É a procura, estúpido!

Criemos as condições para acelerar o investimento na eletrificação e, desse modo, tornar as metas aspiracionais do Plano Nacional de Energia e Clima uma realidade.

O tema do licenciamento ambiental e municipal tem estado, e bem, no centro do debate sobre a transição energética. E é, sem dúvida alguma, até por causa da necessidade de transpor e pôr em prática a norma do interesse público superior da transição energética, um tema que deve merecer todo o empenho do Governo. Mas não deixa de ser um tema que, apesar de crítico para o cumprimento das metas de descarbonização, parte do pressuposto de que a vontade de investir existe.

Ora, a vontade de investir em nova produção de eletricidade a partir de fontes de energia renovável não pode simplesmente ser presumida. Sobretudo, não devemos presumir que essa vontade decorre naturalmente da fixação de metas mais ou menos ambiciosas por parte do Governo. Nem achar que os meros avanços tecnológicos, por si só, serão suficientes. O que as metas fazem é responsabilizar o Governo pela definição de políticas que, em primeiro lugar, criem as condições para que essa vontade de investir exista e, em segundo lugar, que esse investimento seja sustentável para o sistema elétrico nacional como um todo. Para que isso aconteça, o Governo tem de olhar, em simultâneo, para a oferta e para a procura de eletricidade renovável. No contexto atual, diria mesmo que a grande prioridade está do lado da procura, que terá de crescer.

A procura de eletricidade, apesar do crescimento económico dos últimos anos, não tem crescido. Tem, aliás, descido: uma parte por causa do aumento da eficiência energética, outra porque a indústria tem investido em autoconsumo, que tende a aparecer nas estatísticas como consumo negativo. Para que as ambiciosas metas de investimento em nova capacidade de produção de eletricidade a partir de fonte solar e eólica sejam viáveis torna-se essencial que a procura por eletricidade aumente de forma muito significativa. E só há, grosso modo, três formas de o fazer: eletrificar os transportes, eletrificar a indústria e adicionar consumos energéticos que, direta ou indiretamente são consumo de eletricidade renovável.

Olhemos para o potencial de eletrificação dos consumos energéticos já existentes. Segundo o Balanço Energético de 2023, publicado pela Direção Geral de Energia e Geologia, a eletricidade representa apenas 25% do consumo total de energia. Isto acontece porque os transportes e a indústria, que juntos representam 64 %do consumo de energia em Portugal, só têm 0,8% e 31% da sua energia sob a forma de eletricidade. Sendo dois setores em que a combustão predomina, são também dois setores em que as renováveis e evolução tecnológica permitem encarar a obrigação de descarbonização como oportunidade para ser energeticamente mais eficiente e mais competitivo através da eletrificação. Cabe às políticas públicas criar as condições para que esse potencial seja concretizado.

Há hoje, em particular no transporte rodoviário e na indústria transformadora, oportunidades que podem exigir um investimento elevado à cabeça, mas têm custos de operação e manutenção mais reduzidos. Veículos elétricos e bombas de calor, pela sua evidente vantagem em termos de eficiência, são forma mais barata de descarbonizar. E há outras tecnologias, como as baterias térmicas, que não estão tão maduras, mas tem enorme potencial, podendo complementar as bombas de calor.

O setor dos transportes públicos rodoviários, os transportes turísticos, os táxis e as frotas comerciais devem eletrificar mais rapidamente, porque podem. E parte da indústria, sobretudo a que dependa de processos térmicos de baixa temperatura (menos de 200C), também pode. Dar prioridade a esses setores pode ter retorno imediato no aumento da procura por eletricidade e na eficiência energética. E podia ser uma boa forma de acelerar execução dos fundos do PRR. A eletrificação prioritária de certos setores, com planos de ação dedicados, , podia e devia assumir o caráter de prioridade política.

Apoiar a compra de mais autocarros e assegurar que são todos elétricos tem a tripla vantagem de aumentar a procura por eletricidade, de melhorar o serviço de transportes públicos e de reduzir necessidade de transporte individual.

Apoiar o investimento em bombas de calor e outras tecnologias baseadas na eletrificação direta dos consumos atuais aumentaria a eficiência energética na indústria, reduziria custos e permitiria que a esta fosse remunerada por serviços de flexibilidade prestado à rede elétrica, nomeadamente reduzindo picos de procura. E também aumentaria a procura de eletricidade e o peso desta no consumo total de energia. Gradualmente, é certo, mas o importante é que seja possível ir consolidando o aumento da procura de eletricidade, para que o investimento em nova capacidade de produção possa ir acontecendo, possa remunerar o investimento e não onere o sistema.

As soluções existem. Criemos as condições para pô-las em prática e para acelerar o investimento na eletrificação e, desse modo, tornar as metas aspiracionais do Plano Nacional de Energia e Clima uma realidade.

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