O Oráculo pendura o chapéu mas a ‘Buffettlogia’ não se reforma

O Oráculo de Omaha anunciou que irá sair de cena, mas o seu legado de seis décadas a inspirar investidores mantém-se como bússola num mercado cada vez mais volátil e demasiado focado no curto prazo.

Aos 94 anos, Warren Buffett escolheu o seu palco preferido — a assembleia anual da Berkshire Hathaway, batizada de Woodstock do Capitalismo — para anunciar o fim de uma era: “Chegou a hora”, declarou este sábado o Oráculo de Omaha perante mais de 40 mil investidores e seus devotos no CHIHealthCenter, enquanto apresentou Greg Abel como seu sucessor.

E assim, num pavilhão atónito na maior concentração de acionistas da Berkshire Hathaway, sem aviso prévio e com a simplicidade de quem pede um café, encerrou-se um espetáculo com 60 temporadas que elevou uma empresa têxtil falida numa máquina de fazer dinheiro avaliada atualmente em mais de um bilião de euros.

O anúncio de Buffett caiu como um raio num dia solarengo. Mas para quem já rumou à Meca do capitalismo, nada ali é verdadeiramente previsível — exceto talvez a quantidade de chocolate See’s Candies (uma das muitas empresas de Buffett) consumida por metro quadrado. Quem nunca viveu uma assembleia da Berkshire Hathaway pode achar exagero, mas este encontro anual é menos uma reunião de acionistas e mais uma espécie de festival onde as únicas substâncias alucinogénias permitidas são ações e gelados Dairy Queen (outra marca de Buffett).

Lembro-me de em 2011, quando, ainda a digerir o fuso horário e o preço do dólar, dei por mim numa Omaha transformada: hotéis esgotados, filas às cinco da manhã e milhares de investidores de todas as idades a disputar lugar como se Buffett fosse anunciar a cura para a volatilidade dos mercados (spoiler: não anunciou, mas vendeu milhares de botas Justin e canivetes Quikit). Era (como é sempre) um parque de diversões onde se comprava de tudo – menos moderação no consumo. E, claro, lá estava Buffett, na altura um octogenário com a energia de um adolescente a vender joias na Borsheims com a naturalidade de quem compra uma ação, provando que, em Omaha, até o CEO faz vendas ao balcão se for preciso. No fundo, era Natal em maio e ninguém queria perder a oportunidade de ouvir o Oráculo — nem de aproveitar os saldos.

Ao longo dos anos, Buffett deixou-nos um tesouro de sabedoria que muitos admiram, alguns citam e pouquíssimos aplicam. É disso exemplo a célebre frase “ter medo quando os outros são gananciosos e ser ganancioso”, escrita na carta anual de 1986 aos seus investidores.

A história da Berkshire Hathaway é o que acontece quando um homem obstinado se zanga com outro homem obstinado por 12,5 cêntimos. Em 1964, Seabury Stanton, então gestor da Berkshire, concordou oralmente em recomprar as ações de Buffett por 11,5 dólares. Mas quando enviou a oferta por escrito, o valor era 11,375 dólares. Um homem normal teria encolhido os ombros. Buffett, furioso com o que considerou uma quebra de palavra, fez o que qualquer pessoa sensata faria: comprou ainda mais ações a um preço superior, tomou controlo da empresa e despediu Stanton.

Essa empresa têxtil moribunda, que o próprio Buffett mais tarde descreveria como o seu “maior erro de investimento”, entrou na bolsa de Nova Iorque a 17 de março de 1980 a 290 dólares por ação. Hoje, menos de meio século depois, a mesma ação (na classe A) negoceia acima dos 800 mil dólares, catapultando a empresa para uma capitalização bolsista superior a 1 bilião de euros, cerca de 15 vezes a capitalização bolsista das 15 empresas do PSI juntas. Não é uma má forma de transformar um erro numa fortuna colossal.

Ao longo dos anos, Buffett deixou-nos um tesouro de sabedoria que muitos admiram, alguns citam e pouquíssimos aplicam. É disso exemplo a célebre frase “ter medo quando os outros são gananciosos e ser ganancioso”, escrita na carta anual de 1986 aos seus investidores. Uma lição especialmente importante nos tempos que correm, com os mercados a revelarem-se altamente nervosos com as políticas de Trump.

