Je suis Benformoso
Ir atrás da deriva de Passos na ligação da imigração à segurança seria um erro crasso do líder do PSD. Nunca iria apanhar o Chega, só iria levar os dois mais à direita e aí só existiria um vencedor.
Tenho uma ligação histórica à Rua do Benformoso. Cresci no Porto, mas nas regulares visitas à família materna sediada na capital, uma manhã ou tarde tinha de ser dedicada à rua que liga o Martim Moniz ao Intendente. Porta sim, porta não, havia alguém a cumprimentar-nos em gujarathi e, no caso de maior proximidade, a convidar a entrarmos nas pequenas lojas recheadas de brinquedos, brindes, ferramentas ou outros itens diversos.
Muitas eram lojas de revenda, uma modalidade que me levantava imensa curiosidade sobre os “armazéns” que ficavam nas traseiras dos estabelecimentos. Ford Transit ou Toyota Hiace passavam ou paravam e carregavam (ou descarregavam) mercadoria em caixas ou gigantescos sacos pretos. Entre uma loja ou outra, aparecia sempre um tio que insistia em oferecer um bolo ou uma torrada num dos cafés da rua, muitos dos quais já serviam o masala chai, mantido quente num clássico thermos.
Para um jovem habituado à dispersão da pequena comunidade indiana na Invicta, era todo um mundo diferente, onde os conterrâneos que vieram da costa oriental de África tinham criado uma Little India, cheia de cores, cheiros e sabores, no centro da capital portuguesa.
Anos mais tarde — décadas, na realidade –, depois de passagens por outros países, regressei a Portugal e o destino quis que fosse viver na Mouraria, a meio de uma das colinas, aquela que desce precisamente para a Benformoso e o Martim Moniz. Nesse período, a meio da primeira década do século, numa Lisboa ainda sombria e escura, distante do circo turístico no qual infelizmente se tornou, tive oportunidade de fazer trabalhos jornalísticos sobre a identidade única de um bairro que já misturava Índia, África, China e muitas outras origens num local que respira o ritmo de Portugal, o fado.
Tendo seguido para viver noutras paragens da cidade, não deixei (não deixo) de regressar para ir à Popat Store (na galeria do metro) comprar as especiarias essenciais, ao Hua Ta Li as massas chinesas, normalmente depois de um almoço de bacalhau com grão no clássico Zé da Mouraria e sem terminar o périplo antes de uma chamuça no Bengal Café, na Benformoso, claro.
Foi, portanto, com profunda tristeza que vi uma zona tão representativa da Lisboa inclusiva, diversa e pacífica ser violentada pelo poder. Sim, foi isso que aconteceu no dia 19 de dezembro de 2024 na Rua do Benformoso. O poder estabelecido (já lá vamos qual) decidiu que, para mostrar o seu poder, tinha que abusar dele. A PSP tinha de fazer uma rusga a uma rua inteira, a meio do dia, com grande aparato, coletes kevlar (como se fossem para a guerra) e armas de fogo (metralhadoras), colocando centenas de pessoas contra a parede e revistando-as a seu bel-prazer. Podia facilmente ter sido eu, uma dessas pessoas, mas a questão nem é essa.
Já vi isto noutros sítios. Em Londres (Brixton, por exemplo), em Paris (em Belleville, especialmente logo a seguir ao 11 de setembro). Mas em quase todos esses casos eram reações a situações complicadas e de tensão prolongada. Aqui não, foi só um pânico político.
Por mais que nos tentem iludir com a alegada independência das forças policiais (nem sei como é que isso é possível, respondendo elas a forças políticas, e ainda bem), é impossível não focar nas bacocas palavras do primeiro-ministro, no mesmo dia, a partir de Bruxelas.
Acho que é crucial repetir essas palavras aqui. O primeiro-ministro considerou que a operação foi muito importante para criar “visibilidade e proximidade” no policiamento e para aumentar a sensação de tranquilidade dos cidadãos portugueses.
“Há uma coisa que me parece óbvia, é muito importante que operações como esta decorram, para que haja visibilidade e proximidade no policiamento e fiscalidade de atividades ilícitas”, disse Luís Montenegro. Portanto é óbvio. Não sei é como é que ninguém pensou nisso antes – é preciso meter montes de pessoas contra a parede numa rua para as outras pessoas verem que há polícia e se sintam seguras. Não quero ser processado, portanto não vou aludir a factos do meio do século XX.
Infelizmente o que é realmente óbvio é que o primeiro-ministro está desorientado em relação a assunto, que é de importância extrema. Sobre o “não é não”, acredito mesmo que o PSD de Montenegro nunca irá fazer um acordo com o Chega. E respeito isso. Mas isso não significa que se tenha de inclinar para o extremo, tentar lutar Ventura no campo deste.
Há imensos exemplos desastrosos – é só olhar para o centro-direita francês, outrora o de Chirac e de poder enorme, hoje comido pela Frente Nacional ou lá o que esses monstros se chamam agora.
O primeiro-ministro considerou que as operações policiais de prevenção “têm um duplo conteúdo”, ou seja, aumentar a “tranquilidade dos cidadãos, por um lado”, e combater as “condutas criminosas“, por outro. Confesso que não percebo como é que essa espécie político-policial do Rennie Dual Action, poderá aliviar a azia de qualquer pessoa que seja.
Qual desses objetivos foi conseguido na Rua do Benformoso? Nenhum. O único objetivo era dar visibilidade, tanto que as objetivas dos canais de televisão já tinham sido chamadas. Se Montenegro tivesse realmente visão, poderia ter olhado um bocado para cima e reparado em graves problemas de tráfego na rua do elétrico, que existem há décadas. Ou em dezenas de outros sítios com problemas de criminalidade e que não têm nada a ver com o Bangladesh.
Montenegro ainda tentou emendar a mão na mensagem de Natal aos portugueses. Prometeu uma imigração regulada “para acolher com dignidade e humanismo aqueles que escolherem viver e trabalhar no nosso país”. Para fazer uma pausa entre isso e a segurança meteu uma promessa absurda (incentivar a construção para venda e arrendamento de casas a valores moderados, lol), mas praticamente no mesmo fôlego disse que vai combater a criminalidade violenta, portanto nem se esforçou muito.
Ir atrás da deriva do inenarrável Pedro Passos Coelho neste assunto seria um erro crasso do líder do PSD. Nunca iria apanhar o Chega, só iria levar os dois mais à direita e aí só existiria um vencedor. E iria perder o seu próprio centro-direita, a social-democracia, que ainda existe, pelo menos ainda, na sigla e em algumas das ideias.
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