Americanos vão às urnas com o destino do mundo no boletim de voto

Ex-ministros dos Negócios Estrangeiros e secretários de Estado traçam ao ECO quais poderão ser as consequências de uma vitória de Kamala Harris ou Donald Trump.

Os americanos vão esta terça-feira às urnas para o dia final de votação para as eleições que vão decidir o rumo do país, mas também da geopolítica mundial. Há muito em jogo para a Europa, e por arrasto, para Portugal. A guerra na Ucrânia, a garantia de segurança do continente ou as relações comerciais entre os dois blocos seguirão um rumo muito diferente dependendo de quem chegar à Casa Branca. Dois ex-ministros dos Negócios Estrangeiros e dois ex-secretários de Estado traçam as consequências de uma vitória de Donald Trump ou Kamala Harris.

“Não creio que os resultados das eleições nos EUA tenham um impacto especial em Portugal, individualmente, mas através da relação com a Europa afetará imenso. Não vale a pena dourar a pílula. A relação entre os Estados Unidos e a União Europeia será uma coisa com Harris e outra com Trump. E com Trump será muito mais problemática, difícil e com menos pontos positivos”, afirma João Gomes Cravinho, que foi ministro da Defesa e dos Negócios Estrangeiros nos governos de António Costa.

António Martins da Cruz, que diz não gostar de nenhum dos candidatos, considera “indiferente quem ganha”. “Portugal é, simultaneamente, europeu e atlântico e, por isso, temos sempre de ter boas relações com a potência que domina o Atlântico Norte. Portugal é um país membro da NATO, o que significa que a nossa defesa seguramente depende da NATO e dos EUA”, afirma o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades Portuguesas do Governo de Durão Barroso.

Essa garantia de defesa é um dos pontos de interrogação que uma vitória do candidato do Partido Republicano levantará. Se com Kamala Harris é esperada, em larga medida, uma manutenção do atual status quo, o regresso de Donald Trump à Casa Branca promete mudanças. A mais relevante para a União Europeia (UE) poderá ser no rumo da guerra entre a Ucrânia e a Rússia.

O republicano tem repetido que, se for eleito, põe fim à guerra da Ucrânia “em 24 horas”, sem, no entanto, apresentar um plano concreto de como o fará. JD Vance, candidato à vice-presidência, deixou algumas pistas durante uma entrevista ao Shawn Ryan Show, em setembro, defendendo a manutenção “da atual linha de demarcação entre a Rússia e a Ucrânia, convertida numa zona desmilitarizada”, e uma garantia à Rússia “de neutralidade da Ucrânia — não se junta à NATO, não se junta a algumas destas instituições aliadas”. Um plano próximo das pretensões de Vladimir Putin, que poderia passar também por um corte no apoio militar e financeiro a Kiev.

Pode ser um game changer geopolítico, se Trump deixar de dar apoio à posição de Zelensky. (…) Se vencer na Ucrânia, é expectável que Putin não queira ficar por aí.

Tiago Antunes

Ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus

Pode ser um game changer geopolítico, se Trump deixar de dar apoio à posição de Zelensky“, considera Tiago Antunes, secretário de Estado dos Assuntos Europeus no último Executivo de António Costa. “Acabar com a guerra num dia é impor cedências de território à Ucrânia, o que seria interpretado como uma vitória de Putin, reforçado e respaldado por uma solução americana”. A cedência de território “criaria um precedente gravíssimo” para os países de Leste e nórdicos, acrescenta o senior fellow da School of Transnational Governance, do European University Institute. “Se vencer na Ucrânia, é expectável que Putin não queira ficar por aí”, alerta.

O que remete para o papel da NATO e o compromisso em torno do artigo 5.º do Tratado da Aliança Atlântica, que estipula que “as partes concordam que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas”.

João Gomes Cravinho, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, assinala que os membros da NATO não são atacados porque o artigo 5.º do Tratado do Atlântico Norte representa uma “promessa credível”.Lusa

“No anterior mandato Trump pôs repetidamente a NATO em causa. A NATO depende de promessas, nomeadamente o artigo 5.º.. Se Trump puser em causa esse processo, a NATO deixará de poder desempenhar esse papel. Os membros da NATO não são atacados porque representa uma promessa credível, se não o for não temos essa segurança“, salienta João Gomes Cravinho.

