“Geração ansiosa” desafia os líderes empresariais que “não podem saber tudo”

O que mudou no ensino? O que procuram os jovens “inquietos” no mundo laboral e como podem as empresas evitar a sua “desmotivação”? O ECO juntou o presidente da Super Bock e um finalista de Economia.

Com uma diferença de 40 anos no bilhete de identidade, Rui Lopes Ferreira e José Paulo Soares têm em comum a passagem pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP). O ECO juntou estas duas gerações para uma conversa sobre o feitio e aspirações de quem está prestes a entrar no mercado de trabalho, a forma como as empresas se estão a adaptar a essa realidade e o estilo de liderança exigido aos gestores de topo.

Se “acabaram os tempos do one man show que tudo sabia”, o CEO do Super Bock Group atesta a “qualidade impressionante” desta nova geração, em que nota “um bocado mais de ansiedade” e uma “inquietude que às vezes também se transforma em desmotivação” e que desafia diariamente as empresas. Leia aqui a primeira parte da entrevista.

Licenciou-se em Economia em 1985. Em que é que a formação e o perfil dos alunos era diferente nessa altura?

Rui Lopes Ferreira (RLF): Não focando no currículo ou nas cadeiras, onde sinto uma grande diferença é que na minha geração, há 40 anos, o foco – e não quer dizer que estivesse mal – estava muito centrado no ensino técnico e científico, com uma carga teórica muito elevada.

Hoje, o que vejo na FEP e noutras faculdades, é que se dá muito mais atenção a outro tipo de coisas, nomeadamente às chamadas soft skills. De facto, o fator diferenciador é a capacidade de aplicar o conhecimento e já não a posse dele. Que antes era muito mais difícil: não havia internet, o acesso ao conhecimento era muito mais limitado. Hoje está tudo à distância de um clique.

Quantas vezes fui para a biblioteca municipal consultar livros – este rapaz aqui ao lado não deve saber o que isso é [risos]. A esse nível, as coisas mudaram radicalmente e vejo as faculdades com essa preocupação porque é isso que lhes vai permitir aplicar o conhecimento.

Em que tipo de soft skills é que está a pensar?

RLF: Desde logo, na capacidade de comunicação. Todos aprendem técnicas de comunicação, como fazer apresentações. Isso para mim era absolutamente desconhecido quando acabei o curso.

Mas essa carga teórica não foi relevante?

RLF: Foi, sim. Isto não é um juízo de valor a dizer que agora é que está bem. Acho é que agora está melhor. Mas não tenho nada de que me queixar, bem pelo contrário. O curso na FEP foi uma referência na minha vida e foi o que me permitiu ter a carreira que tive.

Portanto, não estou a desvalorizar. Acho é que o perfil do curso foi tendo add-ons que foram enriquecendo e dão hoje uma bagagem que na nossa altura não tínhamos.

Tem a noção do peso histórico e de uma certa imagem austera que a FEP sempre cultivou e que é ainda uma imagem de marca. Como é que olha para este tema?

José Paulo Soares (JPS): Não acho negativo que essa imagem de marca exista e a faculdade deve tirar benefício de ainda ter uma componente teórica relativamente elevada, e aliar isso ao desenvolvimento de um conjunto de hard e soft skills que são tão importantes para o futuro no mercado de trabalho.

Tem sabido paulatinamente caminhar de uma faculdade que era conhecida por ser austera, complicada, complexa, e manter esse cunho de exigência de qualidade, ao mesmo tempo que dá mais autonomia aos estudantes para terem hipótese de melhorar essas outras competências que também são importantes.

Mas isso não depende só das faculdades, mas também do ensino que vem para trás, dos 12 anos anteriores. Aí ainda se peca um bocadinho. Por exemplo, estive no conservatório de música e as disciplinas que deixei de ter eram as de tecnologias e informática. Portanto, cheguei aqui com um handicap grande nesta área e tive de a desenvolver aqui muito mais tarde do que os outros. São skills importantes na faculdade – e ainda vão ser mais daqui a cinco ou seis anos, com o desenvolvimento da inteligência artificial.

