IFRS 17 e 9: A Promessa de Melhorar o Relato Financeiro Está Cumprida?

  • Nuno Oliveira Matos
  • 16:19

Nuno Oliveira Matos pergunta se estamos dispostos a enfrentar a oportunidade, ou a ameaça, de reimaginar o papel das demonstrações financeiras na tomada de decisões informadas no setor segurador.

O objetivo primordial do relato financeiro é proporcionar uma representação verdadeira e apropriada da realidade económica subjacente à situação patrimonial, do desempenho financeiro e dos fluxos de caixa de uma entidade.

Este objetivo é alcançado através da preparação de demonstrações financeiras que não apenas atendam aos requisitos formais das normas de relato financeiro, mas que também sejam capazes de refletir de forma substancial a essência económica das transações, eventos e condições que impactam a entidade, ou seja, o negócio.

Tal objetivo porventura transcende a mera conformidade técnica, enfatizando a preeminência da substância económica sobre a forma legal ou normativa. Em outras palavras, o relato financeiro deve ser suficientemente robusto para captar as complexidades e nuances da realidade económica, permitindo aos utilizadores das demonstrações financeiras, como reguladores, acionistas, demais investidores, credores e outros stakeholders, tomar decisões informadas e baseadas em informações confiáveis, relevantes e comparáveis.

Nesta senda, a consistência nas bases de mensuração de ativos e passivos é essencial na preparação das demonstrações financeiras de uma organização em qualquer setor de atividade económica.

Nos bancos, tanto o crédito quanto o funding são, em regra, mensurados ao custo amortizado1. Nas empresas industriais, comerciais e de serviços, as contas a receber e a pagar, as disponibilidades e os empréstimos bancários obtidos são, em regra, igualmente mensurados ao custo amortizado.

É sabido que as empresas de seguros investem sobretudo em títulos de dívida, que detêm até ao vencimento, com o objetivo de receber os respetivos fluxos de caixa contratuais e, desta forma, representarem os seus passivos técnicos2. Em consequência do modelo de negócio segurador, os títulos de dívida são, em regra, mensurados ao custo amortizado. Contudo, os passivos técnicos são mensurados ao justo valor3 ou ao custo amortizado, dependendo das características específicas dos contratos em causa. Adicionalmente, em certas circunstâncias e sujeito à eleição de determinadas políticas contabilísticas, a componente do justo valor respeitante ao valor temporal do dinheiro pode ser relevada por contrapartida de capital próprio4 e/ou em resultados.

Estas diferenças nas bases de mensuração dos ativos financeiros e dos passivos técnicos criam assimetrias nas demonstrações financeiras das empresas de seguros, suscetíveis de gerar uma desconexão entre a realidade económica e o relato financeiro.

Em contraste, no regime regulamentar de Solvência II, todos os ativos e passivos são mensurados ao justo valor, garantindo-se, assim, visibilidade e transparência sobre a gestão de ativos e passivos das empresas de seguros e aderência do relato regulamentar à realidade económica.

De molde que as demonstrações financeiras das empresas de seguros relatem cabalmente a realidade económica, o relato financeiro deve evoluir no sentido de se aproximar do relato regulamentar de Solvência II. Tal convergência promoveria maior consistência regulatória, reduziria custos de conformidade e aumentaria a transparência para com os stakeholders das empresas de seguros. O diálogo entre a EIOPA5 e o IASB6, com a mediação do EFRAG7, é crucial para alcançar este objetivo.

Em última análise, a verdadeira questão que se impõe não é apenas se as normas IFRS 17 e 9 cumprem a promessa de melhorar o relato financeiro, mas se estamos dispostos a enfrentar a oportunidade, ou a ameaça, de reimaginar o próprio papel das demonstrações financeiras na criação de uma ponte sólida entre a realidade económica e a tomada de decisões informadas no setor segurador.

1 A mensuração pelo custo amortizado baseia-se na taxa efetiva (taxa interna de rentabilidade) das operações, ajustada pelas perdas esperadas por imparidade do risco de crédito.
2 Responsabilidades resultantes dos contratos vendidos pelas empresas de seguros aos tomadores de seguros.
3 No purismo técnico, dever-se-ia escrever “valor corrente”, uma vez que a mensuração dos passivos técnicos não resulta de preços de transações observáveis ou realizadas em mercado.
4 Outro rendimento integral.
5 Autoridade Europeia de Seguros e Pensões Ocupacionais.
6 Conselho de Normas Internacionais de Contabilidade.
7 Grupo Consultivo Europeu de Relato Financeiro.

  • Nuno Oliveira Matos
  • Sócio da Carrilho & Associados, SROC

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