António Martins da Cruz rejeita que exista essa ameaça e lembra que “os membros da NATO têm o compromisso de ter de gastar 2% do PIB em Defesa e quem o determinou foi Obama em 2014. Durante a Presidência Obama foram tirados milhares de soldados americanos da Europa que a Presidência Trump repôs”.

O antigo embaixador de Portugal na NATO observa que os Presidentes americanos dependem, em matéria militar e de política externa, fundamentalmente de quatro instituições: o conselheiro nacional de segurança (o assessor diplomático da Casa Branca), o secretário de Estado (equivalente ao ministro dos Negócios Estrangeiros), o Pentágono e os serviços de informação. “Estas quatro instituições têm muito poder, aconselham o Presidente sobre o que fazer e é muito difícil fugir deste tipo de conselho“, conclui.

Os Presidentes americanos dependem, em matéria militar e de política externa, fundamentalmente de quatro instituições. (…) Estas quatro instituições têm muito poder, aconselham o Presidente sobre o que fazer e é muito difícil fugir deste tipo de conselho.

António Martins da Cruz

Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros

Tiago Antunes antecipa o aumento dos gastos com Defesa a nível nacional, pela necessidade de convergir para os 2% do PIB, mas também ao nível da UE. “Vai ser um dos pontos centrais do próximo quadro financeiro plurianual, que vai ser discutido no próximo ano”, aponta. O que pode ter consequências para Portugal. “Esse aumento acontece em prejuízo de quê? Coesão e Agricultura são dois terços do orçamento. Se tiver de se substituir por gastos em defesa, países como Portugal são afetados”, avisa. O mesmo já não acontecerá se existir um acréscimo das verbas, por exemplo através da emissão de defense bonds.

Se voltar à Casa Branca, Trump terá uma grande latitude de ação, já que as sondagens apontam para que o Partido Republicano mantenha a maioria no Congresso (ainda que curta) e passe a controlar o Senado, como aponta Luís Campos Ferreira, que foi secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação nos governos de Passos Coelho. “Tem-se dedicado toda a atenção na imprensa internacional, e também em Portugal, a quem ganha: se Harris ou Trump. Mas as eleições não são só para Presidente, cobrem parte do Congresso e do Senado, e podem dar a Trump uma vitória total“, afirma, acrescentando que no Supremo Tribunal há também uma maioria de juízes conservadores.

Tem-se dedicado toda a atenção na imprensa internacional, e também em Portugal, a quem ganha: se Harris ou Trump. Mas as eleições não são só para Presidente, cobrem parte do Congresso e do Senado, e podem dar a Trump uma vitória total.

Luís Campos Ferreira

Antigo secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação

E como será a relação de Kamala Harris com a Europa? Tiago Antunes espera uma “linha de continuidade” face à política seguida por Joe Biden e “uma reafirmação dos pilares fundamentais da relação transatlântica”. Assinala, no entanto, que “há muito tempo que a política externa americana está muito mais centrada no Pacífico do que no Atlântico. A Europa deixou de ser uma prioridade”.

Em Portugal temos de nos manter equidistantes. Temos uma relação com os EUA que temos de manter, não é de dependência ou ascendência. Trump não tem o sentido atlantista de Joe Biden, mas Harris também não é europeísta, não tem sensibilidade para a pluralidade ideológica da UE”, considera Luís Campos Ferreira.

As eleições desta terça-feira terão impacto noutros conflitos em curso ou latentes. No Médio Oriente, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu torce pela vitória de Donald Trump, que já defendeu que o país deve “ir até ao fim” no combate contra o Hamas e o Hezbolhah. No primeiro mandato, mudou a embaixada dos EUA de Tel Aviv para Jerusalém, reconheceu a soberania israelita sobre os Montes Golã, e endureceu a posição americana em relação ao Irão. “Podemos esperar um Trump bastante mais agressivo na política externa e comercial e ainda com menos freios”, antecipa Tiago Antunes.

