Como o Setor Segurador vai liderar o combate às consequências das mudanças climáticas
Nuno Matos, Sócio da Carrilho & Associados SROC, expõe toas as obrigações legais a que as empresas de seguros estão sujeitas. E também fala da obrigação moral do setor na redução do impacto climático.
A economia europeia enfrenta vários desafios que exigem uma resposta coordenada e ambiciosa. Entre esses desafios está a transição para uma economia verde, crucial para cumprir os objetivos do Acordo de Paris sobre as alterações climáticas e para aumentar a competitividade e a resiliência da economia europeia. Dado que o setor segurador desempenha um papel fundamental nesta questão, o processo de revisão de Solvência II considera critérios ambientais, sociais e de governação (ESG), que têm influência no desempenho ajustado ao risco climático das empresas de seguros, atento ao impacto que estas têm na sociedade, sobretudo nas dimensões económica e ambiental.
A revisão das regras de Solvência II integra critérios ESG na gestão de riscos, especialmente na subscrição de riscos específicos de seguro, na gestão dos investimentos, na avaliação dos requisitos de capital de solvência e na governação. Estes critérios, complementados com os novos requisitos de divulgação de informação sobre sustentabilidade das empresas de seguros, alinham o setor com os objetivos do Pacto Ecológico Europeu e do Plano de Ação para o Financiamento Sustentável. No entanto, é fundamental que os fatores ESG não sejam vistos apenas como uma questão de conformidade regulatória, mas sim como elementos centrais da estratégia, cultura e core business das empresas de seguros, servindo de base para as tomadas de decisão.
A integração de critérios ESG na política de subscrição e na gestão dos passivos técnicos das empresas de seguros deve considerar os riscos e as oportunidades que esses fatores representam para a adequação e competitividade dos produtos oferecidos. A política de investimento e a gestão de ativos das empresas de seguros devem igualmente levar em conta os riscos e as oportunidades associados aos fatores ESG, visando otimizar a rentabilidade ajustada ao risco climático dos investimentos em carteira. Avaliações de impacto das alterações climáticas na situação financeira e na solvência das empresas de seguros, através de testes de esforço climático que simulem cenários adversos de evolução da temperatura, precipitação e nível do mar, são cruciais. Critérios ESG na política de remuneração e na gestão do capital humano das empresas de seguros devem igualmente ser incorporados para a motivação e retenção do talento.
Nesse sentido, as empresas de seguros devem implementar ações para determinar a frequência e severidade esperada de eventos extremos, incorporando-os na projeção probabilizada dos fluxos de caixa futuros. Para isso, é essencial identificar e modelizar os tipos de fenómenos naturais mais severos que podem ocorrer, aferir a probabilidade de ocorrência e determinar a real exposição ao risco. Além disso, é necessário realizar análises regulares detalhadas à carteira de responsabilidades por contratos de seguro, identificando as situações de exposição ao risco por tipologia, linha de negócio e concentração geográfica.
alterações no nível do resseguro terão impactos no aumento dos prémios de seguros de direto e na capacidade das empresas de seguros assumirem riscos em determinadas regiões geográficas.
A análise atuarial do comportamento desses potenciais sinistros, especialmente no que se refere à tipologia de danos, magnitude, valor dos sinistros e período necessário para a sua regularização, é crucial para uma melhor compreensão dos riscos climáticos. Definir procedimentos para a identificação, classificação e recolha de dados relevantes, combinando análises qualitativas e quantitativas, permitirá a mensuração mais precisa dos riscos climáticos e, em particular, a exposição a fenómenos naturais extremos. Desenvolver métricas e procedimentos que permitam a monitorização da evolução do risco climático, considerando diversas fontes de informação, tanto externas quanto internas, é igualmente importante. Identificar as limitações de informação ou outras atualmente existentes na recolha dos dados e desenvolver mecanismos para mitigar o impacto de eventuais lacunas que possam afetar a qualidade futura da informação é uma etapa necessária.