Num mundo de day traders e algoritmos de alta frequência, Buffett era o último dos moicanos. “Quando adquirimos ações de uma empresa, não nos preocupamos com o que o mercado diz desses títulos durante alguns anos”, referiu Buffett no decorrer da assembleia anual de 2011. Imagine explicar isto a um influencer financeiro do TikTok cujo horizonte de investimento raramente ultrapassa o próximo meme.

O que Buffett construiu ao longo de seis décadas através de ações e de uma filosofia apelidada de “Buffettlogia” é mais épico do que erguer um Mosteiro dos Jerónimos de lucros e empresas, pedra a pedra, no coração do Nebraska — e provavelmente mais rentável também. Transformou uma empresa têxtil falida num colosso com quase 200 negócios, desde chocolates e seguros até ferrovias e energia, que o colocam todos os anos entre os cinco multimilionários do planeta, mas que mesmo assim mora na mesma casa que comprou em 1958 por 31.500 dólares e que conduz o seu próprio carro, que tem mais de 10 anos.

Mais notável ainda é que o fez mantendo o mesmo salário de 100 mil dólares, sem direito a “stock options”. Para colocar isto em perspetiva, alguns CEO ganham isso num dia, enquanto supervisionam a destruição de valor das suas empresas com a eficiência de um incêndio numa fábrica de fósforos.

Buffett transformou-se, ao longo de décadas, em algo maior do que um investidor. Tornou-se uma bússola moral num mundo financeiro frequentemente destituído de ética, um professor para gerações de investidores.

Greg Abel, o escolhido para suceder a Buffett, tem pela frente um desafio comparável a ser o próximo treinador do Manchester United após a era de Alex Ferguson — só que com consequências financeiras ainda mais significativas. Nascido nas Pradarias canadianas, Abel entrou na órbita de Buffett em 1999, e desde então construiu uma reputação de competência e integridade que levou Buffett a afirmar em 2021 que o canadiano seria no futuro o seu sucessor na liderança da Berkshire Hathaway e, inclusive, a afirmar em 2023 que Greg será mais bem-sucedido do que ele próprio.

Quando os milhares de investidores reunidos em Omaha no sábado ouviram Buffett pronunciar “a hora chegou”, foi como se todo o pavilhão mergulhasse num silêncio de cortar a respiração. Foi o equivalente financeiro a “Luke, I am your father” ou “Houston, we have a problem” – frases que marcam o fim e o início de uma era.

Buffett transformou-se, ao longo de décadas, em algo maior do que um investidor. Tornou-se uma bússola moral num mundo financeiro frequentemente destituído de ética, um professor para gerações de investidores, e um exemplo vivo de que o capitalismo pode ser praticado com integridade e visão de longo prazo.

Como ele próprio lembrou-no na sua carta de 2024, o progresso dos EUA nos seus 235 anos “não poderia ter sido imaginado nem pelos colonos mais otimistas em 1789”. Da mesma forma, talvez não possamos hoje imaginar o que a Berkshire Hathaway se tornará nas próximas décadas. Mas uma coisa é certa: enquanto houver jovens aspirantes a investidores a perguntarem “o que faria Warren Buffett?”, enquanto homens e mulheres de negócios estudarem as suas cartas aos acionistas como textos sagrados, enquanto investidores continuarem a fazer a peregrinação anual a Omaha, o espírito do Oráculo continuará vivo. Porque no final, o maior investimento que Buffett fez não foi a compra das ações da Coca-Cola, da Apple, da Netjets ou da seguradora GEICO. Foi nas mentes e nos corações daqueles que aprenderam com ele que a integridade não é apenas a escolha correta, é também o melhor investimento a longo prazo.

Se há uma lição que o Oráculo nos deixa, talvez seja que no grande jogo do capitalismo, os verdadeiros vencedores não são aqueles que morrem com mais brinquedos, mas aqueles que deixam um legado que transcende o extrato bancário. Mesmo que esse extrato tenha muitos, muitos zeros.

Numa era onde a ganância desmedida, a visão de curto prazo e a falta de ética dominam o mundo financeiro, Buffett e Charlie Munger (o seu eterno sócio e amigo que desapareceu em 2023) mostraram-nos que existe outro caminho. Sorte a nossa (e do nosso dinheiro) por vivermos na mesma época de Buffett e Munger, aprendendo com dois dos maiores professores que o capitalismo já produziu.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

O Oráculo pendura o chapéu mas a ‘Buffettlogia’ não se reforma

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião