As condições estruturais avessas à concorrência (II)

O economista Carlos Tavares fez uma análise, no âmbito da SEDES, ao estado da concorrência em Portugal e o seu impacto na eficiência e competitividade das empresas.

A qualidade da concorrência não depende apenas da existência de uma boa lei, embora isso seja muito importante. Dependerá, antes do mais, da maior ou menor eficiência na aplicação dessa lei pela entidade de regulação responsável, bem como do sistema judicial de recurso. A este ponto nos referiremos mais adiante. Mas, para além disso, há que ter em conta que as situações de distorção da concorrência são muito diversas e vão muito para além das questões tratadas pela regulamentação/regulação da Concorrência.

Indica-se, em seguida, um conjunto alargado de fontes de distorção e/ou limitação da concorrência.

  1. O abuso do poder de mercado ou de posição dominante: neste elenco, será o caso que mais directamente diz respeito à regulação e supervisão da Concorrência e que se traduz no uso do poder de mercado das empresas mais fortes no sentido de estabelecer condições de preço ou contratuais contrárias aos interesses dos consumidores e /ou dos fornecedores de menor dimensão. A vertente dos fornecedores não é de menor importância, na medida em que limita a sua capacidade de crescer e de se tornarem mais eficientes, de modo a originar um tecido empresarial mais denso, mais forte e mais competitivo. E também os inibe de recorrer contra tal abuso, com o receio de retaliações como a de serem excluídos da lista de fornecedores.
  2. A informalidade na economia: o facto de coexistirem empresas que cumprem as obrigações fiscais, sociais ou as normas de mercado, com outras que não as cumprem é uma poderosa fonte de distorção da concorrência. Primeiro, porque permite que empresas menos eficientes se mantenham no mercado, eventualmente expulsando ou impedindo de entrar outras mais eficientes; segundo, porque distorcem o custo relativo dos factores (trabalho vs. capital), reduzindo o incentivo ao investimento e à modernização. Terceiro, porque a carga fiscal e social das empresas cumpridoras tem de ser mais elevada, deteriorando a sua capacidade concorrencial.
  3. A subsistência de empresas com resultados reiteradamente negativos e incumpridoras: trata-se aqui de empresas que, mesmo estando na economia formal, declaram sistematicamente resultados negativos e que, por força disso, acabam por incumprir obrigações fiscais e sociais, permanecendo no mercado duradouramente. Isso pode acontecer porque os resultados declarados não correspondem aos verdadeiros ou porque o actual quadro legal (nomeadamente o artº 35 do Código das Sociedades Comerciais) permite a subsistência prolongada de empresas descapitalizadas e economicamente inviáveis. Outras vezes, os resultados negativos são meramente contabilísticos, permitindo assim o não pagamento de impostos. Se atentarmos que mais de 40% das empresas portuguesas que fazem declarações fiscais não pagam qualquer importância a título de IRC, teremos uma noção da dimensão deste problema.
  4. A corrupção e o tráfico de influências: não são necessárias grandes explicações da razão pela qual estes factores afectam a sã concorrência. A maior ou menor facilidade de acesso a pessoas ou instituição com capacidade de decisão sobre as actividades económicas coloca as empresas em desigualdade, prejudicando as que desenvolvem a sua actividade de acordo com as leis e regulamentos vigentes e recorrem às estruturas normais que asseguram a sua aplicação.
  5. Os tempos e o não cumprimento dos prazos dos processos de autorização/licenciamento: a simplicidade e rapidez dos processos administrativos de autorização ou licenciamento relativos a actividades económicas são condições essenciais para a entrada e saída do mercado e para o desenvolvimento das empresas com custos tão reduzidos quanto possível. O alongamento dos prazos só por si constitui um custo para as empresas que, assim, podem ver prejudicadas oportunidades de negócio e de mercado. A situação agrava-se quando a Administração Pública não cumpre os prazos legalmente estabelecidos – usando expedientes como a formulação de 10 Estes tempos representam também, de facto, custos acrescidos para as empresas que, quando têm possibilidade, repercutem nos consumidores. 27 pedidos de esclarecimento que interrompem a contagem dos prazos – e se, mesmo que involuntariamente, têm comportamentos e prazos não uniformes.
  6. O não cumprimento dos prazos de pagamento por entidades da Administração Central e Local: neste caso, o mau exemplo vem do próprio Estado, que deveríamos sempre ver como pessoa de bem. Para lá de os prazos de pagamento serem frequentemente alongados, não é raro que eles não sejam cumpridos, acumulando as várias entidades da Administração Central e Local dívidas por vezes avultadas face às empresas fornecedoras. Uma vez mais, para lá do mal da incompreensível prática em si, a possibilidade de ela não ser uniforme perante todos os credores cria situações de distorção de concorrência que podem assumir relevo significativo.
  7. Os prazos e os critérios de aprovação de programas de apoio público às empresas: parte relevante dos fundos estruturais comunitários tem sido encaminhada para o apoio às empresas, sobretudo pequenas e médias. A atribuição desses fundos depende da aprovação de projectos específicos pelas entidades legalmente habilitadas. A eventual subjectividade de alguns critérios e/ou da respectiva aplicação, bem como o alongamento diferenciado dos prazos de aprovação são uma potencial fonte de distorção da concorrência entre as empresas.
  8. Os regimes e benefícios fiscais casuísticos: tendo Portugal taxas de IRC muito elevadas e um pouco habitual regime de progressividade, a angariação de investimentos de dimensão significativa, sobretudo estrangeiros, tem recorrido ao chamado “regime contratual do investimento”, com a concessão de regimes fiscais casuísticos e generosos às empresas beneficiárias. Normalmente, estes investimentos são os classificados como PIN (Projectos de Interesse Nacional), regidos por um conjunto de critérios cuja aplicação contém significativo grau de subjectividade. O que é, inegavelmente, uma fonte potencial de distorção da concorrência com as empresas sujeitas à tributação normal. É certo que a atribuição deste tipo de benefícios passa pela autorização europeia no âmbito dos Auxílios de Estado. Mas, não só também aí não é afastado o risco da subjectividade, como a análise do impacto na 28 concorrência é feita relativamente ao mercado europeu e não ao mercado nacional, relativamente ao qual essa análise também deveria ser feita.
  9. Os tempos e a incerteza da “justiça económica”: São conhecidas as dificuldades com que se deparam as empresas quando têm de recorrer ao sistema judicial, seja para obter a execução de contratos incumpridos como no dirimir de contenciosos com a Administração Fiscal, seja ainda quando accionam um Processo Especial de Recuperação de Empresas. Os tempos que estes processos demoram não são compatíveis com o normal desenvolvimento dos negócios das empresas e proporcionam, uma fez mais, situações de distorção da concorrência e de ineficiente afectação de recursos. Em particular, a ineficiência dos processos de insolvência e recuperação de empresas atenta contra a facilidade de entrada e saída do mercado, que tão relevante é para a sã concorrência. Como se constata pela descrição dos nove pontos referidos, só o primeiro diz respeito à regulação da concorrência propriamente dita. Os restantes têm origem na legislação e regulamentação da economia em geral e na sua aplicação pela Administração Pública e pelo sistema Judicial. No que se segue, ilustraremos a situação observada no nosso País em termos da qualidade da regulamentação relevante e em alguns dos pontos acima referidos.

Qualidade da Regulamentação

O Gráfico 10 representa o índice de qualidade regulatória para Portugal, Espanha e mais quatro países de reconhecidas boas práticas (Dinamarca, Holanda, Nova Zelândia e Reino Unido nos anos de 2000, 2010, 2015 e 2022). Os valores apontados para Portugal não só são baixos, como não têm apresentado melhorias consistentes. A Espanha tem uma nota próxima da de Portugal no passado recente, todavia com uma deterioração significativa a partir de 2010. Já os restantes países considerados recebem consistentemente notações muito superiores (praticamente duplas), apesar da ligeira deterioração recente do Reino Unido e, em menor medida, dos Países Baixos.