Rui Lopes Ferreira e José Paulo SoaresRicardo Castelo/ECO

Conhecendo o mercado de trabalho e liderando uma grande empresa que recebe também muitos jovens licenciados, do que sente falta nessas pessoas que estão a entrar no mercado de trabalho?

RLF: Acho que chegam bem preparados. Não poria a tónica na falta. Em rigor, acho que não lhes falta nada. A perspetiva de vida e a forma como olham para ela é que é diferente daquela que eu tinha há 40 anos.

Que diferenças são essas?

RLF: É uma geração muito mais inquieta, claramente. Cheia de pressa de fazer coisas. Às vezes, a pressa é inimiga do bom [risos]. Noto um bocado mais de ansiedade. Chegam às empresas com muita vontade, com ritmo, com muita aceleração, o que os leva às vezes a desmotivarem quando não conseguem progredir ou realizar com essa rapidez.

Não sei se isto não é reflexo da forma como esta nova geração é criada, com todas as tecnologias, com muito multitasking, é tudo muito acelerado. Nós vivíamos a um ritmo diferente há 40 anos. Noto que esse ritmo está presente – e isso é bom porque coloca também ambição e vontade de realizar –, mas às vezes também não pode suscitar alguma desmotivação.

Porque nem sempre as organizações e os negócios evoluem a esse ritmo?

RLF: Nas tecnologias as coisas evoluem com uma rapidez fabulosa, mas noutras áreas profissionais não é bem assim. Esta geração tem um perfil muito interessante – todos os anos na empresa admitimos levas de 15 a 20 pessoas para ir refrescando a organização e introduzindo talento jovem – e vejo uma qualidade que é impressionante.

Pessoas muito bem preparadas, com uma boa atitude e cheias de vontade. Mas noto essa inquietude que às vezes também se transforma em desmotivação se não forem acarinhados de determinada forma para manterem esses níveis de carga e de energia. Essa inquietude traz muita garra e vontade de progredir, mas também pode, ao mesmo tempo, trazer alguma desmotivação.

E como é que a empresa está a lidar com essa circunstância?

RLF: Em primeiro lugar, proporcionar desafios permanentes. Isso tem muito a ver com a rotação. Estimulamos as pessoas a rolarem de funções e as pessoas gostam de enfrentar novos desafios, aprender coisas novas, conhecer novas realidades, novas pessoas.

Portanto, a rotação de funções é algo que hoje ganha relevância porque combate essa tal eventual desmotivação ou inquietude associada a estar muito tempo a executar uma mesma tarefa ou com uma mesma função.

O que é um desafio para a retenção do talento.

RLF: Exatamente. Mas que temos vindo a implementar. Vejo é que é recebido de forma muito positiva, as pessoas gostam. E não é só a juventude; este tipo de gestão de talento é eficaz a diversos níveis. Mas para esta nova geração acho especialmente importante porque complementa a formação, aprendem coisas novas e as pessoas gostam genuinamente de encarar novos desafios.

Esta é uma geração muito mais inquieta. Noto um bocado mais de ansiedade. Chegam às empresas com muita vontade, com ritmo, com muita aceleração, o que os leva às vezes a desmotivarem quando não conseguem progredir ou realizar com essa rapidez.

Rui Lopes Ferreira

CEO do Super Bock Group

Reconhece esta “carência” na sua geração?

JPS: O Rui falou de dois temas interessantes: inquietude e aceleração. Na minha geração somos todos muito diferentes, como as anteriores, mas espelha aquilo que somos. Há uma maior inquietude e uma procura constante por algo diferente. E há uma aceleração que é também dos tempos e da tecnologia.

Se há 40 anos aparecesse uma rede como o TikTok, se calhar não tinha sucesso, mas hoje aqueles vídeos de 10 ou 15 segundos são um consumo rápido, imediato. Isso tem algum impacto na nossa geração. Eu próprio sinto muitas vezes essa incapacidade de concentração por mais tempo, que pode gerar num prazo mais longo uma desmotivação. E essa incapacidade de concentração, às vezes, é nas coisas mais corriqueiras do dia a dia.

