Num vale no Wyoming, Powell vai tentar moderar “ventos contrários” à economia americana

O presidente da Fed vai ser a figura central do simpósio de Jackson Hole, onde deverá afastar a ideia de recessão e ao mesmo tempo emitir sinais sobre o 'timing' e ritmo dos cortes das taxas de juro.

A comunicação institucional é pouco ortodoxa – a agenda só é divulgada na ‘hora H’ e apenas um dos discursos (o de abertura) é transmitido em vídeo – mas o Federal Reserve Bank of Kansas City não perde a oportunidade para enaltecer a importância do Jackson Hole Economic Symposium, que começou na quinta-feira e termina no sábado. Num ano típico, o evento que tem lugar num vale no estado do Wyoming atrai 120 participantes, incluindo 45 banqueiros centrais, salienta.

Os analistas concordam. “Dada a histórica pausa nas comunicações dos bancos centrais em agosto, Jackson Hole é a oportunidade de maior visibilidade para ouvir os decisores antes da retoma das decisões sobre taxas no outono“, escrevem Lexi Kanter e Michael Cahill, do Goldman Sachs.

A edição deste ano poderá ser ainda mais relevante, pois essa pausa dos bancos centrais em agosto coincidiu com turbulência nos mercados. Dados inesperadamente fracos da criação de emprego nos EUA em julho – a economia acrescentou apenas 114 mil empregos, muito abaixo das expectativas de 175 mil, na segunda pior subida desde 2000 – levaram a quedas fortes em Wall Street a 5 de agosto, com os principais índices bolsistas a tombarem perto de 3%, levando a apelos para a Reserva Federal cortar as taxas de juro de imediato, ou pelo menos decidir na reunião de setembro um corte de 50 pontos base do intervalo atual de 5,25% a 5,50%.

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Com explicações alternativas para o ‘sell off’, especialmente a apreciação do iene japonês e o impacto nos ‘carry trades‘, a turbulência acabou por se dissipar, mas a perceção dos investidores sobre o foco da política monetária terá mudado. Segundo analistas da Allianz Global Investors “esta última ‘birra’ dos mercados, não obstante ter sido conduzida pelo sentimento, não deve ser menosprezada, uma vez que pode acelerar a mudança de foco dos investidores da inflação para o crescimento económico”.

Segundo os analistas consultados pelo ECO, Jerome Powell, presidente da Reserva Federal (Fed), não deverá ignorar essa mudança de foco no discurso desta sexta-feira (15h00 de Lisboa).

Powell irá argumentar que, embora o mercado de trabalho tenha começado a normalizar-se, a economia dos EUA é fundamentalmente forte, não está em recessão e não parece estar a entrar numa.

Stefan Gerlach

Economista-chefe do banco suíço EFG

“Powell irá argumentar que, embora o mercado de trabalho tenha começado a normalizar-se, a economia dos EUA é fundamentalmente forte, não está em recessão e não parece estar a entrar numa”, explica Stefan Gerlach, economista-chefe do banco suíço EFG.

O processo de desinflação está a prosseguir, mas é necessário mais. “Embora a Fed possa baixar as taxas de juro, deve continuar a adotar uma política restritiva“, adianta.

Gerlach, que foi vice-governador do Banco da Irlanda, recorda que embora a inflação global (anual) nos EUA tenha sido de 2,9% em julho, a inflação mensal tem sido muito mais baixa desde maio. Assim, a inflação global anualizada no período de maio a julho foi de apenas 0,4%. Do mesmo modo, a inflação subjacente anual foi de 3,2% em julho, mas a inflação subjacente anualizada no período de maio a julho foi de 1,6%.

“A estabilidade dos preços foi restabelecida, embora seja necessário mais tempo para que isso seja evidente nas taxas de inflação anuais” sublinha.

Ricardo Evangelista, diretor da corretora ActivTrades, refere ao ECO que “a ênfase do discurso de Jerome Powell na sexta-feira vai incidir sobre os ventos contrários, que é uma expressão que ele costuma usar, com um foco no crescimento, e um foco especial sobre o emprego”.

“Como sabemos, o que a Fed está a tentar fazer é conseguir o chamado ‘soft landing‘, ou seja, em que consegue, através da sua política monetária mais restritiva reduzir a inflação, mas ao mesmo tempo fazê-lo de uma forma muito suave em que evita a entrada em recessão”, salienta.

