A pronúncia do Norte

Quer mesmo conhecer como vivem nos países nórdicos? Por exemplo a Dinamarca, o povo mais feliz do mundo? Tem de ler este livro sobre o mito da utopia nórdica, assinado pelo jornalista Michael Booth.

Michael Booth é um jornalista e escritor que casou com uma dinamarquesa e vive na Dinamarca com a família. Até aqui nada de especial, pelo que convém acrescentar que Booth escreveu – e publicou pela Vintage, em 2015 – o livro ‘The Almost Nearly Perfect People. The Myth of the Scandinavian Utopia’, uma das mais divertidas, até mesmo hilariantes, informadas e informativas obras que conheço sobre os países nórdicos.

O Norte está na moda e a proliferação de livros sobre o hygee, o estilo de vida dinamarquês, prometendo, em jeito de manuais de autoajuda, ser aquela a chave para a felicidade terrena, atesta e confirma o fenómeno, a um tempo cultural e comercial. Que os dinamarqueses de há muito figuram em sucessivos estudos de opinião como “o povo mais feliz do mundo”, é algo que também sabemos, sendo esse, aliás, o ponto de partida do livro de Michael Booth, que se detém, sequencialmente, sobre a Dinamarca, a Islândia, a Noruega, a Finlândia e a Suécia.

O livro cruza experiências pessoais, contadas com imenso humor, factos históricos, números e estatísticas e, bem assim, análises ao “carácter” específico de cada um dos povos que Booth conheceu a fundo e de perto ao longo de uma jornada de muitos anos, que ainda prossegue.

Como se disse, desde 1973, pelo menos, que os dinamarqueses dizem estar “muito satisfeitos” com as suas vidas. Os dados do Eurobarómetro, entre tantos outros, são confirmados, por exemplo, pelo ‘Satisfaction Life Index’, compilado pelo Departamento de Psicologia da Universidade de Leicester.

Uma sondagem da Gallup, feita junto de jovens de 15 anos de 155 países, concluiu que apenas 1% dos dinamarqueses inquiridos estavam num estado “negativo” perante questões como o apoio da família em caso de necessidade, a liberdade política e social, a corrupção. Nessa sondagem, os jovens dinamarqueses eram também, do outro lado da escala, os que registavam mais elevados níveis de satisfação e bem-estar. De felicidade?

Em 2012 – e para mostrar que isto não é apenas o resultado de um inquérito –, as Nações Unidas publicaram, pela primeira vez, o ‘World Happiness Report’. Em primeiro lugar, claro, ficou a Dinamarca, seguida da Finlândia, com a Noruega em terceiro e a Suécia num honroso sétimo lugar. No entanto, a Dinamarca nem sempre surge nos lugares cimeiros em todas as rubricas destas sondagens, sendo por vezes ultrapassada, num aspecto ou noutro, pela Nova Zelândia ou pelo Japão, por Singapura ou pela Suíça.

Num mundo tão obcecado com a conquista da felicidade que se arrisca a perdê-la para sempre, não admira o fascínio que a Dinamarca e os países nórdicos exercem, e que é patente pelo número considerável de personalidades desses países que recebem galardões de prestígio e ocupam altos cargos internacionais ou pelo tremendo sucesso de séries televisivas como ‘Borgen’ ou ainda pela enorme projecção alcançada pela literatura escandinava, com destaque para os seus sangrentos thrillers passados em ambientes glaciais e gélidos.

Quanto à felicidade dinamarquesa, talvez alguns dados ajudam a compreendê-la: os dinamarqueses trabalham 1.599 horas por ano, bastante menos do que a média de 1.749 horas laborais da União Europeia (os gregos, coitados, trabalham 2.032 horas/ano, o que talvez obrigasse a perguntar se existe alguma ligação entre felicidade e produtividade…). Outra estatística, bastante estatista: mais de 754.000 dinamarqueses entre os 15 e os 64 anos – ou seja, cerca de 20% da população activa – não trabalha e vive de apoios sociais.

A Dinamarca orgulha-se de ser uma sociedade dominada pela classe média ou mesmo uma sociedade sem grandes distinções de classe; diz-se que antes da introdução do Estado social, o país se dividia entre 25% que tinham o maior rendimento e 25% que tinham o rendimento mais baixo e que agora existem 4% no topo da pirâmide socioeconómica e 4% na base, a par de uma gigantesca faixa de 92% de pessoas com rendimentos idênticos, o que será porventura uma imagem exagerada, mas, ainda assim, com alguma correspondência com a realidade.

Nota-se, no entanto, uma tendência, que acompanha a do resto do mundo, para uma crescente disparidade de rendimentos, com reflexos já visíveis no plano social. Segundo o jornal ‘Politiken’, desde 1985 duplicou o número daqueles que, pertencendo às classes altas ou médias-altas, enviam os seus filhos para colégios privados de elite, ao invés de os entregarem ao sistema de ensino público.

Outro indicador interessante: um estudo levado a cabo pela Accenture concluiu que apenas 22% dos dinamarqueses consideravam que o sector público tinha um desempenho satisfatório nas tarefas que lhe eram cometidas.

