Exclusivo Um orçamento de consolidação nominal e não estrutural
Joaquim Miranda Sarmento, professor de Finanças do ISEG, analisa a proposta de Orçamento, "pensada para a geringonça e não para o país, num equilíbrio fino do poder que sustenta o Governo".
Numa nota inicial, peço desculpa ao leitor por esta análise tão longa, mas, citando Oscar Wilde, “não tive tempo de a fazer mais curta”.
Introdução
Com o OE/2018, o Governo continua aquilo que tem vindo a fazer desde o início de 2016. Abandonada a retórica anti Europa, o Governo apostou na consolidação orçamental nominal. Essa consolidação, como tenho desde há um ano escrito aqui no ECO, é sobretudo baseada no efeito cíclico do crescimento económico.
O crescimento nominal em torno dos 4% tem permitido aumentar a despesa e, simultaneamente, reduzir o défice nominal (embora a redução do investimento público e as cativações de despesas com serviços públicas também façam parte desta estratégia). No entanto, não há consolidação orçamental estrutural.
Pelo contrário, o défice estrutural está, na melhor das hipóteses a manter-se, embora possa agravar-se. Isto porque estamos, mais uma vez, a repetir a receita do passado: aposta num modelo de crescimento baseado no consumo e na dívida, e aumento da despesa pública estrutural (sobretudo salários e prestações sociais) com base em receita cíclica.
Outro aspeto relevante é que num momento em que o saldo primário deveria estar a aumentar, em 2018 é praticamente igual ao de 2017 (2.5% do PIB quando o Programa de Estabilidade apontava para um saldo primário em 2018 acima dos 3%). Isto é crítico para a redução da dívida pública.
Mas este é um OE pensado para a geringonça, e não para o país. Toda a estratégia orçamental visa o “equilíbrio fino” de poder que sustenta o governo. Por um lado, agradar a Bruxelas, continuando a reduzir o défice nominal. Bruxelas vai criticando a falta de reformas e consolidação orçamental estrutural, como o fez na semana passada. Mas tendo Portugal saído da vertente corretiva do Procedimento dos Défices Excessivos, a capacidade de vigilância e correção da União Europeia é menor. Enquanto o pau vai e vem, folgam as “costas políticas” do Governo. Mas por outro lado é um OE para agradar à geringonça. Este OE está centrado numa perspetiva eleitoralista: setor público e redução de IRS.
Pergunto-me: como será o de 2019, se as eleições se vierem a realizar nesse ano?
Mas o que nos diz uma primeira leitura, muito rápida, do OE para 2018?
As projeções macroeconómicas
O cenário macro apresentado pelo Governo é relativamente realista e está em linha com as estimativas das principais instituições. Teve uma avaliação globalmente positiva por parte do Conselho das Finanças Públicas (CPF), embora se mantenham alguns riscos.
O crescimento real será de 2.6% em 2017 (3.9% em termos nominais), desacelerando para 2.2% em 2018 (3.6% em termos nominais). Esta desaceleração vem sobretudo da redução do crescimento das exportações e da FBCF. Repare-se que o crescimento homólogo do 1º semestre de 2017 (3%) foi excecionalmente bom, porque comparava com um mau 1º semestre de 2016. Mas o crescimento homólogo do 2º semestre já é inferior ao crescimento total do ano. E o crescimento em cadeia do 2º trimestre de 2016 já só foi de 0.3%. Por outro lado, o saldo comercial tem vindo a agravar-se.
Quanto ao desemprego, continuará a reduzir-se, passando de 11% em 2016 para 9.2% em 2017 e 8.6% em 2018. O gráfico abaixo mostra como a redução de desemprego esta a ser mais rápida do que aquilo que as taxas de crescimento real fariam prever, considerando uma série longa desde 1985.
A economia portuguesa está presa por quatro “grandes arames”: primeiro, a política monetária expansionista do BCE; segundo, um crescimento moderado das economias Europeias; terceiro, o baixo preço do petróleo; quarto, um efeito de crescimento do turismo (embora outros setores estejam também a crescer, o turismo sustenta parte considerável do crescimento).
Mais uma vez: fatores conjunturais que geram crescimento cíclico, que gera receita cíclica (ou menos despesa de juros no caso do BCE, que vai mantendo as taxas de juro historicamente baixas), que financia despesa estrutural.
Uma receita que sempre falhou. O que nos leva a pensar que desta vez vai resultar?
Os números e o défice de 2017
Para 2017, o Governo prevê um défice de 1.4%, em linha com as minhas últimas previsões (e estimo um défice sem “one-offs” de 1.7%, dado que existem 450 M€ da garantia do BPP e mais 100 M€ do PERES).
Em 2016, o défice nominal tinha sido de 2%, e o défice sem “one-offs” foi de 2.4% ou seja, nominalmente há uma redução de 0.7 pontos percentuais (p.p.). O gráfico do relatório do OE/2018 (pág. 26), mostra, contudo, como esta consolidação é ilusória e, mais uma vez, meramente conjuntural. Segundo o governo, o efeito conjugado na redução do défice do aumento da receita e do ciclo económico foi de 2% PIB, sendo que ainda houve menos despesas com juros e com subsídio de desemprego num total de 0.3% PIB.