Tanto Gerlach como Evangelista vêm a Fed a decidir um corte de 25 pontos base na taxa de juro diretora na reunião de 18 de setembro, terminando assim um período de pausa de mais de um ano e iniciando um ciclo que poderá incluir mais duas ou três descidas semelhantes até ao final do ano.

Essa visão é partilhada pela maioria dos investidores e analistas. Segundo o site CME FedWatch Tool, que monitoriza a negociação dos futuros da taxa de juro, a probabilidade de um corte de 25 pontos base para 5%-5,25% na reunião de setembro estava nos 66,5% na manhã de quinta-feira. Já na antecipação para o encontro de 1 de novembro, a probabilidade é mais dividida, com 38,7% para mais um corte de 25 pontos base e 47,2% para uma descida de 50 pontos.

Numa sondagem publicada pela agência Reuters esta segunda-feira, 55% dos economista inquiridos vêm o banco central americano a cortar a taxa de juro em 25 pontos base em setembro, outubro e dezembro.

Noutro sinal a favor da possibilidade de um corte nas Federal Funds Rates, as atas da reunião de política monetária de julho, divulgadas na quarta-feira, revelaram que “a grande maioria [de membros do comité] observou que, se os dados continuarem a chegar conforme o esperado, será provavelmente apropriado flexibilizar a política na próxima reunião“.

Linguagem “cautelosa” ou uma surpresa?

“A expectativa é que Jerome Powell comece a abrir em Jackson Hole a cortina para deixar entrar a luz do corte, ou seja que dê o toque para o início do ciclo de cortes nas taxas de juro”, diz Ricardo Evangelista, acrescentando que o presidente da Fed irá dar este sinal sem fazer promessas concretas, ou seja, “utilizará a linguagem codificada habitual dos bancos centrais”.

Para João Queiroz, head of trading do Banco Carregosa, Jerome Powell deverá optar por um tom cauteloso e focado na elevada dependência de dados. “Esta sóbria e equilibrada postura seria mais consistente com os seus anteriores discursos, onde repetidamente sublinhou a relevância de ‘cumprir o mandato’ de garantir a estabilidade de preços, sem se comprometer com um rumo específico”.

“Se Powell mantiver a sua postura sem fornecer de forma clara e inequívoca as novas orientações e posicionamento da Fed, o impacto imediato no mercado poderia ser limitado, obrigando os investidores a continuarem a focar-se nos indicadores macroeconómicos”, acrescenta.

Powell poderá, no entanto, causar surpresa, afirma David Pericle, economista-chefe para os EUA do Goldman Sachs, numa nota aos clientes. “Esperamos que Powell ofereça uma versão mais ‘dovish do que na sua mensagem na conferência de imprensa após a reunião de julho, à luz do relatório da inflação, dos números fracos do crescimento do emprego e do novo aumento da taxa de desemprego desde então”, explica.

Powell poderá também reiterar que a Fed está a acompanhar atentamente os dados do mercado de trabalho e que está bem posicionado para apoiar a economia, se necessário, uma ideia que terá ganho força depois de dados divulgados este quarta-feira mostrarem que afinal, após uma revisão, a economia americana acrescentou 2,1 milhões de novos empregos nos 12 meses até ao final de março de 2024, e não 2,9 milhões como antes anunciado.

Lane deverá alinhar com Powell

Do Banco Central Europeu será Philip Lane, membro do Conselho Executivo, a discursar, no sábado.

Stefan Gerlach diz que Lane deverá “argumentar que os riscos crescentes para o crescimento, evidenciados pelos poucos sinais de recuperação do setor da indústria transformadora, tão importante para a zona euro, reforçaram os argumentos a favor de uma redução das taxas de juro do BCE em setembro, desde que a desinflação se mantenha no bom caminho”.

O economista-chefe do EFG recorda que os mercados estão a prever, pelo menos, mais dois cortes nas taxas este ano, “o que me parece correto”. “Espero que o BCE reduza as taxas mais lentamente do que a Fed”.

Na opinião de Ricardo Evangelista, o discurso de Philip Lane deverá estar bastante alinhado com o de Jerome Powell, “no sentido de mencionar os ventos contrários, o risco de recessão e abrir a porta para um corte nas taxas de juro em setembro, depois de ter já feito um em junho”.

O diretor da ActivTrades salienta que apesar de haver sempre uma divisão entre ‘pombas’ que preferem juros baixos e ‘falcões’ que favorecem taxas mais altas, neste momento a divisão não é suficiente para descarrilar a possibilidade desse novo corte.

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