CEO da Cloudflare ‘irritado’ com Portugal, mas não está sozinho nas queixas sobre vistos
Matthew Prince acusa Portugal de não ser sério e ameaça cortar investimento no país. O que faz a empresa que está zangada com Lisboa? Quem acompanha empreendedores diz que não é caso isolado.

Portugal e a Cloudflare estão envolvidos num ‘novo irritante’. O atraso na atribuição de vistos e a burocracia levaram o CEO da tecnológica norte-americana de cibersegurança, Matthew Prince, a acusar Portugal de não ser um “país sério” e a ameaçar com corte de investimento no país. Mas não está sozinho nas queixas sobre a lentidão dos vistos.
“É uma queixa que se repete nas nossas reuniões de acompanhamento”, diz Vítor Ferreira, diretor-geral da Startup Leiria.
“Portugal tem piorado de forma significativa desde que começamos a investir no país. Se esta tendência continua, deixaremos de investir. E se estás a considerar, enquanto tecnológica, serias louco em fazê-lo sem algumas fortes garantias do Governo”, acusou o CEO da Cloudflare, numa publicação na X (antigo Twitter). “Prometeram-nos muito para contratar muitas pessoas em Portugal. Contratámos muita gente e o Governo português não cumpriu com nenhuma das suas promessas”, acusou ainda o gestor.
As condições para investir têm piorado em vários aspetos, mas “sobretudo [na] imigração”, bem como no que toca aos vistos e ao que diz ser uma burocracia “sufocante”. “Estou sobretudo cansado de me dizerem que as coisas vão melhorar se investirmos mais, para apenas as tendências continuarem a piorar”, disse.
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O CEO da norte-americana não só classifica todo o processo como um “clownshow” [circo] como considera que Portugal compara mal com países da América Latina — “Colômbia, Chile, e talvez agora a Argentina. Todos países mais sérios do que Portugal” — ou o Médio Oriente, considerando que, face a esta região, “Portugal promete mais e entrega muito, muito menos”.
Embora, sem a acutilância das críticas do CEO da Cloudflare — que, de acordo com informação recolhida pelo ECO, terá tido um “incidente” com bagagens na saída de Portugal, num voo privado com partida do Aeródromo de Tires, em Cascais — o atraso na atribuição dos vistos é tema de preocupação junto das tecnológicas que querem contratar talento fora da União Europeia.
A incubadora da Startup Leiria acolhe “dezenas de equipas vindas do Brasil, Estados Unidos, Ucrânia, Índia, entre outras geografias. “O tempo é um dos elementos essenciais para uma empresa tecnológica. Um backlog nacional que a própria AIMA admitiu rondar os 347 mil processos no arranque de 2024 não é normal“, lamenta Vítor Ferreira, diretor-geral da Startup Leiria, em declarações ao ECO.
Situação que impacta no dia a dia das empresas. “Para equipas de até dez pessoas, perder um engenheiro sénior porque a autorização não sai a tempo é o equivalente empresarial ao ‘soco na cara’ de Mike Tyson: desorganiza roadmaps, afugenta investidores e mina o moral”, diz o responsável da incubadora de Leiria, cidade que ocupa a terceira posição nacional do “Global Startup Ecosystem Index 2025”, da StartupBlink, ecossistema nacional que apresenta o maior crescimento percentual (121%), galgando 156 lugares para a 450ª posição global entre as mais de mil cidades a nível mundial analisadas pela StartupBlink. Mais bem posicionadas, só mesmo Lisboa e Porto.
A vice-presidente da Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) confirma que há um “descontentamento generalizado com a lentidão de alguns processos, especialmente na área da imigração”. “Existe uma sensação recorrente de que, ao longo dos anos, se tem prometido que «as coisas vão melhorar», mas sem que se verifiquem avanços realmente significativos ou duradouros”, diz Filipa Pinto de Carvalho, cofundadora da AGPC, que presta serviços ligados ao investimento, da Here Partners e da Red Bridge Lisboa.
“É essencial, para a credibilidade do país enquanto destino de inovação e investimento, que sejamos coerentes com as promessas que fazemos e com a imagem que promovemos enquanto ecossistema tecnológico aberto e competitivo”, acrescenta a advogada, na expectativa de que este alerta público tenha consequências benéficas para o país, através da dotação das entidades públicas dos meios necessários para acelerar os licenciamentos.
