Guerras comerciais, defesa e ambiente. O que está em jogo para a UE nas eleições americanas?
Uma vitória de Donald Trump poderia custar até 1% do PIB europeu. Mas, mesmo no caso de uma vitória de Kamala Harris, continuam a existir desafios para a UE.
O regresso em força do “América Primeiro” ou uma espécie de continuidade na Casa Branca? A palavra pertence aos eleitores americanos, mas não deixa o resto do mundo indiferente. Na Europa, e também em Portugal, há muito em jogo com os resultados das presidenciais da maior economia do mundo, seja nas relações comerciais, na defesa ou mesmo na política energética e ambiental. A comprovar essas preocupações têm estado algumas declarações recentes de responsáveis de instituições da União Europeia.
A presidente do Banco Central Europeu, por exemplo, deixou um aviso para o próximo inquilino da Casa Branca. Numa intervenção num evento do Atlantic Council, Christine Lagarde defendeu que os períodos de restrições e barreiras nas políticas comerciais dos EUA não foram tempos “de prosperidade e de forte liderança no mundo”. E salientou que o próximo presidente dos EUA “deveria, no mínimo, ter isso em mente”.
A líder da autoridade monetária da Zona Euro não especificou nomes. Mas, quando se fala em barreiras e restrições de política comercial, todas as atenções vão parar a Donald Trump. O candidato republicano promete uma renovada onda de tarifas e uma política musculada de protecionismo, na linha da que seguiu durante a sua administração entre 2017 e 2021.
Entre o “preço alto” e a continuidade
Num comício no final de outubro, Trump não se coibiu de ameaçar a UE. “A União Europeia soa tão bem, certo? Aqueles países pequenos todos juntos. Eles não levam os nossos carros. Não levam os nossos produtos agrícolas. Eles vendem milhões e milhões de carros nos EUA. Não. Eles vão ter de pagar um preço alto”. O candidato republicano já fez as contas. Quer aplicar tarifas adicionais de entre 10% a 20% a produtos vindos da UE e também de outras partes do mundo.
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Por seu lado, Kamala Harris, como em quase todas as políticas, dá fortes indícios de ser mais moderada. No entanto, a candidata democrata, apesar de reconhecer que o comércio internacional é importante para o crescimento, tem também apoiado algumas medidas que podem ser consideradas protecionistas.
Harris defende que as relações comerciais dos EUA com outros países precisam de defender os trabalhadores americanos. Além disso, a vice-presidente de Biden tem apoiado uma política industrial, com fortes incentivos e subsídios a setores estratégicos americanos, uma estratégia que tem também características protecionistas. A candidata democrata tem ainda, no seu histórico como senadora, a oposição a alguns acordos comerciais, argumentando tanto com a defesa de postos de trabalho nos EUA como com questões ambientais.
Os potenciais impactos de uma vitória de Trump
Ainda assim, e mesmo com algumas medidas mais protecionistas de Harris, os economistas não apontam grandes mudanças nas relações comerciais entre os EUA e a Europa no caso de uma vitória democrata. Já a eleição de Trump obriga a que se façam contas e revisões em baixa para a economia da Zona Euro.
Mas qual poderia ser o impacto? Os economistas do Goldman Sachs estimaram, num relatório a que o Eco teve acesso, que a introdução de tarifas de 10% “poderia fazer baixar o PIB da Zona Euro em cerca de 1%, com a maior parte dos efeitos negativos na Alemanha, dada a sua maior abertura e dependência da atividade industrial”.
Por seu lado, os especialistas da The Economist Intelligence Unit (EIU) apontam para um impacto de 0,3% no PIB europeu. Também esta entidade coloca a Alemanha como a mais prejudicada, o que junta ainda mais preocupações a uma economia que não aparenta ter o dinamismo de outros tempos. Já os países do sul da Europa, como Portugal, poderão sofrer menos estragos, dada a menor intensidade exportadora e uma dependência mais baixa do mercado americano.
A introdução de novas tarifas por parte de Washington terá, muito provavelmente, resposta de Bruxelas. “A UE irá inicialmente pressionar para ter exceções, oferecendo-se para comprar maiores quantidades de alguns bens americanos, mas o elevado excedente comercial da região com os EUA, sugere que isso não será eficaz. Assim, podem esperar-se tarifas retaliatórias a partir do início de 2026”, assinalam os economistas da EIU. Aliás, segundo o Politico, desta vez Bruxelas prepara-se para reagir com rapidez e força a uma eventual nova guerra comercial espoletada por Trump.
Quanto vale o mercado dos EUA para Portugal?
Apesar de a economia portuguesa não estar entre as que mais poderão ser afetadas por uma eventual guerra comercial espoletada por Trump, é bastante provável que não saia incólume.
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Os EUA têm sido um dos mercados para onde as exportações portuguesas de bens mais crescem. As vendas para a maior economia do mundo mais que duplicaram na última década. Situaram-se em 3,75 mil milhões de euros nos primeiros oito meses deste ano, segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística. O mercado dos EUA absorve 7% das exportações nacionais e 29% das vendas feitas por Portugal para fora da UE. Além disso, Portugal tem um robusto excedente comercial. Entre janeiro e agosto deste ano vendeu mais 2,2 mil milhões de euros em bens do que os que comprou.
