“A negociação que tinha de ser feita já foi feita”

O ECO foi conhecer os bastidores da preparação do Orçamento, o momento político e o que foram as 24 horas antes da apresentação da proposta. Pelo meio, uma entrevista exclusiva a Miranda Sarmento.

Eram 10h23, o ministro de Estado e das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, reúne a equipa de secretários de Estado, um adjunto e o chefe de Gabinete, para preparar a conferência de apresentação da proposta de Orçamento do Estado para 2025 que decorreria à tarde no salão nobre do Ministério das Finanças, e desta vez, contrariamente ao habitual, a horas. Foi uma reunião curta, bem-disposta, para definir as prioridades de discurso político e, sobretudo, para decidir o que não era para dizer. Parecia, ainda assim, uma quinta-feira qualquer, sem o stress habitual associado à preparação e entrega do mais importante dos documentos do Governo. Os bastidores deste orçamento foram marcados — e ainda são — pelas negociações com o PS, a sua viabilização é ainda incerta, e por isso Joaquim Miranda Sarmento pede responsabilidade, sobretudo ao PS.

E há espaço para mais negociações? “Eu creio que a negociação que tinha que ser feita está feita”, reage o ministro de Estado e das Finanças. “No IRC, em vez de descer dois pontos percentuais, um ponto percentual, e acolhemos, também resultado da concertação social, um benefício fiscal para a valorização salarial e um incentivo à capitalização. E, portanto, parece me que aquilo que está em cima da mesa corresponde, no IRS Jovem, a um compromisso bastante mais próximo daquilo que era o modelo do PS…”, afirma em declarações exclusivas ao ECO, minutos antes da reunião com a sua equipa. A lição política está bem estudada, para pressionar o voto dos socialistas.

Sarmento garante que as cedências do Governo não põem em causa os objetivos do Governo. “Em Democracia, quando não há maioria absoluta, o compromisso é sempre melhor do que a rotura, portanto, o melhor para o país é ter um orçamento. E este orçamento é um bom para o país, reduz os impostos, aumenta salários e pensões, aumenta o investimento público, mantém o equilíbrio orçamental e, portanto, é um bom orçamento para o país. Agora, é preciso que a oposição tenha responsabilidade“, insiste o governante.

As últimas 24 horas antes da entrega da proposta de orçamento foram até estranhamente calmas. E isso resulta de um processo de elaboração do orçamento que, mesmo com as negociações com o PS, por um lado, e as discussões técnicas com Bruxelas, por outro, não impediram a conclusão dos trabalhos na sexta-feira, dia 4 de outubro. Desde então, a tarefa da equipa liderada por José Maria Brandão de Brito, secretário de Estado Adjunto e do Orçamento, foi sobretudo de leitura e edição do relatório do orçamento e do próprio articulado da lei.

Hugo Amaral/ECO

A primeira prioridade da equipa das Finanças quando entrou em funções foi a preparação do Programa Orçamental de Médio Prazo, isto é, as novas regras europeias para a sustentabilidade das contas públicas. E houve momentos de tensão quando as mudanças metodológicas no cálculo do indicador de despesa primária líquida arriscavam obrigar a outras alterações nos cálculos orçamentais em contas nacionais, contas públicas e até na receita de impostos. O processo em Bruxelas começou, do ponto de vista técnico, na segunda quinzena de julho.

Os “diálogos técnicos” condicionaram as opções de política económica e orçamental, apresentadas neste orçamento? “Qualquer regra orçamental é sempre uma restrição ativa. É óbvio que fazer um plano com regras novas tem uma complexidade técnica maior”, admite o ministro das Finanças. “Estamos todos ainda a definir aspetos metodológicos e parâmetros e isso, obviamente, cria maior complexidade e maior volume de trabalho. Fazê-lo em paralelo com o orçamento, naturalmente, é um desafio maior, Mas no final do dia, o que será remetido a Bruxelas na sexta feira à tarde é um programa orçamental que nos deixa muito confortáveis relativamente àquilo que vai ser a avaliação da Comissão“,

Como é que foi a preparação deste orçamento? Brandão de Brito, anterior economista-chefe do BCP, ressalta a experiência orçamental de Miranda Sarmento. O ministro regressou a uma casa que já conhecia bem, foi técnico superior da Direção Geral do Orçamento entre 2005 e 2009, e participou na elaboração de vários orçamentos. Mas o processo foi mais parecido com a forma como trabalham as empresas. Nomearam duas gestores de projeto — as “Martas“, como são agora conhecidas no ministério, uma Marta do gabinete do ministro e outra Marta no gabinete do secretário de Estado — que tinham como missão garantir o cumprimento de prazos e processos para o calendário orçamental. Mas houve também adjuntos a acompanharem as áreas setoriais, por ministério, na elaboração dos programas orçamentais e respetivos plafonds de despesa. O Gabinete de Estudos e Relações Internacionais (Gpeari) construiu o cenário macroeconómico e a própria DGO, central nesta operação, tem o sistema para carregar os tetos de despesa e o controlo da execução orçamental.