Ou seja, com uma política orçamental conservadora e prudente, Portugal teria já em 2017 atingido um equilíbrio orçamental nominal. Tal como escrevi aqui há duas semanas, com este crescimento, Portugal já deveria ter um défice nominal próximo de 0%. Infelizmente, a opção foi aumentar a despesa: pessoal (+0.3 p.p.), investimento (sobretudo nas autarquias, + 0.5 p.p.) e outras despesas (+1 p.p.), obtendo um défice de 1.4% em 2017.
A tabela abaixo compara a previsão (em contabilidade pública) do governo para 2017 com a execução até agosto (últimos dados disponíveis). Vemos que as variações homólogas até agosto estão em linha (nalguns casos até abaixo) do objetivo do OE/2018 para o ano de 2017. No entanto, nos quatro meses em falta (setembro a dezembro), o saldo em contabilidade pública não se pode agravar em mais de 500 M€.
Refira-se que em 2016, entre setembro e dezembro, o saldo das Administrações Públicas (AP´s) em contabilidade pública agravou-se em 260 M€. A receita cresceu 29 mil M€ e a despesa cerca de 28.5 mil M€. O IRS cresceu 4.8 mil M€, o IRC cresceu 2.7 mil M€ e o IVA cresceu 5 mil M€. Apesar de o período setembro-dezembro de 2017 apresentar algumas diferenças (o pagamento do subsídio de natal passou de duodécimo para novembro e este ano não haverá PERES), os números apresentados pelo governo afiguram-se prováveis.
Os números e o défice de 2018
Para 2018, o governo prevê um défice de 1%. Como é que se passa de um défice de 1.7% em 2017 (sem “one-offs”) para um défice de 1% em 2018?
Esta redução resulta exclusivamente do efeito cíclico de um crescimento nominal de 3.6%, o que reduzirá o défice para um valor em torno de 0.6% segundo os meus cálculos. Estimo que as medidas que o governo tomará para 2018 terão um impacto de agravar o défice em 0.3% (mais à frente, no saldo estrutural explicarei porque).
Assim, estimo que o governo possa de facto cumprir a meta de 1%, mas dependerá da conjuntura económica, bem como de um controlo da despesa com serviços e investimentos e de poupanças nos juros. O caminho continua difícil, e quem achou que a “austeridade” diminuiria, creio que está equivocado.
A confirmar que a redução do défice passa quase exclusivamente pelo efeito do crescimento nominal, veja-se que se prevê que a receita total se mantenha em % PIB, mas com a outra receita e a receita de capital a compensar a quebra de 0.3 p.p. da receita fiscal. Por outro lado, a quebra de 0.2 p.p. da despesa está concentrada nas despesas com pessoal (-0.3 p.p.) e juros (-0.3 p.p.), que compensam o aumento do investimento (+0.4 p.p.).
Olhando assim, parece que o governo vai fazer um “grande” esforço de redução da despesa pública com pessoal e “congelar” a despesa com os consumos intermédios e prestações sociais. Contudo, vale a pena olhar para os valores projetados em milhões de €, conforme a tabela abaixo. O que vemos é um aumento dos gastos com consumos intermédios em 500 M€, mais mil M€ nas prestações sociais e mais 430 M€ nas outras despesa e mais mil M€ para o investimento. No total, a despesa aumenta 2.5 mil M€.
A grande conclusão é que a consolidação orçamental vai ser feita baseada quase exclusivamente no crescimento económico. Como a economia cresce, a receita fiscal e total vão crescer 2 mil M€ e 3.2 mil M€ respetivamente. Reduz-se o peso em % PIB, mas apenas porque crescem menos que o previsto para o PIB.
A consolidação orçamental estrutural que não existe
O OE/2018 indica que o défice estrutural em 2017 ficou em 1.8%. Para 2018, prevê-se um défice estrutural de 1.3% (mas veremos que estes valores têm algumas incongruências).
Recorde-se que o saldo estrutural não considera a redução do défice por via do crescimento (mais PIB, mais receita fiscal e menos subsídios de desemprego), nem considera o aumento do défice por via de uma recessão (menos PIB, menos receita fiscal e mais subsídios de desemprego), e também não considera as medidas “one-off”. Note-se também que desde 2015 que temos tido políticas expansionistas pró-cíclicas, ao arrepio de tudo o que se deve defender em Economia.
A tabela abaixo mostra o seguinte: primeiro, os números apresentados pelo governo para o saldo estrutural. Depois, mostra o valor das medidas anunciadas para 2017-2018, e o “gap” que falta para atingir o objetivo de variação do saldo estrutural.
Verifica-se que para atingir um défice estrutural de 1.3% em 2018, o governo tem um “gap” de medidas de 0.7 p.p. (ou seja, cerca de 1.4 mil M€). Embora a revisão do PIB potencial possa minorar este “gap”, isto significa que é claro a quem redigiu este OE que há necessidade de medidas adicionais para se atingir os objetivos do défice estrutural (ou então não os cumprir).