Portugal pode ainda sofrer impactos indiretos. Uma política comercial mais agressiva de Trump acabaria por afetar o mercado alemão, que é o maior destino das exportações portuguesas. E uma travagem na locomotiva alemã nunca é uma boa notícia para a economia portuguesa.
A Ucrânia e a defesa na Europa
As relações comerciais entre os EUA e a UE até podem estar na linha da frente em termos económicos. Mas as eleições americanas têm também fortes repercussões na área geopolítica. Kamala Harris tem reafirmado o compromisso em cooperar com a NATO e de continuar a apoiar a Ucrânia na defesa contra a invasão russa.
Já com Trump a história poderá ser diferente. Durante o seu mandato anterior, o republicano ameaçou sair da Aliança Atlântica para forçar os outros membros a cumprirem com a meta de financiamento da organização. Em relação à guerra lançada pela Rússia contra a Ucrânia, Trump tem prometido uma negociação que acabaria rapidamente com o conflito. No entanto, nunca especificou como conseguiria a paz e existem receios que possa retirar o apoio a Kiev, levando a Ucrânia a ceder às pretensões de Putin.
"Cumprir com os requisitos da NATO de gastar 2% do PIB em defesa e compensar uma potencial redução do apoio militar dos EUA à Ucrânia pode custar à UE um adicional de 0,5% do PIB por ano”
Assim, os analistas do Goldman Sachs salientam que “o desfecho das eleições pode também implicar pressões renovadas para a defesa e segurança da Europa”. E isso pode levar a maior despesa pública nesta área. “Cumprir com os requisitos da NATO de gastar 2% do PIB em defesa e compensar uma potencial redução do apoio militar dos EUA à Ucrânia pode custar à UE um adicional de 0,5% do PIB por ano”, calculam os economistas do banco americano.
Porém, mesmo com uma vitória de Harris e a manutenção do apoio à Ucrânia e das garantias de segurança à Europa, vários analistas e responsáveis políticos têm sublinhado a necessidade de a UE ter uma maior autonomia estratégica nesta área, o que implica um aumento de despesa.
Em Portugal, por exemplo, o ministro da Defesa, Nuno Melo, tem reiterado que o País vai passar a gastar 2% do PIB nesta área até 2029.
Renováveis vs. combustíveis fósseis
Outra das muitas áreas que opõem Harris e Trump é a da transição energética. O antigo presidente – que retirou os EUA do Acordo de Paris – classificou a agenda verde como um “embuste” e defende que se deve fazer all in nos combustíveis fósseis, como o petróleo, o gás e o carvão. Isto apesar dos alertas sobre o papel que essas fontes de energia têm no aquecimento global e dos apelos para a necessidade urgente de se reduzirem as emissões de dióxido de carbono.
Já Kamala Harris tem um histórico de defesa de políticas que privilegiam a energia verde e a redução de emissões. A candidata democrata apoiou o regresso dos EUA ao Acordo de Paris e foi essencial na aprovação do Inflation Reduction Act, um programa de investimento sem precedentes que tem as energias limpas como um dos seus grandes pilares.
Assim, o desfecho das eleições americanas tem especial relevância para que a Europa mantenha, ou não, um aliado na luta contra as alterações climáticas. Além disso, a política energética na maior economia do mundo terá, muito provavelmente, ramificações na bolsa portuguesa. A EDP – a empresa mais valiosa do PSI – tem 27% da capacidade instalada nos EUA, praticamente toda eólica e solar, e tem beneficiado da aposta em energias limpas feita pela administração Biden.
Concorrência económica
O resultado das eleições da próxima terça-feira é incerto. Mas parece não haver grandes dúvidas de que uma vitória de Trump trará um grau de imprevisibilidade elevado, com potenciais impactos económicos significativos na Europa e também noutras partes do mundo. No entanto, mesmo que seja Harris a ganhar a corrida à Casa Branca, permanecem desafios para a UE.
“Uma presidência Trump iria marcar um período muito turbulento nas relações transatlânticas e a maior parte dos europeus ficará aliviado se Harris prevalecer”, consideram Ian Bond e Luigi Scazzieri, numa nota de análise. Os investigadores do grupo de reflexão Centre for European Reform salientam, no entanto, que “mesmo uma vitória de Harris não salvaria os europeus de tomarem decisões difíceis sobre a Ucrânia” nem alteraria a “ênfase da América na política industrial e na proteção da indústria americana às custas do comércio livre”.
Numa fase em que os principais blocos económicos dão sinais de estarem a privilegiar políticas mais protecionistas, a UE terá de continuar a aprimorar a sua estratégia no tabuleiro geopolítico e económico. Essa necessidade será mais evidente no cenário da vitória de Trump, que poderá levar a uma rápida alteração das regras do jogo. Mas mesmo com Harris na Casa Branca, o esforço da Europa em aumentar a sua autonomia estratégica e económica deverá manter-se.
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