outrora próximos de Maduro, já viram melhores dias.

Já esta sexta-feira, a missão de acompanhamento eleitoral do Partido Popular Europeu (PPE), da qual fazia parte o eurodeputado português Sebastião Bugalho, foi impedida de entrar no país. Restam o Centro Carter, sediado nos EUA, e as Nações Unidas como principais observadores internacionais.

Entretanto, durante um comício na semana passada, as ameaças do Presidente venezuelano subiram de tom, ao alegar que uma vitória da oposição levará a um “banho de sangue” e a uma “guerra civil”, apelando à “maior vitória da história eleitoral do país”.

Se vencer, González Urrutia planeia negociar certas proteções legais para a Administração cessante — incluindo uma potencial amnistia — e os presidentes da região, incluindo o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o colombiano Gustavo Petro, têm pressionado Maduro a aceitá-las.

Shannon K. O'Neil e Julia Huesa

Council of Foreign Relations

Note-se que Nicolás Maduro enfrenta uma acusação dos Estados Unidos por participar num cartel de tráfico de droga internacional, enquanto o Tribunal Penal Internacional (TPI) mantém uma investigação sobre alegados abusos dos direitos humanos e crimes contra a humanidade perpetrados pelas forças de segurança venezuelanas contra a oposição em 2017, durante uma série de protestos contra o Governo. Ou seja, caso saia derrotado nestas eleições, aumentam as probabilidades de enfrentar a Justiça, pelo que o incentivo para procurar permanecer no poder é maior.

Se vencer, González Urrutia planeia negociar certas proteções legais para a Administração cessante — incluindo uma potencial amnistia — e os presidentes da região, incluindo o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva e o colombiano Gustavo Petro, têm pressionado Maduro a aceitá-las”, afirmam Shannon K. O’Neil e Julia Huesa, analistas do Programa de Estudos da América Latina, num artigo publicado no think tank Council of Foreign Relations.

À parte a possibilidade fraude, uma participação eleitoral abaixo dos 60% a 70% previstos, bem como o vasto controlo que tem sobre as entidades estatais e os milhares de milhões de dólares gastos em apoios sociais, podem ajudar a contrariar as sondagens e dar o terceiro mandato a Maduro este domingo. Mas, uma vitória da Plataforma Unitária por uma grande diferença de votos irá dificultar tentativas de manipulação da votação.

Embora reine a incerteza no que diz respeito a uma eventual transição pacífica do poder, o ministro da Defesa venezuelano afastou, nos últimos dias de campanha, a hipótese de os militares “protegerem” Maduro se este for derrotado nas urnas. Vladimir Padrino López garantiu que as Forças Armadas Bolivarianas (FANB) vão cumprir a Constituição da Venezuela e que quem perder as eleições presidenciais deste domingo terá que aceitar os resultados.

Eleição opõe diferentes ritmos de recuperação da economia sob sanções

Onde não há dúvidas é na necessidade de recuperar o poder de compra da população, quando um inquérito da Universidade Católica Andrés Bello calcula que mais de oito em cada dez venezuelanos vivem abaixo do limiar da pobreza. De parte a parte, atribuem-se culpas pelo colapso da outrora quinta maior economia da América Latina: a oposição responsabiliza as políticas dos sucessivos governos chavistas e a corrupção crónica nas instituições públicas, ao passo que o Presidente venezuelano considera que o país tem sido vítima de uma “guerra económica”, devido, sobretudo, às sanções impostas pelos Estados Unidos.

Desde que Nicolás Maduro chegou ao poder em 2013, a Venezuela ocupou durante vários anos a posição cimeira entre os países com a inflação mais elevada no mundo. O auge hiperinflacionário foi registado em 2018, ano em que atingiu uma taxa de 130.060%, segundo contas do próprio banco central. Desde então, o aumento dos preços no país tem vindo a abrandar, embora as previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) antecipem uma inflação homóloga média de 150% no próximo ano.

A menor escassez de bens alimentares e outros produtos básicos corrobora a tendência de queda da inflação na Venezuela. O problema é que os preços continuam a ser demasiado altos para um país onde o salário mínimo íntegro (com subsídios incluídos), apesar das duas subidas anunciadas este ano, equivale apenas a 130 dólares mensais (cerca de 120 euros, à taxa de câmbio atual). O economista Rodrigo Cabezas, que foi ministro das Finanças de Hugo Chávez entre 2007 e 2008 e agora dá aulas na Universidade de Zulia, assinala, citado pelo El País, que os salários do trabalho têm este ano um peso de apenas 10% no Produto Interno Bruto (PIB), quando em 2010 ultrapassavam os 40%.

