Travão da dívida na Alemanha foi “enterrado vivo”. Vêm aí mudanças na política orçamental europeia?
Parlamento alemão aprovou alteração histórica ao travão constitucional da dívida, em vigor desde a crise das dívidas soberanas, o que irá permitir aumentar a despesa em defesa.
“O travão da dívida alemã foi sempre mais rigoroso do que as regras orçamentais europeias. Com a decisão de hoje, o travão não está oficialmente morto, mas enterrado vivo“. A frase é de Carsten Brzeski, economista chefe do ING, e espelha aquela que é já considerada uma espécie de revolução na política orçamental alemã, cujas ramificações poderão chegar ao debate europeu.
O Bundestag, a câmara baixa do Parlamento alemão, aprovou na terça-feira o plano delineado pelo líder dos conservadores alemães, Friedrich Merz, para flexibilizar as regras de modo a aumentar o investimento em defesa. Desde a crise das dívidas soberanas que, por iniciativa da antiga chanceler Angela Merkel, a Constituição alemã tem inscrita uma norma que limita o endividamento do país, impedindo o défice orçamental estrutural de exceder 0,35% do Produto Interno Bruto (PIB).
O travão constitucional alterado na segunda-feira com os votos da CDU/CSU, do SPD e dos Verdes sinaliza não apenas um virar de página na política orçamental austera da Alemanha, como pode desencadear uma troca de pontos de vista para medir a elasticidade da discussão sobre as regras, numa altura em que a despesa líquida dos países se tornou um indicador fundamental no âmbito dos programas orçamentais nacionais estruturais.
“A Alemanha desistiu de liderar o grupo de frugais orçamentais na Europa em prol de impulsionar a economia. Se o novo Governo não apresentar reformas estruturais adicionais e medidas de austeridade de longo prazo, como mudanças no sistema de pensões e na idade da reforma, a Alemanha terá dificuldade em convencer o resto da Europa a apertar o cinto“, argumenta Carsten Brzeski, numa nota de research divulgada ao mercado.
“A Alemanha desistiu de liderar o grupo de frugais orçamentais na Europa em prol de impulsionar a economia. Se o novo Governo não apresentar reformas estruturais adicionais e medidas de austeridade de longo prazo (…) a Alemanha terá dificuldade em convencer o resto da Europa a apertar o cinto”.
A alteração aprovada irá permitir criar espaço orçamental de quatro formas: primeiro permite que a despesa com defesa acima de 1% do PIB fique isenta de qualquer teto constitucional, permitindo ao país contrair mais empréstimos.
Depois, a Alemanha fica autorizada a criar um fundo de investimento de 500 mil milhões de euros para investimentos adicionais em infraestruturas e os 16 estados federais podem ter défices de até 0,35% do PIB, deixando cair a obrigação de orçamentos equilibrados. De acordo com uma nota do economista Holger Schmieding, da Berenberg, esta medida vale cerca de 16 mil milhões de euros por ano.
O Parlamento alemão deu também ‘luz verde’ a uma definição mais ampla do que é considerada despesa com defesa, o que permitirá que o governo federal transfira 17 mil milhões de euros por ano nesta categoria. “Isto cria espaço para aumentar despesa não relacionada com defesa no orçamento regular, que continua sujeito ao travão da dívida”, explica o economista.

Neil Shearing, economista chefe do Capital Economics, considera que a alteração é “histórica”, porque “reflete uma mudança de atitude dentro da maior economia da Europa, afastando-se de uma adesão rígida à retidão orçamental que prevaleceu desde a crise financeira global“, e positiva, porque “alarga as camisas de força orçamentais que contribuíram para o fraco crescimento tanto na Alemanha quanto na economia europeia nos últimos anos”.
No entanto, na nota de research divulgada ao mercado, adverte que embora a mudança da Alemanha possa gerar uma atitude mais permissiva em relação à política orçamental na Europa, a realidade é que “a maioria dos países tem espaço limitado para aumentar os empréstimos”.
“A adoção de uma política orçamental menos restritiva na Alemanha pode agravar os desafios enfrentados pelos países com restrições orçamentais no resto da Zona Euro, uma vez que o aumento nos rendimentos dos bunds provavelmente aumentará os custos dos empréstimos, mas sem os benefícios concomitantes de maior crescimento económico”, alerta.