Já não consigo, como há cinco anos, estar 90 minutos a ver um jogo de futebol sem ir ao telemóvel. E se não consigo no futebol, nas aulas ainda é mais difícil [risos]. Somos uma geração muito mais ligada à tecnologia, com um estímulo visual muito maior, e isso tem impacto na nossa forma de estar. Por outro lado, o meu pai, que é ferroviário, entrou para a CP e logo percebeu que era [um emprego] para a vida toda. Eu não imagino uma carreira futura em que, ao fim de dois ou três anos, não haja uma mudança, dentro da própria empresa ou para outra.

RLF: O emprego para a vida acabou. Mas isso não significa necessariamente mudar de emprego. Isto é, o compromisso com a empresa, com a marca, pode-se manter. Eu estive 20 anos numa instituição bancária [BPI], a entidade patronal era a mesma, mas tive três empregos diferentes.

Já na altura a tal rotação era importante e tive a sorte ou a felicidade de nesses 20 anos ter tido três funções diferenciadas e que muito contribuíram para manter a minha motivação, para evitar a rotina, para aprender coisas novas e para me desenvolver também pessoalmente. Portanto, a questão da rotação não é necessariamente mudar de emprego.

Aceita a tese de algum desprendimento cultural por parte da sua geração?

JPS: Não sei se é um desprendimento. Não sei se quando alguém emigra é porque tem um desprendimento ao país – pode gostar muito dele na mesma e querer um dia voltar. É o mesmo numa empresa: mudar de empresa não impede que um dia mais tarde se volte a essa mesma empresa. Não diria que é um desprendimento, mas uma vontade dessa aceleração, de ter uma motivação mais momentânea e de procurar coisas diferentes.

RLF: Também não o caracterizaria como um desprendimento. Até vejo muita ligação à marca e aos valores da empresa. É, sim, mais exigente. Esta geração exige bastante mais das empresas. As empresas têm de lhes proporcionar algo que no passado não era tão comum. Se não lhes proporcionar, então isso gera desprendimento.

Acho que esta geração é mais exigente – e isso até é positivo – em relação à entidade patronal e à empresa com quem colabora. Do ponto de vista de proporcionar equilíbrio entre vida pessoal e profissional, de respeitar determinados valores, do contributo para a sociedade. Há um conjunto de exigências que hoje são importantes para eles e no passado não eram tão evidentes.

E isso exige mais presença e maior proximidade dos executivos do topo e do CEO, que não pode ficar apenas no último andar da sede?

RLF: De alguma forma também. Tento ter alguma proximidade, dentro do que é uma empresa com 1.200 pessoas. Há fóruns regulares em que posso estar com esta geração mais nova. Até porque também preciso de aprender com ela. Sempre que vou ao nosso escritório em Lisboa convido alguns dos jovens para ir almoçar comigo.

Não vou com os diretores, que com esses estou quase todos os dias. São momentos para estar com eles, para os perceber porque são diferentes, para aprender e para os compreender.

José Paulo Soares e Rui Lopes Ferreira em entrevista ao ECORicardo Castelo/ECO

O que é que pode ensinar aos CEO’s, estando à porta do mercado de trabalho?

JPS: Ainda espero fazer um mestrado e, portanto, terei mais dois anos e meio antes da entrada mais séria no mercado de trabalho. Mas essa também é um pouco a curiosidade que tenho: como será o mercado de trabalho, a relação que se estabelece acima.

Ao longo da vida académica e no tempo que vamos passando na escola vamos quase fantasiando com o que é estar a trabalhar. É uma curiosidade que espero daqui a três anos poder [satisfazer].

Se calhar daqui a três anos o estilo de liderança nas empresas também já será diferente.

RLF: Acho que o estilo de liderança não se muda em três anos. É um processo progressivo e quase que constante, diria.