Politicamente, o primeiro-ministro Luís Montenegro já tinha assumido um compromisso, alinhado com o ministro das Finanças: O objetivo de saldo orçamental excedentário, entre 0.2% e 0.3% do Produto Interno Bruto, e a continuação da redução do peso da dívida pública. E foi a partir desse pressuposto, e com o cenário macroeconómico e as previsões de evolução das receitas de impostos que o Ministério das Finanças definiu os tetos de despesa por ministério e programa orçamental. É o primeiro momento de ‘confronto’ entre o ministro que tem a chave do cofre e os ministros setoriais.

O saldo orçamental é de 0.3% do Produto Interno Bruto (PIB), um bocadinho acima de 700 milhões de euros. Dá-nos um bocadinho de margem para acomodar alguma perda de receita fiscal se houver um abrandamento da economia.

Joaquim Miranda Sarmento

O início dessa discussão serviu para mostrar o que seriam as semanas seguintes: A soma dos plafonds de despesa de cada ministério e programa orçamental resultava num valor de despesa cerca de quatro mil milhões de euros acima do teto global fixado. Porque, como sucede todos os anos, cada ministro tem as melhores justificações para defender, para si, mais margem orçamental do que aquela que lhe é atribuída anualmente. E mesmo com tanta ‘generosidade’ — mais salários no Estado, menos impostos e mais investimento — , Miranda Sarmento garante ao ECO: “O saldo orçamental é de 0.3% do Produto Interno Bruto (PIB), um bocadinho acima de 700 milhões de euros. Dá-nos um bocadinho de margem para acomodar alguma perda de receita fiscal se houver um abrandamento da economia“, o principal risco antecipado para 2025. “Mas também há mecanismos de gestão da despesa e as perspetivas económicas, essas, são as de que a economia vai crescer 2%. Assim, mesmo que haja um abrandamento, há sempre algum efeito de desfasamento entre o início do ciclo e, depois, os seus impactos orçamentais. Por isso, estamos confortáveis e, salvo algum choque externo de grande magnitude, teremos uma situação orçamental em 2025 equilibrada“, explica o ministro.

A proposta de Orçamento do Estado para 2025 vai ser discutida e votada na generalidade nos próximos dias 30 e 31 de outubro. Mas como ainda não se sabe qual será a decisão do PS (e do Chega), põe-se a dúvida: O que vai acontecer ao orçamento na discussão na especialidade, quando se propõe e vota artigo a artigo? “Eu espero que haja responsabilidade dos partidos de oposição. O partido da oposição que viabilizar o orçamento…“, responde o ministro das Finanças. Viabilizar na generalidade, já no dia 31? “Nós negociamos com o PS, esperamos uma decisão [de viabilização], terá depois de ter a responsabilidade de não permitir desvirtuar [o orçamento] na especialidade. Eu recordo as palavras que o Secretário-Geral do Partido Socialista disse numa conferência de imprensa, depois da reunião com o Primeiro-Ministro no dia em que houve o debate quinzenal. ‘Nós estamos comprometidos com aquilo que é o objetivo de saldo orçamental do Governo e o que fizermos não desvirtuará esse saldo orçamental’. É sobretudo a consequência desse compromisso que o Partido Socialista assumiu. Fazer o contrário é pôr em causa o equilíbrio das contas públicas“.

Hugo Amaral/ECO

Os trabalhos iniciais do orçamento começaram entre o final de maio e o início de junho, poucas semanas depois da tomada de posse. Trabalho técnico que evoluiu, depois, já em setembro, para a discussão política. Além das sucessivas reuniões de conselho de ministros em que foram discutidas as prioridades políticas, realizaram-se as chamadas “trilaterais”, entre 10 e 16 de setembro, com a participação de Brandão de Brito e os responsáveis políticos, ministros e secretários de Estado de outros ministérios. Reuniões “pedagógicas”, para fechar as contas do orçamento, diz-se nas Finanças.