Além disso, grande parte das medidas que constam do OE/2018 são vagas e sem especificar claramente como serão implementadas, pelo que o “gap” poderá ser superior. Isso implica que se considerarmos apenas os aumentos de receita (ou seja, sem a redução de despesa nos “consumos intermédios”, na “outra despesa corrente” e nos juros”), o défice estrutural continuará em torno dos 2.5% em 2018. Ou seja, a consolidação estrutural depende de medidas não especificadas e de uma redução dos juros que o governo não controla. Outro aspeto preocupante é que o saldo primário estrutural praticamente fica inalterado.
Dívida Pública
Relativamente à dívida pública, o governo prevê uma descida para 126.2% do PIB em 2017 e para 123.5% do PIB para 2018. A dívida pública reduzir-se-á assim 3.9 p.p. em 2017 e 2.8 p.p. em 2018. Esta redução total de 6.7 p.p. deve-se ao efeito do saldo primário (-5.1 p.p.) e ao efeito dinâmico (ou seja, ao fato de a taxa de crescimento do PIB ser maior que a taxa de juro média implícita da dívida pública) (-1.8 p.p.), havendo depois outros efeitos (+0.2).
As necessidades líquidas de financiamento em 2018 são de 10.8 mil M€, dos quais apenas 5.4 M€ é para o défice orçamental em contabilidade pública. O restante prende-se com a aquisição líquida de ativos financeiros. Mas as necessidades brutas de financiamento ascendem a 40 mil M€, dos quais 8 mil M€ de médio e longo prazo. Isto mostra como o fluxo de reembolsos de dívida permanece alto, e vai continuar a subir até 2021.
A parte fiscal
É, contudo, na matéria fiscal que se nota (ainda) mais a aposta num modelo de consumo interno e a aposta política atrás descrita de este OE/2018 servir a geringonça e não o país.
Se se tivesse efetivado a subida da derrama estadual para 9% (no escalão máximo) (coisa que estará a ser negociada), somado aos 21% da taxa nominal e 1.5% de derrama municipal (taxa máxima), colocaria a taxa máxima de IRC em 31.5%. Esse seria hoje o valor mais alto dos países da União Europeia.
As medidas tomadas em sede de IRC são positivas (nomeadamente os benefícios de reinvestimento dos lucros), mas insuficientes. Mas há uma carga ideológica neste OE. E convinha recordar que houve um acordo para a estabilidade do IRC (assinado em 2013), e que não foi cumprido. Embora duvide da descida da taxa nominal, esta subida, colocando Portugal com a taxa marginal de IRC mais alta da Europa, se se efetivar, terá um efeito negativo na competitividade da economia.
Em termos do IRS, não discordando de que o imposto deve ser progressivo, recorde-se o estudo recente do FMI que conclui que o IRS é um dos impostos sobre o rendimento mais progressivos a nível mundial. A taxa marginal máxima de 48%, a que se soma a segurança social, colocando o valor nos 60%, afigura-se como uma das mais altas. Em contrapartida, das 4.5 milhões de declarações, 2.5 milhões não apuram imposto.
Adicionalmente, o que vemos é que o sistema fiscal continua a não ter uma coerência própria e em cada OE temos remendos em cima de remendos, com a criação de cada vez mais taxas e outro tipo de contribuições. Neste aspeto, a taxa sobre a indústria farmacêutica pode gerar alguns equívocos.
Vejamos: as vendas de dispositivos médicos está muito concentrada no SNS, pelo que esta taxa dificilmente escapará a um efeito de aumento do preço, e portanto o seu efeito orçamental afigura-se muito inferior ao previsto no OE.
Síntese
Temos um OE/2018 que prossegue a estratégia de consolidação orçamental baseada quase exclusivamente no crescimento nominal (embora vá continuar a ser necessário manter o investimento público em valores muito baixos e a controlar a despesa com os serviços públicos). De facto, apesar de o défice nominal passar de 1.4% em 2017 (1.7% sem “one-offs”) para 1% em 2018, o saldo primário mantém-se em torno dos 2.5%. Também o défice estrutural deverá continuar em torno dos 2%, podendo mesmo agravar-se.
Como tal, é cada vez mais claro que o país precisa de uma estratégia de consolidação orçamental com medidas estruturais e não apenas com a “bonança” de um crescimento económico um pouco melhor que o dos últimos anos.
Mas apesar dessa crítica, como “ortodoxo” das Finanças Públicas equilibradas, fico apesar de tudo modestamente satisfeito com este OE/2018 e a redução do défice nominal. Espanta-me que aqueles que nos últimos anos tanto criticaram a “obsessão” pelo défice estejam agora tão empenhados. Mas fico naturalmente satisfeito. Sobretudo por ver o PCP e o BE assumirem uma postura de responsabilidade orçamental. Creio que essa é a principal lição dos últimos anos. Pode ser a geringonça no governo. Mas esse poder implicou uma “rendição” aos princípios dos “conservadores orçamentais”. E não vale a pena falar na reposição dos rendimentos. Os cortes salariais repostos em 2016 vinham de 2010, de um governo do PS. E a austeridade não desapareceu.
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