Mas o que é que o seu primeiro patrão era, que hoje não podia ser?

RLF: Sempre tive o privilégio de trabalhar em instituições e com pessoas fantásticas, com valores, cultura e lideranças muito inspiradoras, efetivas e que me foram sempre proporcionando desafios e nunca cair na rotina. Sempre gostei do que fiz.

A qualidade da gestão nas empresas portuguesas não era a mesma…

RLF: Se alguma coisa mudou, em geral, é que hoje vemos as lideranças muito mais humanizadas e atentas ao lado pessoal do problema, e não apenas lideranças técnicas. Essa é a grande evolução: estão hoje muito mais focadas nas equipas e em extrair delas todo o seu potencial.

Porque acabaram os tempos do one man show que tudo sabia. Eu não posso saber tudo, nem tenho a pretensão de saber tudo. E ainda bem que tenho na empresa pessoas que sabem mais que eu de determinadas matérias.

Mas havia uma impreparação até académica da maior parte dos gestores das empresas portuguesas.

RLF: Sim, o nível educacional hoje é muito maior do que era há 40 anos, como é evidente. Mas não colocaria a tónica numa deficiente liderança ou capacidade de gestão na geração anterior. Isto vai acompanhando a evolução dos tempos e, portanto, há hoje, em geral, de todos os líderes, de todos os gestores e empresários, uma consciência muito mais crítica e realista. Mas isto é a evolução natural.

O meu pai, que é ferroviário, entrou para a CP e logo percebeu que era [um emprego] para a vida toda. Eu não imagino uma carreira futura em que, ao fim de dois ou três anos, não haja uma mudança, dentro da própria empresa ou para outra.

José Paulo Soares

Aluno da licenciatura em Economia da FEP

E os gestores portugueses comparam bem a nível internacional?

RLF: Acho que sim. Não sinto que haja um deficit. Haveria talvez há 40 anos porque o país era muito mais fechado. E se há coisa que tem ajudado muito a gestão e a liderança das empresas é o facto de estarmos expostos, em primeiro lugar, a uma concorrência internacional feroz e, em segundo lugar, a uma formação também internacional. O país há 40 anos era muito mais fechado e, portanto, o âmbito de formação das nossas lideranças era mais contido. Não era por responsabilidade de ninguém; era porque o país era muito fechado ainda.

Os conselhos de administração ainda têm pouco diversidade, a começar pela presença de poucos profissionais estrangeiros…

RLF: Há realidades distintas. Portugal é um país de PME e tem poucas médias empresas. Nas grandes isso já se começa a revelar. Ainda não será uma prática generalizada, mas as empresas estão a fazer o seu caminho. Não sinto, ao nível de grandes e médias empresas, grande deficit nessa matéria. Há uma exposição internacional muito grande, a formação é mais alargada.

A primeira vez que fui ao INSEAD, tinha acabado aqui o curso há cinco anos, para mim foi um mundo novo que se abriu e que nem sabia que existia. Cheguei lá e na primeira sessão todos os professores se apresentaram com o seu currículo profissional: ‘trabalho na Airbus, sou consultor na L’Oréal, trabalho na Louis Vuitton… Ah! E também dei aulas na London Business School e agora estou no INSEAD’.

Ou seja, o currículo académico era 10% da sua apresentação. Isto só para dar uma ideia do que era o choque cultural quando éramos um país muito fechado. As universidades portuguesas eram belíssimas, mas era uma realidade diferente. Isto ilustra a diferença de realidade que havia.

Já teve oportunidade de fazer um período de estudo no estrangeiro? Essa diferença agora já não é tão acentuada.

JPS: Espero que não. Este ano podia ter ido de Erasmus, mas fiquei por cá por outros desafios. As universidades portuguesas estão agora mais próximas do mundo empresarial do que estavam. As faculdades e os próprios estudantes têm promovido essa aproximação através de eventos. E é bom que isso comece a ser feito desde o primeiro ano da faculdade.

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