Nem tudo são maravilhas no reino da Dinamarca, de facto. Apesar da excelência do seu serviço de saúde, universal e gratuito, o país regista uma das mais elevadas taxas de incidência de cancro do mundo, com 326 casos por 1.000 habitantes, o que contrasta com os 260 casos por 1.000 habitantes verificados no Reino Unido.

Com uma identidade colectiva forjada através de conceitos e práticas sociais como a “paroquialização positiva” (isto é, uma versão comunitarista do velho princípio ‘small is beautiful’), cultivando, em termos de sentimentos nacionais, um paradoxal “orgulho humilde”, a Dinamarca distingue-se pelo enraizamento societário do valor da confiança interpessoal. Para atestá-lo, em 1996 foi levada a cabo uma experiência curiosa, ainda que de duvidosa cientificidade: em várias cidades do mundo, foram deixadas carteiras em lugares públicos, com vista a saber se seriam ou não devolvidas aos seus donos ou entregues nas secções de perdidos e achados.

Apenas em dois países – a Dinamarca e a Noruega – todas as carteiras foram devolvidas aos que as inadvertidamente as deixavam cair dos bolsos. Anos depois, reiterada a experiência na estação central de comboios de Copenhaga, os resultados repetiram-se, com uma nuance cómica: nem havia tempo para fazer o teste pois, na esmagadora maioria dos casos, nem era possível ‘perder’ uma carteira – de imediato, os transeuntes avisavam o proprietário que deixara cair um objecto do bolso…

Calcula-se, numa estimativa aproximada, que este ‘capital social’ induzido pela confiança interpessoal esteja na base de 25% da economia dinamarquesa e que, graças a ela, o sistema de justiça poupa anualmente cerca de 1.700 euros por habitante. Mas, falando em dinheiro, um tema sempre desagradável: impostos, taxas e taxinhas.

A Dinamarca tem uma das mais elevadas cargas fiscais do mundo, quer em impostos directos, quer indirectos. Em termos fiscais, uma refeição num restaurante é cerca de 150 vezes mais cara do que na média dos países da União; nas lojas, os dinamarqueses pagam pelos produtos, do ponto vista tributário, 42 vezes mais do que a média europeia. O imposto sobre rendimentos tem, como escalão mais baixo, 42% do que se ganha (na Inglaterra, o primeiro escalão começa em 20%), indo até um máximo de 56%.

No que toca à propriedade, e de acordo com um estudo recente da Deloitte, se tomarmos em conta os custos dos empréstimos bancários, as taxas de água e esgotos e as despesas de aquecimento e manutenção, os dinamarqueses pagam 70% mais do que os restantes europeus para ter uma casa. Se usarem electricidade, o que não é propriamente um luxo, o governo acrescenta 76,5% aos custos de habitação. O IVA tem uma taxa de 25% e abrange tudo o que se transacciona, incluindo bens alimentares de primeira necessidade e livros infantis, existindo raras excepções àquela regra (os jornais, por exemplo).

Em suma, sopesando os impostos directos e indirectos que um dinamarquês tem de pagar, a carga fiscal situa-se entre 58 a 72% dos seus rendimentos anuais. Se quisermos, um habitante da Dinamarca apenas pode dispor de apenas cerca de um terço daquilo que ganha anualmente. Para quê? Mais números, então: mais de metade da população adulta do país – ou mesmo dois terços, de acordo com algumas estimativas – trabalha para o sector público ou é apoiada, directa ou indirectamente, por subsídios estatais.

Uns concordarão com esta política, outros discordarão dela. Em todo o caso, há outros efeitos da fiscalidade sufocante que atrás se descreveu. O recurso ao mercado negro, desde logo. De acordo com alguns estudos, mais de 50% dos dinamarqueses compram bens e serviços no mercado negro – o que, convenhamos, é algo bizarro num país que se orgulha de ser imune à corrupção e de ter uma das mais altas taxas de “confiança” e de “capital social” do mundo…

A par do mercado negro, há outra realidade não menos sombria: o endividamento privado. Ainda que a dívida pública seja relativamente modesta, o FMI tem notado que os dinamarqueses se endividaram até à medula dos ossos. As famílias da Dinamarca devem, em média, 310% do seu rendimento anual, a mais elevada taxa de endividamento do mundo, mais do dobro do que a dos portugueses ou espanhóis, o quádruplo da dos italianos.

Quanto ao mais, os problemas comuns a todos os países desenvolvidos. A desertificação do mundo rural, por exemplo. Várias estimativas apontam para que em 2050 apenas 10% da população da Dinamarca continue a viver no campo.

Eis, em suma, e num relance brevíssimo, o pouco do muito que poderemos aprender no livro de Michael Booth. Se este é um retrato sumário da Dinamarca, o que se passará na Islândia, Finlândia e nos outros países nórdicos? A ver vamos. Por ora, o país de Borgen, a terra dos subsídios e dos impostos. Goste-se ou não, dizem ser o mais feliz do mundo. Deixemos ao leitor na dúvida hamletiana.

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