O principal fator que afundou a economia venezuelana foi a forte quebra na produção de petróleo, que no final da década de 1990 assegurava 95% das receitas de exportação do país sul-americano, a par com o decréscimo generalizado dos preços desta matéria-prima, em particular entre 2014 e 2017.

Dados divulgados em fevereiro pela empresa estatal Petróleos da Venezuela SA (PDVSA) indicavam que o país tem, atualmente, as maiores reservas de petróleo do mundo, num total de 300,9 mil milhões de barris. Para este ano, prevê atingir a meta de produção de mais de um milhão de barris por dia, 27,7% acima da média de 783 mil barris produzidos diariamente em 2023, mas bastante abaixo da oferta diária de 3,2 milhões de barris de petróleo que se verificava há 15 anos.

Embora as sanções impostas por Washington tenham impedido que esse número aumentasse ainda mais, Tim Hunter, analista para a América Latina da Oxford Economics, disse à cadeia televisiva Al Jazeera que estão “lado a lado com a negligência administrativa”, numa referência ao subinvestimento do Governo na PDVSA. “Mesmo tendo em conta a baixa produção nos últimos anos, os combustíveis fósseis continuam a representar quase metade das exportações oficiais da Venezuela. Portanto, quando as vendas caem, devido à escassa produção ou aos preços baixos, a economia sofre“, assinalou Hunter.

Quanto ao gás natural, outro motor económico do país, que possui as oitavas maiores reservas do mundo e as maiores da América Latina (cerca de 5.740 quilómetros quadrados), a produção também baixou: segundo dados da consultora Gas Energy Latin America, a Venezuela produzia perto de 8 mil milhões de pés cúbicos por dia (226,5 milhões de metros cúbicos) em 2016, quando este ano produz, diariamente, 4 mil milhões de pés cúbicos (113,3 milhões de metros cúbicos). Em 2023, o Statistical Review of World Energy, do Instituto de Energia, classificava o país como o 25.º maior produtor mundial.

Além de alavancar a recuperação da economia, relançar a produção de gás natural, a par com a do petróleo, garantiria não só o abastecimento interno, como atenuaria a escassez de combustível que já se está a fazer sentir noutros países da região, de modo a conferir à Venezuela as necessárias receitas em divisas estrangeiras fortes. Contudo, para diminuir a dívida externa, avaliada em cerca de 150 mil milhões de dólares, quem vencer as eleições deste domingo tem de afastar-se da dependência do setor energético e melhorar a capacidade produtiva em áreas como a construção e a indústria transformadora.

“O ponto de partida para avaliar o poder de crescimento da economia venezuelana é a qualidade do resultado eleitoral. Nas mãos de Nicolás Maduro, vejo a economia a crescer também, [mas] não como cresceria se a oposição tomasse o poder“, considerou Luis Oliveros, diretor da Faculdade de Economia da Universidade Metropolitana, em declarações ao El País. Não obstante, acredita que a produção de petróleo “pode continuar a aumentar num contexto em que as sanções se mantêm flexíveis e são concedidas licenças individuais para a exploração dos campos petrolíferos venezuelanos”. O problema, ressalva, “é o que acontece se os resultados eleitorais não forem robustos, se as coisas não correrem bem, se as sanções forem endurecidas e a comunidade internacional fechar a porta à Venezuela”.

Edmundo González Urrutia ainda não desvendou muito sobre os planos económicos. Mas, se for eleito, pretende fazer da Venezuela “o centro energético das Américas”, mostrando-se alinhado com o programa apresentado por Corina Machado, que incluía a privatização de empresas estatais — entre elas a PDVSA –, a transição para fontes de energia renováveis e a reestruturação das dívidas, pagando a alguns credores em petróleo.

Já no caso de uma nova vitória de Nicolás Maduro, é provável que outros milhões de venezuelanos se juntem aos quase 7,8 milhões que atualmente se distribuem, na sua maioria, entre a Colômbia, o Peru, o Brasil, o Chile e o Equador, indicam dados da Plataforma Regional de Coordenação Interagências para Refugiados e Migrantes (R4V). Uma pesquisa da Meganálisis estimava, em maio, que cerca de 40% da população — cerca de dez milhões de pessoas, muitas delas jovens — considerarão deixar o país nesse cenário. Recuperar a economia da Venezuela, cujo crescimento está, atualmente, na ordem dos 4%, também terá de passar por uma redução da emigração.

  • Joana Abrantes Gomes
  • Redatora

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