Estes elementos mostram o vasto espaço de melhoria que existe na qualidade da regulamentação e que é relevante não só para a concorrência, mas também para a eficiência económica em geral.

Fonte: OCDE

Já os restantes países considerados recebem consistentemente notações muito superiores (praticamente duplas), apesar da ligeira deterioração recente do Reino Unido e, em menor medida, dos Países Baixos. Estes elementos mostram o vasto espaço de melhoria que existe na qualidade da regulamentação e que é relevante não só para a concorrência, mas também para a eficiência económica em geral. No que diz respeito em particular à regulamentação de mercados e produtos, a OCDE faz também uma avaliação qualitativa, que está reflectida no Gráfico 11 para um conjunto selecionado de países europeus com diferentes características.

Note-se que o indicador apresentado está construído de forma inversa, podendo variar entre zero e seis, sendo o zero correspondente à situação ideal. Podemos constatar que Portugal está um pouco pior do que a média da OCDE, e significativamente distante da média dos cinco melhores, tendo a Espanha e a Dinamarca valores próximos desse grupo e correspondendo o Reino Unido à melhor situação entre os países representados.

Apesar de o indicador para Portugal se situar num valor que não é muito elevado, pode concluir-se pela necessidade de melhoria, tanto mais que compara negativamente com o país vizinho.

Fonte: OCDE

Um dos aspectos especialmente relevantes nesta regulamentação diz respeito às exigências de carácter administrativo com que se confrontam as empresas. Neste domínio, Portugal encontra-se longe da situação dos cinco melhores países da OCDE e, sobretudo em situação desfavorável face a concorrentes próximos como a Espanha, a Irlanda, a França ou a Dinamarca (embora significativamente melhor do que o surpreendente registo da Alemanha).

Fonte: Banco Mundial

A OCDE avalia também o próprio processo de regulamentação, por diversos ângulos. Um deles diz respeito à avaliação do impacto da regulamentação sobre a concorrência. Como podemos constatar pelo Gráfico 13, o nosso País aparece numa situação muito desfavorável quando confrontada com a de uma selecção de países europeus e, sobretudo, quando comparada com a dos cinco melhores países na OCDE.

Neste indicado, destacam-se a Alemanha, os Países Baixos e o Reino Unido, este último com a situação ideal (correspondente ao valor zero do indicador). Assim, na produção de nova regulamentação, é recomendável que os órgãos por ela responsáveis a submetam a uma adequada avaliação dos seus efeitos sobre a concorrência nos mercados por ela afectados.

Fonte: OCDE

Outro critério diz respeito à interacção com os “stakeholders”, do ponto de vista da audição legítima e relevante de grupos de interessados para efeitos da produção da regulamentação. Portugal surge numa posição bastante desfavorável no que diz respeito ao envolvimento dos stakeholders nos processos de regulamentação, (embora próxima das observadas para a Itália e os Países Baixos), contrastando com a situação que resulta para o conjunto de países selecionados e, sobretudo com a situação dos 5 melhores da OCDE.

Fonte: OCDE

O nosso País surge igualmente mal classificado no critério da regulação do lobbying, o que não será surpreendente, tendo em conta a não existência de qualquer regulamentação neste domínio. No entanto, constata-se também que países com indicadores também desfavoráveis nesse indicador específico apresentam posições muito positivas no indicador geral do envolvimento de stakeholders. O que indicia que a cultura e as boas práticas instituídas nesses países dispensarão a regulamentação das relações com os grupos de interesse sem afectar a qualidade e a transparência dos processos. No entanto, nos países em que essa cultura e essas boas práticas não estão assimiladas pela Administração, a regulação do lobying poderá revelar-se relevante, embora ela não seja, por si só, suficiente. Este aspecto tem também importantes relações com outro que veremos mais adiante, a corrupção e o tráfico de influências, que tem fortes implicações sobre o ambiente de concorrência.