O luso-brasileiro José Bouça, cofundador da Tonnie Talent, corrobora este lamento. “No dia a dia, ouvimos preocupações recorrentes por parte das empresas com quem colaboramos: a incerteza quanto aos prazos para legalização de profissionais estrangeiros – que, na prática, ultrapassam frequentemente os 180 dias — gera impacto direto em projetos e decisões estratégicas. Soma-se a isso a crescente dificuldade no acesso à habitação, fruto da pressão nos preços de arrendamento”, diz o cofundador da startup, incubada em Leiria, que oferece serviços personalizados de mobilidade e integração para empresas que contratam talento estrangeiro.
“Portugal vive hoje um momento de ajuste. Após anos marcados por políticas de “portas abertas”, surgem agora exigências adicionais e maior rigor nos processos. A ‘Via Verde’ surge como uma resposta interessante, mas ainda sem aplicação prática visível no nosso ecossistema — especialmente para startups e PME que não se enquadram nos critérios estabelecidos. É, sem dúvida, uma iniciativa promissora, mas que ainda não se traduziu em impacto direto”, diz o cofundador da Tonnie quando questionado sobre a Via Verde, mecanismo criado recentemente pelo Governo para acelerar a contratação de imigrantes.
E o mesmo diz Vítor Ferreira. “Até agora, praticamente não”, diz o diretor-geral da Startup Leiria quando questionado sobre as incubadas estavam a recorrer à Via Verde. “A razão é prosaica: o decreto que criou a Via Verde (15 de abril) limitou o fast-track a empresas com cerca de 150 trabalhadores ou a associações com mais de 30 associados e 200 milhões de euros de volume de negócios. Nenhuma das startups da casa cumpre estes limiares, nem a própria Startup Leiria — que é uma associação de dimensão regional. O Estatuto de Startup vem resolver esse problema em parte, com o acesso ao IFICI, mas que eu saiba não à ‘Via Verde'”, aponta.
“Portugal continua a ter atributos invejáveis, mas a paciência dos investidores é finita. Se quisermos manter a frase-feita “Portugal is the California of Europe” viva, a “Via Verde” terá de deixar de ser uma via exclusiva para camiões TIR e passar a faixa rápida também para as trotinete-startups que puxam pelo ecossistema. Caso contrário, arriscamo-nos a transformar o país num parque de campismo digital: ótimo para nómadas que vêm surfar, pouco interessante para quem quer gerar unicórnios”, aponta Vítor Ferreira.
“Não é uma mensagem fácil neste contexto anti-imigração, mas as pessoas não percebem que mesmo que o foco seja produtividade, ela nasce de três coisas: capital (máquinas e tecnologia), competências (trabalho qualificado) e organização (gestão, clusters). Ora, a imigração bem integrada melhora as três — traz competências que faltam, justifica investimento em capital e obriga as empresas a processar volumes maiores, ganhando músculo para inovar”, diz.
“Pensar que podemos subir produtividade mantendo o mercado doméstico anémico e a força de trabalho em declínio não é realista. O mercado de trabalho português está em pleno emprego técnico e existem hoje milhares de vagas em áreas qualificadas por preencher — não porque o salário seja baixo, mas porque simplesmente não há pessoas disponíveis com o perfil certo. A demografia não perdoa”, continua.
O responsável da Startup Leiria mostra-se preocupado com o impacto das críticas do CEO da tecnológica americana possam ter na capacidade do país atrair investimento.
“Quando um CEO americano compara Portugal, em público, com a Colômbia ou Chile e diz que vai pôr o pé no travão, o dano não é só reputacional — é ruído para os decisores. Investidores de capital de risco olham para arbitragem de talento, ou seja, se o programador não pode chegar vai-se para outro lado”, diz.
“A curto prazo, devemos esperar atrasos em novos centros de engenharia e maior pressão salarial sobre o talento já residente; a médio prazo, uma eventual descida de ranking em índices como o StartupBlink (onde Leiria alcançou o 3º lugar nacional) ou o Global Talent Competitiveness Index, que alimentam decisões de expansão corporativa”, afirma.
No último ranking da StartupBlink, Portugal segurou o 29.º lugar, depois de no ano passado ter caído três posições, a maior queda do top 30. “Portugal cresceu acima de 15% — em linha com os seus pares na 28.ª e 31.ª posição, cujos crescimentos oscilam entre 15% e 17% —, o suficiente para manter a sua posição”, aponta o“Global Startup Ecosystem Index 2025”. O país segura ainda a 17.ª posição a nível europeu.
Cloudflare ainda perde, mas ganhou maior contrato de sempre no primeiro trimestre
Fundada em 2009 e com sede na cidade norte-americana de São Francisco, a Cloudflare é uma empresa de cibersegurança, modernização de aplicações, compliance e proteção de dados através da nuvem (cloud). Para tal, desenvolve programas de segurança informática para os colaboradores e para as próprias redes e infraestruturas das empresas, além das plataformas para programadores especializados poderem criar e implemente aplicações sem necessidade de servidores. Na prática, a sua tecnologia tanto ajuda a evitar ataques de hackers como tenta melhorar o desempenho dos websites.
Entre os clientes da Cloudflare na região EMEA e em Portugal encontram-se empresas como a Allianz, o Banco de Portugal, o Carrefour, a Clever Advertising, a DHL, a Doctolib, a L’Oréal, a TAP, a Porsche Informatik – a subsidiária informática da Porsche – ou a Federação Portuguesa de Futebol. Entre outros clientes notáveis, contam-se a Roche, a Sage, a WA Technology e a Zalando. É nestas e noutras organizações que a empresa bloqueia “milhares de milhões de ameaças” online todos os dias.
Em Portugal, a empresa começou a investir em 2016 com a expansão da rede para Lisboa. Três anos mais tarde, decidiu abrir o seu primeiro escritório na capital e acabou por crescer de 14 trabalhadores no país para mais de 350. No entanto, as queixas da gestão já eram uma constante.
Em entrevista ao Diário de Notícias, o cofundador e CEO chegou a dizer que enviava pessoas à Madeira “para ir buscar documentos, porque lá não há os problemas burocráticos” que encontrava no continente. Certo é que, no âmbito de um significativo plano de expansão em Lisboa, a Cloudflare inaugurou em outubro de 2024 uma nova sede e centro técnico para dar suporte às operações na região da Europa, África e Médio Oriente (EMEA) – a par com os escritórios de Londres, Paris, Munique e Dubai – e anunciou o objetivo de criar mais 500 empregos.
“Contratar mais de 400 colaboradores. Mas seria o dobro disso com um Governo competente. Há seis anos que ouço falar de «mais favorável aos negócios». Muita conversa. Nada muda“, denunciou esta segunda-feira o gestor, acrescentando que tem alertado o Executado para os problemas, mas não é ouvido nem encontra solução nas políticas públicas. A concretizar-se este plano de recrutamento, faria com que o hub da empresa em Portugal atingisse as 800 pessoas, a mesma dimensão na época da delegação em Austin, nos Estados Unidos.
Segundo o CEO da Cloudflare, a intenção até era – ou é – colocar Lisboa como sede da empresa na União Europeia (UE). “Continuamos a investir em Londres, mas precisamos de uma sede na UE. Queríamos que fosse Lisboa”, escreveu também na rede social X.
O CEO tem estado a responder a alguns internautas, nomeadamente a um que lhe pediu “paciência” com Portugal, porque “o país acabou de ir a eleições”. De forma pragmática, retorquiu: “Seis anos depois, a minha paciência esgotou-se”. A outro, que também tentou defender Portugal neste azedume transatlântico, Matthew Prince disse mesmo que a burocracia da Índia não é pior do que a de Portugal.
Quem também se mostrou indignado com a situação foi o português Henrique Cruz, da empresa Rows: “Se ainda ninguém do Governo entrou em contacto [com o CEO da Cloudflare], alguém não está a fazer o seu trabalho”. Numa publicação na mesma rede social, o responsável de crescimento da startup concorrente do Excel diz que “uma das melhores formas de um país como Portugal crescer economicamente é convencer as próximas 10 Cloudflares a abrir grandes escritórios” em território nacional.
Apesar do aumento das receitas a dois dígitos, a Cloudflare ainda dá prejuízo. No primeiro trimestre, o resultado líquido agravou-se de 35,5 milhões negativos, registados até março de 2024, para 38,5 milhões de dólares (aproximadamente 34 milhões de euros) negativos. Em destaque esteve a receita total de 479,1 milhões de dólares (421 milhões de euros), que aumentou 27% em termos homólogos. O outlook é positivo e foi revisto em alta para receitas de 501 milhões no segundo trimestre.
“Começámos 2025 com confiança, impulso e resultados sólidos. No primeiro trimestre, fechámos o maior contrato da história da Cloudflare, um negócio de mais de 100 milhões de dólares [88 milhões de euros], impulsionado pela nossa plataforma de desenvolvimento Workers, e assinámos o contrato SASE [Secure Access Service Edge] de maior prazo até à data. Temos a escala, a tecnologia e a equipa para captar a enorme oportunidade que temos pela frente”, comentou Matthew Prince, na mensagem publicada com o relatório financeiro.
O ECO contactou a Cloudflare, o Governo e a Câmara do Comércio Americana em Portugal, mas até ao momento do fecho deste artigo não foi possível obter comentários.
Notícia atualizada às 12h com mais informação
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