Afinal, que diferença tem este orçamento de um apresentado pelo PS? Na campanha eleitoral, o PS também defendeu a devolução do tempo de serviço dos professores ou dos salários de outros profissionais da Função pública? “Há dois aspetos importantes. Primeiro, o Partido Socialista pode ter colocado isso no seu programa, mas esteve oito anos no Governo e não executou… mesmo quando teve maioria absoluta e mesmo quando teve a receita fiscal a crescer quase 20% com o efeito da inflação”. E o segundo? “Estes acordos são muito importantes para começarmos a fazer uma reforma da administração pública que melhores serviços. Por um lado, é preciso atrair pessoas para a administração pública, que está muito desqualificada, é preciso manter aqueles que estão [ao serviço] e que têm qualidade e, depois, é preciso paz social. Não há mudança nem transformação se não houver paz social. Nós identificámos as prioridades… Educação, saúde, segurança, defesa, justiça e, nessas prioridades, atuamos. Obviamente que, havendo perspetiva de quatro anos, uma legislatura, há muito trabalho ainda pela frente. Mas estes primeiros seis meses marcaram uma diferença de espírito reformista e de transformação deste Governo face aquilo que foi o Governo anterior”.

Estes acordos são muito importantes para começarmos a fazer uma reforma da administração pública que melhores serviços. Por um lado, é preciso atrair pessoas para a administração pública, que está muito desqualificada, é preciso manter aqueles que estão [ao serviço] e que têm qualidade e, depois, é preciso paz social. Não há mudança nem transformação se não houver paz social. Nós identificámos as prioridades… Educação, saúde, segurança, defesa, justiça e, nessas prioridades, atuamos.

Joaquim Miranda Sarmento

Ainda assim, e apesar da ‘generosidade’ orçamental que motivou surpresa e preocupação — ouviram-se alertas por exemplo do Conselho das Finanças Públicas –, o ministro das Finanças rejeita expansionismos. “Este orçamento acode a um conjunto de situações na administração pública que estava muito debilitada, seja do ponto de vista de carreiras, seja da qualidade dos serviços públicos, seja do investimento“.

É um orçamento da administração pública? “Não, é um orçamento que também reduz impostos para as famílias e para as empresas, mas sem esquecer a importância que tem a administração pública e mantendo o equilíbrio orçamental. É importante considerar, quando se analisa o Orçamento de 2025 e, depois, para 2026, é preciso considerar o efeito PRR”, lembra o ministro nesta conversa com o ECO, na manhã da entrega do orçamento no Parlamento. Miranda Sarmento referia-se à forma como é contabilizado, nas contas públicas, o investimento da ‘bazuca’ a partir dos fundos que entram como empréstimos. “Em 2025, se o Plano de Resiliência for totalmente executado, estamos a falar de 1.5 mil milhões de euros de despesa com impacto no saldo, portanto, se retirarmos essa componente, a despesa total em percentagem do PIB reduz-se. Dito de outra forma, não é um orçamento expansionista“, mas, logo a seguir, talvez antecipando as críticas, esclarece que “também não é um orçamento contracionista“.

Hugo Amaral/ECO

Mário Centeno, governador do Banco de Portugal, apresentou o Boletim Económico de outono dois dias antes da apresentação deste orçamento, e deixou cair avisos, que mereceram a resposta, cuidada, do ministro das Finanças. Não é pró-cíclico, como sugeria Mário Centeno, governador do Banco de Portugal? “É um orçamento que faz o equilíbrio entre a redução de impostos, o investimento público, aproveitando também o PRR, e a melhoria dos serviços públicos, mantendo o equilíbrio orçamental e redução da dívida pública“, responde o ministro. Portanto, não o preocupa o alerta do governador do governador do Banco de Portugal sobre a evolução da despesa estrutural, a mais acelerada desde 1992? “O essencial desse crescimento resulta de medidas que estavam no Orçamento de 2024. No Orçamento deste ano, a despesa pública em contas nacionais crescia 9% e em contabilidade pública crescia 11,5%, portanto, essa alerta é importante, talvez devesse ter sido feito anteriormente. Há aqui muito efeito de crescimento da despesa que, por um lado, resulta da lei, como é o caso das pensões, por outro, resulta de medidas que vêm do Governo anterior, nomeadamente o ‘drift’ salarial por via do acelerador de carreiras e das medidas do SIADAP“.