Da regulamentação produzida e da respectiva aplicação resulta a maior ou menor relevância das barreiras à entrada no mercado e, por conseguinte, da sua contestabilidade. Ainda de acordo com os indicadores da OCDE, a situação de Portugal é particularmente desfavorável no sector dos serviços, apenas acompanhada, no conjunto de países selecionados, pela Itália e, a alguma distância, pela França. O que sugere uma análise aprofundada e urgente das razões desta percepção relativamente ao sector dos serviços e a adopção das medidas necessárias à sua correcção.11 Já no caso das chamadas “indústrias de rede”, a situação portuguesa parece ser percebida como razoável.

Fonte: OCDE

Note-se que estes indicadores reflectem essencialmente as condições regulamentares de entrada no mercado. No entanto, muitas vezes o acesso ao mercado é limitado pela prática de aplicação das leis e regulamentos. Nos sectores em que são necessárias autorizações administrativas para o início de uma actividade, o tempo necessário e os obstáculos para a obtenção dessas autorizações podem constituir-se como verdadeiras barreiras de acesso ao mercado. Os sectores da Indústria, do Comércio, do Turismo e mesmo o sector financeiro são exemplos em que a incerteza sobre os prazos de processos de autorização pode não só acabar por impedir o acesso, como criar situações de distorção de concorrência pela diversidade de resultados em diferentes casos.

A título de exemplo, o prazo médio de licenciamento de indústrias extractivas situa-se nos 1500 dias! O licenciamento industrial em geral, apesar de uma regulamentação formalmente adequada, revela na prática muitas deficiências, pela falta de articulação entre as entidades envolvidas – por exemplo, conforme notado em Alves (2023), as Câmaras Municipais não estão integradas no ponto de acesso (o Balcão do Empreendedor) – do mesmo modo que os prazos legalmente estabelecidos acabam por ser frequentemente ultrapassados pelo recurso à prática da interrupção de prazos para pedido de novos elementos.

Estes problemas tinham sido resolvidos no regime do Licenciamento Industrial de 2003 (Decreto Regulamentar nº8/2003) em que todo o processo era centralizado nas Direcções Regionais de Economia, que solicitavam todos os pareceres e autorizações necessários, podendo o processo ser interrompido uma só vez para eventual pedido de esclarecimentos/elementos, e tendo os serviços envolvidos prazos rigorosos para a emissão das respectivas decisões, findos os quais as Direcções Regionais de Economia poderiam dar seguimento ao processo.

Estes últimos pontos acabaram por não constar dos diplomas regulamentares seguintes, com resultados que se traduzem em tempos alongados e incertos, prejudicando as condições de rentabilidade dos projectos, a concorrência e a atracção do bom investimento estrangeiro e nacional.

Neste último domínio também se verificaram alguns retrocessos, desde o regime consagrado no diploma de criação da Agência Portuguesa para o Investimento pelo Decreto-Lei 225/2002, que traduziu uma verdadeira desgovernamentalização do processo de angariação e autorização do investimento privado no nosso país.

As alterações subsequentes – com a introdução dos conceitos de projectos PIN e PIN+ – acabaram por criar um regime discriminatório entre projectos, de acordo com uma classificação que envolve decisões casuísticas, com algum grau de subjectividade e intervenções do foro governamental.12 Os resultados negativos ficaram bem à vista nos incidentes políticos do final de 2023.