Além disso, o exercício ORSA (Own Risk and Solvency Assessment) já exige a análise de cenários relacionados com o risco de alterações climáticas. Esta análise deve incluir, no mínimo, a avaliação dos requisitos de capital de solvência resultantes dos diversos cenários simulados, determinados conforme o submódulo de risco de catástrofes naturais da fórmula-padrão do requisito de capital de solvência.
As empresas de seguros devem também rever ou definir novos procedimentos para a gestão dos riscos climáticos, em particular, dos fenómenos naturais extremos, promovendo a articulação e atualização com o plano de continuidade de negócio e outros documentos internos relacionados. É essencial garantir a existência de instrumentos e meios adicionais adequados capazes de mitigar o risco de disrupção que a empresa de seguros possa enfrentar devido a acontecimentos extremos.
Os impactos das alterações climáticas variam significativamente entre diferentes geografias. O aumento da frequência e severidade de fenómenos naturais adversos tem-se concentrado principalmente em áreas geográficas e setores de atividade específicos. Esta concentração pode comprometer a capacidade das empresas de seguros em obterem benefícios de diversificação na gestão dos riscos assumidos, caso haja uma concentração excessiva nessas áreas ou setores. Além disso, o agravamento da frequência e severidade dos eventos climáticos pode exigir uma adaptação da política de subscrição das empresas de seguros. A perceção do risco está sujeita a alterações significativas, o que tem impactos diretos nos processos de tarifação e de provisionamento. Embora o resseguro possa mitigar os impactos destes eventos ao nível das empresas de seguros de direto, a tendência generalizada de aumento da frequência e severidade pode também pressionar a capacidade do mercado de resseguro. Isso pode resultar num aumento dos prémios de resseguro e na alteração dos termos e condições dos tratados, como, por exemplo, a aplicação de limites em áreas de maior concentração de riscos. Estas possíveis alterações no nível do resseguro terão impactos no aumento dos prémios de seguros de direto e na capacidade das empresas de seguros assumirem riscos em determinadas regiões geográficas. Isso pode agravar o protection gap, que, para vários riscos, já são estimados como elevados atualmente. Neste contexto, é relevante salientar o papel do impact underwriting. Este conceito envolve a mitigação dos riscos subscritos e a promoção e sensibilização dos tomadores de seguro. O impact underwriting pode ajudar a reduzir os riscos associados às alterações climáticas, incentivando práticas mais sustentáveis e resilientes por parte dos segurados. Além disso, pode promover uma maior consciencialização sobre a importância da adaptação às mudanças climáticas, tanto para as empresas quanto para os indivíduos.
É igualmente positiva a introdução de requisitos de divulgação de informação sobre a exposição das empresas de seguros aos riscos relacionados com as alterações climáticas, bem como sobre a estratégia e as metas para mitigar esses riscos e para alinhar a sua atividade com os objetivos do Acordo de Paris.
Para as linhas de negócio ou modalidades potencialmente mais afetadas, é fundamental realizar uma análise das coberturas atualmente disponibilizadas, capitais seguros, franquias e eventuais exclusões, a fim de aferir a utilidade (i.e., o “real valor”) dessa cobertura para o cliente. Neste contexto, devem também ser analisadas e identificadas eventuais situações de subseguro. Além disso, é importante efetuar uma análise detalhada dos programas de resseguro atualmente em vigor, identificando fragilidades na mitigação desses riscos e eventuais necessidades de revisão das estratégias de resseguro aplicadas.
Adicionalmente, as Insurance-Linked Securities (ILS) devem ser consideradas como técnicas de mitigação de risco, alternativas ao resseguro tradicional, no que aos riscos específicos de seguro respeitam. As ILS, como os cat bonds, permitem que as empresas de seguros transfiram parte dos riscos para os mercados de capitais, diversificando as técnicas de mitigação dos riscos e reduzindo a dependência exclusiva do mercado de resseguro tradicional. Esta abordagem poderá proporcionar maior flexibilidade e capacidade aquando da subscrição de riscos climáticos, consumindo menos capital que o resseguro tradicional, sobretudo pela eliminação do risco de contraparte. Além disso, pode potencialmente reduzir os custos associados à transferência de riscos, dado constituírem uma efetiva cessão quer dos riscos quer dos benefícios dos contratos de seguro subjacentes, nos termos do framework de Solvência II e dos International Financial Reporting Standards (IFRS).
