Sócrates: “Europa foi duplamente vítima: da crise e da resposta à crise”
O ex-primeiro-ministro foi a Coimbra falar sobre o projecto europeu depois da crise. Intervenção de José Sócrates era aguardada com expectativa, por fugir ao tema que publicamente mais o tem ocupado.
O ex-primeiro-ministro defendeu esta quarta-feira que a Europa foi “duplamente vítima” na crise e na resposta que deu à crise, o que fragilizou o projeto europeu. José Sócrates elencou “quatro consequências negativas” provocadas pela gestão da crise de 2008 na Europa.
“A Europa foi duplamente vítima: da crise e da resposta à crise”, disse em Coimbra, numa aula na Faculdade de Economia daquela cidade, parcialmente transmitida pelas televisões, acrescentando que, do seu ponto de vista, “a experiência portuguesa é bem um exemplo de que essa receita falhou”.
A intervenção do ex-primeiro-ministro, numa conferência sobre “O projeto europeu depois da crise económica”, gerou polémica nos últimos dias nas redes sociais. Sócrates liderou o Executivo entre 2005 e 2011, período em que se verificou uma crise financeira a nível mundial, e em que Portugal foi obrigado a pedir ajuda externa.
As declarações de Sócrates eram também aguardadas com expectativa. Nos últimos tempos, as intervenções públicas do ex-primeiro-ministro têm-se centrado mais na sua defesa. Depois de ter sido detido em novembro de 2014, Sócrates foi acusado em outubro de 2017 de 31 crimes, no âmbito da Operação Marquês. Além disso, o ex-primeiro-ministro já defendeu que o seu envolvimento no processo resulta do facto de o quererem “impedir” de se candidatar à Presidência da República.
Perante uma plateia de alunos, o antigo primeiro-ministro argumentou que, ao contrário do que aconteceu em 1938 nas vésperas da II Grande Guerra Mundial quando um grupo de intelectuais debateu o domínio do fascismo, em 2008 “e particularmente em 2010” a corrente de pensamento que vingou foi a de que a crise resultou do “excesso de Estado, de políticas públicas e de proteção social”.
O que teve “uma consequência muito muito negativa para o projeto europeu“, concluiu. Isto porque, a política europeia se baseou em dois aspetos, acrescentou, explicando tratar-se da austeridade, através da redução dos défices, e das reformas estruturais, através da redução da proteção social.
Esta receita falhou, defendeu o antigo líder do Executivo salientando estar no lado oposto desta discussão, e argumentou que foi a intervenção do Banco Central Europeu (BCE) em 2012 – com o programa de compra de ativos – que permitiu a saída da crise.
Para José Sócrates, “a austeridade como ideia política revelou-se um falhanço”, porque não resolveu nenhum problema de défice, nem da dívida pública, e “não trouxe nenhuma resposta efetiva à crise no crescimento e no emprego”.
No meu ponto de vista a experiência portuguesa é bem um exemplo de que a receita da austeridade falhou.
Sócrates concluiu que a receita para a crise na Europa acabou por deixar “marcas” no projeto europeu. A primeira foi a “desconfiança entre o Norte e o Sul”.
A segunda foi a desconfiança entre países – com a uma “debilidade da legitimidade democrática das instituições europeias” e as alterações na liderança europeia. “O eixo franco-alemão tinha uma liderança inclusiva” e, principalmente a alemã, “passou a impositiva.”
Sócrates falou ainda do desaparecimento do modelo social europeu do discurso dos europeístas – “como se implicasse apenas desperdício” – e da ideia de coesão europeia.
Abandono do TGV é ideia “reacionária”
O ex-primeiro ministro José Sócrates considerou ainda que o abandono do projeto da ligação de alta velocidade ferroviária (TGV) a Espanha e à Europa é uma “ideia reacionária” e revela “resignação e falta de ambição”.
“A ideia de que o país não tem aqui um trabalho a fazer para se ligar à rede de alta velocidade europeia, a ideia que a rede de alta velocidade em bitola europeia vai parar em Badajoz, com o país propositadamente atrasado e por uma decisão política que nos condena ao atraso, é das ideias mais reacionárias que eu tenho visto a desenvolver no nosso país”, afirmou José Sócrates, citado pela Lusa.
“E quando digo reacionária é mesmo isso, é porque elas não permitem um pouco mais de ambição, é a ideia de resignação, [do] sim, devemos aceitar tudo isto e não devemos escolher ninguém que tenha um pouco mais de visão para a modernização e para o crescimento económico português”, criticou o antigo primeiro-ministro.
Dirigindo-se à plateia de mais de 300 alunos universitários, no período de perguntas e respostas de uma conferência sob o tema “O projeto europeu depois da crise económica”, promovida pelo núcleo de estudantes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), José Sócrates lembrou que há 20 ou 30 anos a duração de uma viagem de comboio entre Lisboa e Porto era de cerca de três horas e hoje a mesma viagem demora duas horas e cinquenta minutos.
“E o que estão a dizer-vos é que nos próximos 30 anos, porque não se faz nada para isso, se vão demorar duas horas e cinquenta”, enfatizou, ainda citado pela Lusa.
Na ocasião, defendeu ainda que o que Portugal e a Europa “há muito precisam é de um projeto de desenvolvimento, um projeto de modernização, um projeto de crescimento económico”.
No final da sessão, confrontado pela agência Lusa sobre a questão do abandono do projeto do TGV e a referida falta de ambição dos decisores políticos, Sócrates reafirmou que Portugal “precisa de um projeto de desenvolvimento” que já teve, nomeadamente quando foi primeiro-ministro entre 2005 e 2011.
“Esse projeto de desenvolvimento foi posto em causa por uma visão política que atribuía a esse investimento, a essa ambição, a essa modernização, primeiro, a ideia de desperdício e que isso era dinheiro deitado fora”, sustentou José Sócrates.
“Isso é um erro, eu nunca partilhei desse ponto de vista. Acho que o país precisa de recuperar essa vontade, essa ambição, de investimento em algumas áreas críticas, como se fez no passado”, declarou.
Apontou, nomeadamente, o investimento na ciência, ensino superior, educação e recuperação das escolas, energias alternativas e modernização de infraestruturas, na linha daquilo que disse durante a conferência de hoje, em que lembrou a atuação dos governos por si liderados e o projeto de desenvolvimento que possuía para o país.
“Pode soar a autoelogio mas das últimas vezes que ouviram falar de um projeto de modernização foi quando havia um Governo – e eu liderei esse Governo – que apostava nas energias renováveis, construção de barragens, modernização e reconstrução das escolas públicas portuguesas, quando apostámos em mais ciência e mais investimento para a ciência, nas tecnologias de informação, isso era um projeto de desenvolvimento”, argumentou.
(Notícia atualizada com mais declarações)
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