Finalmente, no que diz respeito às chamadas “indústrias de rede”, por vezes há aspectos práticos que acabam por se traduzir em limitações no acesso ao mercado, como é o caso da 12 Ver, a propósito o artigo “Desgovernamentalizar o Investimento Privado”, Tavares (2023) 35 persistente discussão sobre o uso da “bitola ibérica” versus “bitola europeia” nas linhas de caminho de ferro ou então das empresas incumbentes na cessão do acesso a infraestruturas comuns.

Do mesmo modo, as leis – por exemplo de natureza fiscal – que penalizam e desincentivam os ganhos de dimensão acabam por limitar a concorrência, ao impedir a existência de um maior número de empresas com capacidade competitiva no mercado doméstico. Por isso, será fundamental que, para além da correcção formal das leis e regulamentos, sejam cuidadas as condições da sua aplicação prática, o que passará também por uma necessária reforma da administração pública que confira aos respectivos serviços a eficiência necessária a uma boa aplicação da regulamentação criada. Essa é uma condição essencial para a eliminação das barreiras de acesso ao mercado.

Por exemplo, sendo hoje fácil constituir uma empresa, já poderá não ser fácil conseguir todas as autorizações necessárias ao seu funcionamento, sobretudo nos sectores acima referidos.

Informalidade

A informalidade constitui um importante factor de distorção da concorrência e uma das mais importantes barreiras ao crescimento da produtividade. O relatório publicado pelo Ministério da Economia em 2003 e elaborado com a colaboração do McKinsey Global Institute elaborado em 2003 sob os auspícios do Ministério da Economia e intitulado Portugal 2010 (Ministério da Economia, 2003) identificava a informalidade como a primeira e mais relevante barreira ao desenvolvimento da produtividade em Portugal. Apesar disso, o combate à economia informal não tem tido resultados notórios no nosso país. No Gráfico 16, apresenta-se uma das estimativas recentes do peso da economia informal no PIB para a economia portuguesa.

Pode constatar-se que esse peso se tem mantido elevado, situando-se ainda em cerca de 23% do PIB em 2020, com um progresso muito pouco significativo nos últimos 30 anos. Acresce que existem estimativas bem superiores, de que se destaca a recentemente apresentada num 13 As barreiras identificadas a seguir em termos de importância eram os processos de autorização e licenciamento e a regulamentação de mercados e produtos, todas com impacto negativo na concorrência e, consequentemente na produtividade. 36 trabalho de Óscar Afonso, da Faculdade de Economia do Porto (Afonso, 2023), que aponta para um peso de cerca de 35% do PIB.

Em qualquer caso, trata-se de uma parte insuportavelmente elevada da produção nacional que escapa às regras e obrigações com que se deparam as empresas do sector formal da economia e que, mesmo que menos produtivas, concorrem com as cumpridoras, ao ponto de poder expulsá-las do mercado ou de impedir a entrada de empresas mais produtivas.

Esta deverá ser seguramente uma das prioridades da política económica na promoção de um ambiente de mais e melhor concorrência no nosso País. Um sistema fiscal mais simples, mais justo e mais moderado 14 , reduzindo o “prémio do incumprimento” será uma das condições essenciais para a redução da economia informal, sobretudo se combinado com mecanismos de fiscalização, controlo e cruzamento de informação mais desenvolvidos e eficientes.

Fonte: Elgin, Kose, Ohnsorge & Yu (2021)

 

Diversidade de situação das empresas

Referimos também como a subsistência prolongada de empresas descapitalizadas, com perdas reiteradas e eventualmente em incumprimento das suas obrigações legais e contratuais pode afectar negativamente a concorrência. A situação que encontramos no nosso país não é tranquilizadora a esse respeito.

