A bússola do BCE é incerta e quem sofre é o “mexilhão”

A taxa de juro natural é um conceito tão importante na definição da política monetária do BCE quanto imprecisa, que afeta diretamente o orçamento de famílias e empresas.

Num mundo ideal, os banqueiros centrais teriam uma bússola infalível para orientar as suas decisões de política monetária. Essa bússola seria a taxa de juro natural — um conceito económico que, em teoria, representa o ponto de equilíbrio perfeito entre crescimento económico e estabilidade de preços. No entanto, como um recente estudo do Banco Central Europeu (BCE) revela, essa bússola é, na melhor das hipóteses, imprecisa e, na pior, potencialmente enganadora.

O estudo desenvolvido por três economias do BCE — Claus Brand, Noëmie Lisack e Falk Mazelis –, publicado na sexta-feira, tenta lançar luz sobre este conceito. Segundo as suas estimativas, a taxa de juro natural situa-se atualmente entre 1,75% e 2,25%. Contudo, quando consideramos que esta taxa é fundamental para determinar se a política monetária está a ser expansionista ou restritiva, meio ponto percentual de incerteza torna-se significativo.

Para se entender a importância desta taxa, imaginemos um barco a navegar sob um mar agitado. A taxa de juro natural seria o ponto de equilíbrio onde o barco nem acelera nem abranda – mantendo uma velocidade constante apesar das ondas. Se a taxa de juro natural estiver abaixo deste ponto, a economia tende a acelerar, potencialmente gerando inflação. Se estiverem acima, a economia pode abrandar, arriscando uma recessão.

A taxa de juro natural é simultaneamente um conceito fundamental e frustrantemente elusivo na economia moderna. É um lembrete da complexidade do sistema económico e dos desafios enfrentados pelos decisores de política monetária.

O problema é que este ponto de equilíbrio não é fixo. Muda constantemente com base em fatores como produtividade, demografia e tendências de poupança e investimento. É como tentar acertar num alvo em movimento, num nevoeiro denso, num barco a balançar.

Alexandre Carvalho, economista do Banco de Portugal, num estudo publicado em 2023, sublinha justamente esta dificuldade. As suas estimativas sugerem que a taxa de juro natural na Zona Euro tem vindo a diminuir drasticamente nas últimas décadas, passando de cerca de 3% no início da década de 1970 para valores em torno de 0,5% em 2022. Esta tendência decrescente reflete mudanças estruturais profundas nas economias europeias, incluindo o envelhecimento populacional e o abrandamento do crescimento da produtividade.

Mas a incerteza não termina aqui. O estudo do BCE destaca que diferentes modelos e métodos de estimação podem produzir resultados significativamente diferentes. Alguns modelos sugerem que a atual taxa de juro natural pode ser tão baixa quanto -0,5%, enquanto outros apontam para valores acima de 1%. Esta dispersão de estimativas é mais do que uma curiosidade académica – tem implicações práticas significativas para a condução da política monetária:

  • Se o BCE subestimar a taxa natural, pode manter uma política monetária demasiado expansionista por muito tempo, arriscando pressões inflacionárias.
  • Se sobrestimar, pode apertar demasiado a política, sufocando o crescimento económico. É um equilíbrio delicado, com consequências reais para as famílias e empresas em toda a Zona Euro.

A complexidade aumenta quando é considerado que a taxa de juro natural não é diretamente observável. Os economistas têm que inferi-la a partir de dados económicos observáveis, utilizando modelos complexos. Cada modelo tem as suas próprias premissas e limitações, o que adiciona mais uma camada de incerteza às estimativas. Além disso, o estudo do BCE também destaca como as estimativas da taxa natural podem mudar significativamente ao longo do tempo, à medida que novos dados se tornam disponíveis e os modelos são refinados. Isto significa que os decisores de política monetária estão constantemente a navegar com um mapa que pode estar desatualizado.

Apesar destas limitações, a taxa de juro natural continua a ser um conceito central na teoria e prática da política monetária moderna. Serve como um ponto de referência, ainda que impreciso, para avaliar se a política monetária está a ser expansionista ou restritiva. Também ajuda os bancos centrais a comunicar as suas intenções e estratégias de longo prazo.

No entanto, como Alexandre Carvalho salienta no seu estudo, os bancos centrais devem ser cautelosos ao basear decisões de política exclusivamente nestas estimativas incertas. E mais importante que isso: tomar cautela na comunicação desta taxa ao mercado, dado que, segundo o investigador do Banco de Portugal, a comunicação do nível da taxa de juro natural por parte dos bancos centrais pode ser relevante para influenciar as expectativas de taxas de juro de longo prazo, e por isso deve ser feita com as devidas ressalvas e explicações sobre a incerteza inerente.

Fonte: Estudo “Natural rate estimates for the euro area: insights, uncertainties and shortcomings” de Claus Brand, Noëmie Lisack e Falk Mazelis.

O desafio do BCE e de outros bancos centrais é, por isso, duplo. Primeiro, continuar a refinar os modelos e métodos para estimar a taxa de juro natural, procurando uma maior precisão e robustez. Segundo, e talvez mais importante, comunicar eficazmente a incerteza em torno destas estimativas e como isso se traduz na tomada de decisões de política monetária.

Para as famílias e empresas da Zona Euro, esta discussão aparentemente abstrata tem implicações muito concretas. As decisões do BCE, informadas em parte por estas estimativas da taxa natural, afetam diretamente o custo dos empréstimos, as taxas de poupança, e, em última análise, o crescimento económico e a inflação. Compreender a incerteza inerente a estas decisões pode ajudar a contextualizar as ações do BCE e as suas potenciais consequências.

A taxa de juro natural é simultaneamente um conceito fundamental e frustrantemente elusivo na economia moderna. É um lembrete da complexidade do sistema económico e dos desafios enfrentados pelos decisores de política monetária. À medida que navegamos nas águas incertas da economia pós-pandemia, com novos desafios como a transição climática no horizonte, a procura por uma melhor compreensão e estimação da taxa de juro natural continuará a ser uma prioridade para economistas e banqueiros centrais.

Para o cidadão comum, a mensagem é clara: A política monetária, longe de ser uma ciência exata, é uma arte que requer julgamento, cautela e uma boa dose de humildade face à incerteza. O BCE, ao navegar neste mar de incertezas, tem a difícil tarefa de manter o barco da economia europeia em curso, mesmo quando o farol da taxa de juro natural pisca de forma intermitente e nem sempre confiável.

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