Gestores dos hospitais públicos escaparam ao corte salarial. Finanças exigem devolução do dinheiro
Despacho interno da era Marta Temido dispensou a redução de 5% sobre os ordenados brutos. Fernando Medina teve outro entendimento e as Finanças querem agora a correção com efeitos retroativos.
Os administradores dos hospitais públicos escaparam ao corte salarial de 5% desde, pelo menos, 2020, durante a tutela de Marta Temido, ao abrigo de uma instrução interna da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), a que o ECO teve acesso. Já na era do Governo de maioria absoluta socialista, entre 2022 e 2024, o entendimento do então ministro das Finanças, Fernando Medina, foi outro: a lei teria de ser cumprida.
O Executivo da Aliança Democrática (AD), de Luís Montenegro, deu seguimento a essa mesma interpretação e, esta quarta-feira, a Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF), sb a tutela do ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, e a ACSS enviaram uma missiva a todas as entidades para que apliquem a redução salarial com efeitos retroativos. O ECO tem questionado o Ministério das Finanças e a ACSS desde quarta-feira sobre o ponto de situação deste processo e aguarda respostas. O despacho das Finanças, consultado pelo ECO, determina que devem “ser regularizadas todas as situações que estejam em desconformidade com esta determinação, designadamente através do ajustamento retroativo das remunerações entretanto processadas”.
Quando a circular da ACSS foi endereçada aos hospitais públicos, a 15 de julho de 2020, para eliminar de forma progressiva os cortes salariais de 5% que estão em vigor desde 1 de junho de 2010, no âmbito do Programa de Estabilidade e Crescimento (PEC) de José Sócrates, o Ministério da Saúde era comandado por Marta Temido, ministra de um governo socialista de António Costa que não tinha maioria absoluta no Parlamento.
O despacho, assinado por Pedro Alexandre, então vogal do conselho diretivo da ACSS, sustentava a sua decisão num parecer da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), de 2019, e numa norma do decreto-lei de execução do Orçamento do Estado para 2018, segundo o qual “os efeitos temporários das normas e medidas” relativas à redução dos vencimentos brutos em 5%, são “progressivamente eliminados”.
“Assim, e obtido o parecer da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, e em ordem à uniformidade de procedimentos, informa-se […] que a redução da remuneração fixa mensal ilíquida […] deve ser progressivamente eliminada”, lê-se na mesma carta. Ao que o ECO apurou, este despacho interno poderá ser ilegal porque não se pode sobrepor a uma lei emanada da Assembleia da República.
Com Fernando Medina ao leme das Finanças, a interpretação foi totalmente diferente: aos gestores das agora designadas Unidades Locais de Saúde EPE também deveria incidir o corte salarial. Detetadas situações irregulares, o ministro das Finanças da altura pediu à Inspeção-Geral das Finanças (IGF) um ponto de situação sobre o cumprimento da lei, sabe o ECO. A IGF fez uma inspeção e verificou que a redução dos vencimentos não estava a ser aplicada, tendo emitido um alerta para a Finanças sobre a aproximação do fim do prazo para a regularização dos cortes.
Como os processos estão em risco de prescrever, a DGTF e a ACSS enviaram, esta quarta-feira, dia 4, uma carta a todos os hospitais EPE para corrigir a situação com efeitos retroativos. A prescrição não está relacionada com o Orçamento do Estado para 2025 (OE2025), que aprovou o fim desta redução dos vencimentos dos titulares de cargos políticos e gestores públicos como efeitos imediatos a 1 de janeiro do próximo ano, sabe o ECO.
Na missiva, a DGTF e a ACSS reconhecem que “a proposta de Orçamento do Estado para 2025 […] revoga o n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 12-A/2010, de 30 de junho, que determinava a redução, a título excecional, em 5% da remuneração fixa mensal ilíquida dos gestores públicos, executivos e não executivos, com produção de efeitos desde 1 de junho de 2010”. “Assim, a partir de 1 de janeiro de 2025, deve […] diligenciar pelo ajustamento dos vencimentos dos gestores públicos, eliminando o corte dos 5% que a referida norma previa”, segundo o mesmo documento.
“Contudo, dado que tal previsão se mantém vigente até 31 de dezembro de 2024, reitera-se […] necessidade de […] aplicação da redução de 5% da remuneração fixa mensal ilíquida dos gestores públicos, até à referida data, devendo ser regularizadas todas as situações que estejam em desconformidade com esta determinação, designadamente através do ajustamento retroativo das remunerações entretanto processadas”, remata a missiva assinada pela diretora-geral da DGTF, Maria João Dias Pessoa de Araújo, e pelo presidente do conselho diretivo da ACSS, André Filipe Trindade Ferreira.
Para o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares, Xavier Barreto, “esta situação poderá gerar algum desconforto e descontentemente juntos dos gestores que vierem a ser obrigados a devolver salário”. Além disso, considera que “o despacho de 2020, que indicava a eliminação progressiva do corte salarial é bastante claro”, pelo que não entende agora “a mudança de posição e de interpretação”. “É contraditório”, critica.
As irregularidades na aplicação do corte dos ordenados têm vindo a ser detetadas mesmo antes do despacho de julho de 2020. Logo em 2010, no primeiro ano de aplicação da medida, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) tinha “identificado casos em que as entidades inquiridas não procederam à redução de 5% da remuneração dos gestores públicos”. Num sentido mais amplo e sem apenas se cingir aos hospitais públicos, o relatório da Conta Geral do Estado de 2011 concluiu que não foi aplicada qualquer redução salarial a 25 gestores e 13 entidades.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Gestores dos hospitais públicos escaparam ao corte salarial. Finanças exigem devolução do dinheiro
{{ noCommentsLabel }}