O gráfico seguinte mostra a situação global das empresas portuguesas em 2022. Apesar de este ser um ano de conjuntura positiva, cerca de 37% das empresas apresentavam resultados negativos, cerca de 33% apresentava EBITDA negativo e cerca de 25% tinham capitais próprios negativos. Assim, uma parte significativa das empresas estava em situação de severo desequilíbrio financeiro, situação que se tem prolongado no tempo. O que coloca a questão, já atrás referida, da necessidade de solucionar estas situações, seja pela via mais desejável da recapitalização e da recuperação, seja pela via da saída do mercado quando a primeira não for viável. Acontece que os processos de insolvência e recuperação de empresas enfermam de grave ineficiência, como veremos mais adiante, tudo contribuindo para potenciais efeitos negativos na concorrência.

Fonte: Central de Balanços do Banco de Portugal

Um dos mecanismos legais que poderia prevenir a situação descrita é o artº 35 do Código das Sociedades Comerciais, que estabelece que:

  • Resultando das contas de exercício ou de contas intercalares, tal como elaboradas pelo órgão de administração, que metade do capital social se encontra perdido, ou havendo em qualquer momento fundadas razões para admitir que essa perda se verifica, devem os gerentes convocar de imediato a assembleia geral ou os administradores requerer prontamente a convocação da mesma, a fim de nela se informar os sócios da situação e de estes tomarem as medidas julgadas convenientes.

Em seguida esclarece que se considera estar perdida metade do capital social quando o capital próprio da sociedade for igual ou inferior a metade do capital social. Finalmente estabelece que do aviso da convocatório da assembleia geral constarão, pelo menos, os seguintes assuntos para deliberação pelos sócios:

a) A dissolução da sociedade;

b) A redução do capital social para montante não inferior ao capital próprio da sociedade, com respeito, se for o caso, do disposto no n.º 1 do artigo 96.º;

c) A realização pelos sócios de entradas para reforço da cobertura do capital.

Esta disposição, conceptualmente correcta, impediria a situação de resultados recorrentemente negativos, a que nos referimos. Enferma, todavia, de um problema: não estabelece qualquer consequência para o caso de a Assembleia-Geral da sociedade não tomar qualquer das três decisões previstas: aumento de capital, redução de capital ou dissolução da sociedade, retirando-lhe assim qualquer eficácia.

A questão foi tratada em 2002 pelo Decreto-Lei 162/2002 (aprovado pelo Governo de Durão Barroso), que previa que caso nenhuma daquelas deliberações fosse tomada durante os dois exercícios seguintes, a empresa entraria automaticamente em dissolução (previa-se ainda um período de transição de três anos, para que as empresas se pudessem adaptar ao novo regime). No entanto, esta formulação viria a ser revogada logo no governo seguinte, retirando de novo a consequência da inacção e conduzindo à situação a que hoje assistimos, com uma grande parte de empresas com resultados recorrentemente negativos e, por consequência disso, descapitalizadas, em casos limite, com capitais próprios negativos. Situação que incluiu, frequentemente, algumas bem conhecidas empresas do Sector Empresarial do Estado.

As virtudes deste mecanismo, no caso das empresas com prejuízos reiterados, são muito relevantes, obrigando as empresas a manter níveis de capitalização adequados ou então a sair do mercado, seja por dissolução, seja por fusão ou aquisição por outras empresas. O que teria um efeito virtuoso sobre a concorrência e sobre a produtividade, conduzindo a níveis de bem-estar superiores. Para além do mais, teria evitado que as referidas empresas do Sector Empresarial do Estado tivessem conhecido os severos desequilíbrios financeiros que conduziram mais tarde à injecção massiva de recursos públicos.

É claro que um artigo 35º nos termos que defendemos deveria ser conjugado com uma mudança da filosofia do IRC, de modo que, por uma vez, tendesse para a eliminação da penalização fiscal do capital face à dívida das sociedades.15 Exigiria também a criação de mecanismos de capitalização das empresas que, estando em situações de desequilíbrio financeiro, apresentem bons indicadores operacionais e económicos.