Se a secretária de Estado da Administração Pública, Marisa Garrido, participou também, a partir da Praça do Comércio, em todos os processos negociais de revalorização salarial e de carreiras em áreas particularmente sensíveis, como os professores, agentes de segurança ou oficiais de justiça, a secretária de Estado dos Assuntos Fiscais, Cláudia Reis Duarte, foi uma das protagonistas do Governo no processo negocial com o PS por causa das duas medidas que Pedro Nuno Santos definiu como “linhas vermelhas”, o IRS Jovem e o IRC, a secretária de Estado da Administração Pública, Marisa Garrido,

Joaquim Miranda Sarmento não desarma, apesar das mudanças no IRS Jovem. Está confortável com a medida de IRS Jovem como foi apresentada? “Fico confortável porque os objetivos são alcançados, isto é, o alargamento a todos, um período mais longo e uma medida fiscal com impacto efetivo…“, e por isso mantém-se a natureza e objetivos da medida. “É esse o objetivo. Ao alargar a todos, ao dar estabilidade durante dez anos e ao ter um impacto fiscal mais significativo, permite-nos continuar a considerar que é uma medida útil para reter e atrair jovens“.

Já sobre o IRC, percebe-se a frustração de quem sempre acreditou nos efeitos de uma redução do imposto sobre os lucros das empresas para o investimento e crescimento da economia. “Continuamos a pensar que é importante reduzir o IRC para valores médios dos nossos concorrentes, O que foi possível do ponto de vista político é isto que está em cima da mesa. Terá sempre algum efeito marginal. Obviamente, menos do que aquilo que era o nosso plano inicial, mas resulta da tentativa de compromisso…“, afirma Sarmento. E apesar do impacto previsivelmente limitado da redução marginal de IRC, é melhor do que nada. “Diria que é sempre melhor descer [o IRC] do que não descer. A nossa posição é conhecida, mas o compromisso que apresentámos ao Partido Socialista, neste momento, é este, veremos depois no futuro“.

Se a prioridade de política económica estava nas empresas privadas, o peso do Estado também se mede pelas participações em empresas públicas, muitas delas de difícil explicação. Ainda assim, o caso mais emblemático é mesmo o da TAP, acompanhado nas Finanças pelo secretário de Estado do Tesouro e Finanças, João Silva Lopes. Mas para já, neste orçamento, as informações são as estritamente necessárias. Ao ECO, Miranda Sarmento garante que o processo de privatização é para avançar, mas para já sem calendário. “Queremos acelerar o processo“, sintetiza. Já outras grandes empresas são para continuar no universo do Estado. O Governo vai criar um grupo de trabalho para estudar as “participações minoritárias”, diz o ministro, leia-se as participações minoritárias. A RTP ou a CGD, garante, continuarão públicas.

Hugo Amaral/ECO

 

A noite de quarta para quinta feira foi mais longa do que o habitual. A equipa das Finanças saiu por volta da uma da manhã, depois de passar mais uma vez a pente fino o articulado do Orçamento e o respetivo relatório. “Sempre que se volta a ler, descobre-se mais uma gralha ou um erro“, admitia o chefe de gabinete de Sarmento, Bruno Proença, ex-jornalista e que, curiosamente, foi diretor de comunicação do Banco de Portugal, primeiro com Carlos Costa e, depois, trabalhou diretamente com Mário Centeno.

Em cima da mesa de reuniões no gabinete do ministro das Finanças, uma versão de trabalho do Orçamento e a famosa Pen. Aproximava-se a hora de partir para o Parlamento, para a fotografia da praxe no gabinete do Presidente da Assembleia da República, que deslizou uma hora e meia, para as 14h30, a pedido de José Pedro Aguiar Branco, que vinha do norte. Era o primeiro orçamento de Joaquim Miranda Sarmento como ministro das Finanças, mas tinha a vantagem de conhecer já os cantos à casa. Como é que foi que regressar a Direção-Geral do Orçamento, passados estes anos? “Foi bastante bom. Parte significativa dos dirigentes e funcionários foram meus colegas há 20 anos, 15 anos, aliás, o diretor geral da DGO era chefe de Divisão quando entrei, portanto, isso, naturalmente, facilitou bastante. Fui muitas vezes aos gabinetes dos dirigentes esclarecer dúvidas, debater questões que surgiam, dar uma ou outra instrução, informando o diretor-geral, quando era mais urgente ou necessário“. A sexta-feira vai ser de descanso, mas o processo do orçamento vai ter novas etapas já a partir da próxima semana. À espera de se perceber se passa no Parlamento para entrar em vigor no dia 1 de janeiro de 2025.

Hugo Amaral/ECO

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