É igualmente positiva a introdução de requisitos de divulgação de informação sobre a exposição das empresas de seguros aos riscos relacionados com as alterações climáticas, bem como sobre a estratégia e as metas para mitigar esses riscos e para alinhar a sua atividade com os objetivos do Acordo de Paris. Assim, a redefinição da missão e do posicionamento estratégico, no sentido da incorporação de considerações de sustentabilidade, salvaguardando a dimensão reputacional e o posicionamento de longo prazo da empresa de seguros (v.g., atingir carbon neutral), avaliando as externalidades climáticas (negativas e positivas) do negócio prosseguido, é essencial. O relacionamento com acionistas, parceiros, tomadores e outros stakeholders neste domínio ESG é relevante e afetará o ESG rating, credit rating, custo de capital, o enterprise value e/ou a capitalização bolsista, captação de novo negócio e retenção do continuado, entre outros aspetos.
Como referido, a revisão do framework de Solvência II nas matérias ESG surge em complemento a um pacote legislativo europeu abrangente, que visa fortalecer a resiliência e a sustentabilidade do setor financeiro. Este pacote inclui a taxonomia europeia, que estabelece critérios claros para identificar atividades económicas sustentáveis, e o respetivo dever de diligência, que exige que as empresas avaliem e mitiguem os impactos ambientais e sociais das suas operações. Além disso, o relato de sustentabilidade, preparado de acordo com as European Sustainability Reporting Standards (ESRS), desempenha um papel crucial neste contexto. Estas normas estão a ser desenvolvidas para garantir que as empresas de seguros fornecem informações sistematizadas, consistentes e comparáveis, de forma transparente, sobre o seu desempenho em termos de sustentabilidade. O relato de sustentabilidade certificado por um revisor oficial de contas assegura a credibilidade e a fiabilidade dos dados divulgados, permitindo que investidores e outras partes interessadas tomem decisões informadas.
A integração e articulação destes elementos com o framework de Solvência II reflete um compromisso com a promoção de práticas empresariais responsáveis e a criação de um sistema financeiro mais robusto e sustentável. Ao alinhar a gestão de riscos e os requisitos de capital com os objetivos de sustentabilidade, a revisão de Solvência II não só protege os interesses dos tomadores e segurados, como também contribui para a transição para uma economia de baixo carbono e resiliente às mudanças climáticas. Este esforço coordenado entre diferentes iniciativas legislativas europeias sublinha a importância de uma abordagem holística para enfrentar os desafios ESG. Ao incorporar o ESG na estratégia e operações das empresas de seguros, o framework de Solvência II promove uma cultura de sustentabilidade, que vai além da simples conformidade regulatória, incentivando a inovação, resiliência e a competitividade do setor.
Com a integração do risco climático, o ecossistema legal e regulamentar do setor segurador pode ser esquematizado como segue:
Em última análise, o setor segurador não é apenas um guardião contra riscos, mas um catalisador essencial para a transformação sustentável da nossa sociedade, sobretudo nos domínios da economia e do ambiente. Ao integrar critérios ESG nas suas operações e estratégias, as empresas de seguros têm a oportunidade de influenciar positivamente a forma como os riscos são geridos e como os investimentos são direcionados para iniciativas sustentáveis. Este papel vai além da simples proteção financeira; trata-se de promover práticas empresariais responsáveis, incentivar a inovação e fortalecer a resiliência contra as mudanças climáticas.
Ao setor segurador cabe a responsabilidade de liderar a transição verde, um papel que será determinante não apenas para o futuro do setor, mas sobretudo para o futuro da nossa sociedade e do nosso planeta. Liderar essa transição não é uma escolha, mas uma obrigação moral e estratégica que moldará o nível de bem-estar das próximas gerações!
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Como o Setor Segurador vai liderar o combate às consequências das mudanças climáticas
{{ noCommentsLabel }}