A “Justiça Económica”

No campo da justiça económica, a situação também não é favorável aos princípios da concorrência. A duração média dos processos de insolvência e recuperação de empresas situava-se, no quarto trimestre de 2023 em 63 meses, depois de um máximo de 73 meses em 2022 e muito acima dos 23 a 28 meses registados entre 2011 e 2014. E isto apenas na primeira instância! Acresce que a taxa de recuperação dos créditos correspondentes a este tipo de casos se situou em apenas cerca de 8% no quarto trimestre de 2023. Tudo isto atestando bem as distorções emergentes do arrastamento da saída do mercado de empresas inviáveis que, naturalmente, se traduzem em obstáculos à entrada de empresas novas e mais eficientes.

Fonte: Direcção-Geral de Política de Justiça

Por seu turno, a duração das acções executivas cíveis continua igualmente com valores muito elevados. Apesar da melhoria dos últimos anos, a duração média destes processos situava-se ainda em 39 meses (voltando ao valor observado em 2011) e cerca de 20% dos processos tinham duração superior a cinco anos. Ou seja, um simples processo de execução de uma dívida duraria em média mais de três anos, podendo o prazo ir para além dos cinco anos numa percentagem ainda significativa dos casos.

Fonte: Direcção-Geral de Política de Justiça

Podemos, finalmente, observar na Tabela 1 os tempos médios dos processos findos em 2022 e 2023 nos Tribunais Administrativos e Fiscais: (valores em meses):

Fonte: Direcção Geral da Política de Justiça

As situações apresentadas têm custos elevados para as empresas e para a sociedade. Desde logo, implicando custos financeiros e de tempo, discrimina a favor de quem tem mais recursos, com a agravante da aleatoriedade das decisões. São aumentados os custos de contratação e transacção, ao mesmo tempo que diminui a propensão a contratar, face à incerteza dos tempos e dos resultados. Uma vez mais, apesar da melhoria observada, estes tribunais, essenciais para a actividade económica, apresentam prazos médios entre dois e quatro anos, com particular severidade no caso das matérias fiscais. E, de novo, a duração dos processos e a sua aleatoriedade constituem uma inegável ameaça a um ambiente de sã concorrência.

Esta situação aponta inequivocamente para a necessidade de uma profunda revisão da organização da parte do sistema judicial dedicada a garantir a normalidade e a eficiência do funcionamento da economia. O que passará pela revisão de leis, da organização e dos procedimentos, mas também por maior especialização e formação e apoio técnico aos agentes do sistema judicial que intervêm nos processos, para além da imposição de prazos vinculativos para o cumprimento dos diversos actos e diligências dos respectivos processos. Porque, além do mais, a previsibilidade dos tempos necessários é uma condição essencial da vida das empresas.

A corrupção e os seus efeitos sobre a concorrência e a economia Outro ponto referido como susceptível de afectar a concorrência foi o da corrupção e do tráfico de influências. Também aqui a percepção externa da situação portuguesa não é Natureza 2022 2023 Administrativa 24 21 Fiscal 47 41 Administrativa+Fiscal 37 31 42 encorajadora. No Gráfico 12 representa-se o índice de controlo da corrupção no Banco Mundial para a amostra de países selecionada. Dele se retira a conclusão de que o nosso país não é visto como sendo eficaz no controlo da corrupção, apresentando o índice valores muito inferiores aos dos melhores países da amostra, sendo o nível de 2022 apenas semelhante ao da Espanha. Situação que resulta agravada se considerarmos que o indicador apresenta uma deterioração significativa entre 2010 e 2022.

Fonte Banco Mundial

As consequências negativas da corrupção e do tráfico de influências vão muito para além dos efeitos sobre a concorrência, nos termos que já assinalámos. Por isso serão positivas todas as decisões de política que contribuam para a redução, desejavelmente erradicação, deste mal que é também um dos factores que prejudicam a atracção do bom investimento directo estrangeiro.

  • Colunista convidado. Economista e antigo Ministro da Economia

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