“Tarifas”, a palavra preferida de Trump

“Para mim, a palavra mais bonita do dicionário é tarifas; é a minha palavra preferida”, afirmou Donald Trump em entrevista à Bloomberg. Será a outra dor de cabeça que espera a UE, caso consiga chegar à Casa Branca, levando mais longe a política que iniciou durante o primeiro mandato. O candidato republicano anunciou que fará um aumento nas taxas aduaneiras, no mínimo, de 10%, o que afetará a competitividade dos produtos europeus naquele que é o seu maior mercado externo, representando 19,7% do total de exportações da UE em 2023. Estimativas dos economistas dos bancos de investimento citadas pela Euronews apontam para uma redução entre 0,5% e 1% no PIB da Zona Euro.

Com Trump, estaremos perante um protecionismo muito acentuado. Coisa que não é alheia às administrações democratas: veja o caso do Inflation Reduction Act, de Joe Biden, que tem muitos pontos protecionistas”, refere João Gomes Cravinho. “A diferença face a uma administração republicana é a expectativa de diálogo e concentração em procurar minimizar os efeitos negativos”, afirma.

Com Trump, estaremos perante um protecionismo muito acentuado. Coisa que não é alheia às administrações democratas: veja o caso do Inflation Reduction Act, de Joe Biden, que tem muitos pontos protecionistas.

João Gomes Cravinho

Ex-ministro dos Negócios Estrangeiros

Se Trump for eleito, “em Portugal devemos preocupar-nos com a aplicação de 10% mais de taxa alfandegária. É preocupante para toda a Europa”, considera também António Martins da Cruz.

Como pode reagir a União Europeia?Fazer uso dos seus instrumentos de defesa comercial e ripostar”, afirma Tiago Antunes. A Comissão Europeia já começou a preparar medidas retaliatórias, para aplicar caso Trump vença e avance com o aumento das taxas. Um caminho de “progressivo fechamento comercial é o contrário do que devia acontecer. Há uns anos estava-se a discutir um tratado de comércio livre, o TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership), lamenta o ex-secretário de Estado dos Assuntos Europeus.

A relação comercial com a China também deverá tornar-se ainda mais tensa caso Donald Trump volte à Casa Branca. Para os bens oriundos do país de Xi Jinping, o candidato republicano promete taxas aduaneiras de 60%.

“No primeiro mandato tinha uma obsessão com o défice comercial, mas a realidade China/EUA vai muito além do comércio”, afirma João Gomes Cravinho. “Mas mesmo que ele se concentre só no comércio, isso significaria tarifas mais elevadas, o que implicaria uma agenda negativa na economia global e respostas mais sérias como sanções secundárias, que podem ter efeitos nas empresas portuguesas que trabalham com a China, em setores mais tecnológicos”, acrescenta.

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António Martins da Cruz, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, considera que Portugal deve resistir às pressões dos EUA sobre a relação com a China.Hugo Amaral/ECO

“O impacto na UE vai depender se, de forma continua ou intervalada, [os EUA] pressionarem a UE sobre a relação UE/China. Os países europeus precisam do mercado chinês, nomeadamente a Alemanha, que exporta mais para a China que para o Reino Unido, França e Benelux juntos”, aponta António Martins da Cruz.

O diplomata afirma que “Portugal tem de ter cuidado e saber resistir melhor às pressões dos EUA; foi o primeiro país europeu a chegar à China por mar e o último a sair. O investimento chinês é muito importante e supera o dos EUA. Portugal é o segundo país da Europa com mais investimento chinês per capita“.

Martins da Cruz recomenda que, politicamente, o país invista mais também na relação com os EUA. “É preocupante o desinteresse que tem havido da política externa portuguesa relativamente aos EUA e a [pouca] atenção que os primeiros-ministros têm dedicado aos EUA nos últimos 20 anos. O último primeiro-ministro português que esteve com um Presidente dos EUA foi Durão Barroso, em 2003. Desde então, mais nenhum foi como primeiro-ministro. José Sócrates foi como presidente do Conselho Europeu [durante a presidência rotativa portuguesa]”, assinala.

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