Alteração é “histórica” porque “reflete uma mudança de atitude dentro da maior economia da Europa, afastando-se de uma adesão rígida à retidão orçamental que prevaleceu desde a crise financeira global”, diz Neil Shearing, do Capital Economics.
No entanto, a alteração ao travão constitucional da dívida pode ter peso no debate que decorre em Bruxelas sobre o financiamento do investimento em defesa. Numa altura em que a Comissão Europeia desafiou os Estados-Membros a aumentarem o investimento em defesa de modo a mobilizarem 650 mil milhões de euros para investimento, há quem nas instâncias europeias, segundo informações recolhidas pelo ECO, não ficasse surpreendido se a Alemanha estivesse disponível para um debate mais profundo sobre a flexibilização das regras orçamentais europeias.
Os líderes europeus já deram aval à proposta da Comissão Europeia para suspensão da cláusula geral de escape nacional, de modo a permitir que a despesa com defesa não conte para o limite de 3% do défice que leva à abertura de um Procedimento por Défice Excessivo (embora continue a ir à dívida), mas ainda não acordaram os detalhes. Matéria que deverá ser debatida no Conselho Europeu marcado para quinta e sexta-feira.
Por outro lado, a flexibilização da política orçamental alemã para investir mais em defesa, “torna ainda menos provável que a Alemanha concorde com um grande programa da UE financiado por dívida comum”, assinala Neil Shearing, argumentando que a centro-direita alemã acharia “ainda mais difícil violar outra linha vermelha e subscrever muitos Eurobonds”.
Líderes europeus voltam a reunir-se em Bruxelas na quinta e sexta-feira, com o investimento em defesa novamente na agenda, após a reunião extraordinária de 6 de março.
Carsten Brzeski alerta, contudo, que apenas flexibilizar o travão da dívida não conduz automaticamente a um maior crescimento, argumentando que a cláusula de escape chegou a ser ativada nos últimos anos, o que não impediu a economia germânica de cair na estagnação que vive.
“A diferença entre um travão da dívida mais relaxado devido à cláusula de escape e a decisão de hoje [terça-feira] é o fundo de infraestrutura de 500 mil milhões de euros. Implementado da forma certa, o investimento em infraestrutura deve levar a pelo menos uma recuperação cíclica. A ressalva, no entanto, continua de que essas medidas sozinhas – por mais impressionantes que sejam – farão muito pouco para melhorar a competitividade da economia”, argumenta.
Ainda assim, a Fitch sublinha que “a Alemanha tem margem orçamental substancial para acomodar a grande mudança planeada para as despesas militares e de infraestruturas muito maiores”. Num comentário divulgado na terça-feira (e que não constitui uma ação de rating), a agência norte-americana assinala ter a expectativa de que “o projeto de lei seja aprovado amplamente conforme previsto” e que “o tribunal constitucional já rejeitou as contestações ao processo parlamentar para a reforma, mas mais contestações estão pendentes”.
Com a alteração constitucional, a Alemanha está a regressar ao mainstream europeu após um período de restrições rígidas aos empréstimos.
Já a DBRS, num comentário divulgado no início do mês quando foram conhecidas as propostas, realçou que o plano daria “ao Governo o espaço orçamental muito necessário para aumentar os gastos com defesa numa altura de maiores tensões geopolíticas”. Ademais, recordou que, apesar do aumento esperado do endividamento, o país beneficia de “um nível moderado de dívida, um baixo encargo com juros e do status da Alemanha como um porto seguro”.
A alteração na política económica alemã, que se tem pautado por regras rígidas quanto ao limite do endividamento, tendo apenas suspendido o travão constitucional ao aumento da dívida durante a pandemia, será ainda votada na sexta-feira pelo Bundesrat, a Câmara Alta do Parlamento, que representa os 16 governos estaduais do país.
“Com a alteração constitucional, a Alemanha está a regressar ao mainstream europeu após um período de restrições rígidas aos empréstimos“, resume Holger Schmieding, do banco Berenberg.
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