A propósito do Dia do Trabalhador, o ECO falou com dois dos protagonistas da concertação social há dez anos, quando o centro das atenções era a revisão do Código do Trabalho. O que mudou entretanto?
Há quase dez anos saía da concertação social o acordo tripartido que precedeu à revisão de 2009 do Código do Trabalho. Manuel Carvalho da Silva, então secretário-geral da CGTP, abandonou as negociações. Francisco van Zeller, presidente da Confederação da Indústria Portuguesa (CIP, atualmente Confederação Empresarial de Portugal) assinou o acordo, mas queria ir mais longe.
Entretanto, a lei do trabalho já foi alterada várias vezes, nomeadamente durante o programa de ajustamento. E há novas mudanças na calha, também pelas mãos de Vieira da Silva — que foi igualmente o ministro responsável pela revisão da lei em 2009. A propósito do Dia do Trabalhador, o ECO falou com os antigos líderes da CGTP, central sindical, e da CIP, confederação patronal, para perceber como veem a evolução do mundo do trabalho e o que antecipam para o futuro.
“A onda está a favor dos trabalhadores”, diz van Zeller. Carvalho da Silva aponta em sentido inverso. “O grosso da alteração da legislação do trabalho foi no sentido daquilo que é a realidade de hoje: uma grande densidade de precariedade de trabalho, que não é apenas nos chamados precários”, frisa. Veja as entrevistas.
Carvalho da Silva: “Leis do trabalho em Portugal vêm num descambar absoluto desde 2003”
A CGTP não assinou o acordo celebrado há dez anos para a revisão do Código do Trabalho que avançou em 2009. Olhando para trás, fez bem?
Acho que não tinha outro caminho. Aceitar as alterações que ocorreram em 2009 foi pactuar com uma entorse profunda que o Código do Trabalho já trazia desde a sua estruturação em 2003. E, portanto, acho que é absolutamente necessário tomar rumos opostos àqueles que foram trilhados.
A lei não melhorou na altura?
As leis do trabalho em Portugal vêm, diria mesmo, num descambar absoluto desde 2003. E culminou depois em 2012 com alterações pontuais feitas à legislação que, só essas, significam bem mais de três mil milhões de euros por ano que passam do fator trabalho para o fator capital.
Portanto, de forma genérica, todas as alterações até agora prejudicaram os trabalhadores?
Há questões pontuais positivas, em relação ao encarar do princípio da igualdade, por exemplo. Agora o grosso da alteração da legislação do trabalho foi no sentido daquilo que é a realidade de hoje: uma grande densidade de precariedade de trabalho, que não é apenas nos chamados precários. Toda a gente tem trabalho mais precário.
Além disso, imensas aldrabices, mentiras ao longo deste período todo. A determinada altura, estou a recordar, colocava-se com grande ênfase que era preciso diminuir a parte fixa da retribuição do trabalho e alterar a parte móvel para valorizar os trabalhadores e incentivar os mais produtivos. Quando se começou a invocar a crise em 2009/2010 foi absolutamente cilindrado tudo o que era retribuição móvel. Ou seja, houve uma burla monumental aos trabalhadores portugueses.
[O sindicalismo] está a atravessar múltiplos riscos. Mas continua a ser uma arma contra o medo extraordinariamente importante e é uma questão de reformulações e de atualizações de contexto.
Francisco van Zeller diz que se discutiu que os salários tivessem duas componentes — uma fixa e outra variável em função do mérito — mas a questão era tabu para a CGTP.
Isso é um absurdo. O registo foi esse: por exemplo, nos diversos subsetores dos transportes, a retribuição móvel chegou a fixar-se entre os 27% e os 30% em termos médios. Tudo isso estoirou, porque depois invocava-se a exceção. O caminho que a legislação portuguesa levou, eu diria que é a mãe da precarização generalizada e da estagnação dos salários. A legislação acompanhou nos últimos anos essa estratégia neoliberal, que é fazer do fator trabalho a variável de ajustamento de todas as políticas económicas. Este Governo atenuou a situação em parte…
As mudanças para frente, apresentadas pelo Governo, vão no mesmo sentido?
Atenuou, agora vamos ver o que se passa. Até este momento conhece-se apenas o inventário das medidas, não os seus conteúdos concretos.
E a longo prazo, qual o futuro da legislação?
Não sei, depende… Depois de 2009, o que se tem vivido em Portugal é um fundamentalismo de utilização do fator trabalho como variável de ajustamento. E isso tem conduzido a uma redução de salários para os trabalhadores que entram no mercado de trabalho, uma coisa dramática. Vamos à Autoeuropa, a formação média destes dois mil últimos contratados é muito superior à formação dos trabalhadores há doze anos, e o valor de entrada é inferior hoje ao que se praticava em 2007. Mas isto acontece em muitas outras empresas.
De que depende então o futuro?
De Portugal consolidar ou não a sua matriz em setores de pouco valor acrescentado. Um dos problemas é se não há uma modernização do turismo e outra atitude perante outros setores. Uma parte significativa dos chamados novos serviços são indústria, a indústria atual é totalmente diferente da antiga. Mas se não houver industrialização do país e um fortíssimo investimento em emprego de mais qualidade, vamos continuar a ter leis laborais adequadas a esta utilização do fator de trabalho como variável de ajustamento, e portanto sempre a pressionar para baixo.
O maior drama do nosso país na última dúzia de anos é a imigração. Saíram centenas de milhares de jovens com qualificações, houve uma depauperação profunda da capacidade de trabalho e da construção de posicionamentos críticos na sociedade e isso diminui muito a capacidade reivindicativa dos trabalhadores. E houve do ponto de vista da formação da sociedade portuguesa algumas atitudes que são quase criminosas. O enfoque que se coloca muitas vezes nas universidades — agora já vai diminuindo — é uma coisa vergonhosa, de dizer aos jovens que não sabem onde vão trabalhar, o trabalho pode ser aqui ou além, sem o contrapeso a isto. Assusta-me encontrar alunos do 11º ano já a raciocinar numa base de que não trabalharão em Portugal porque os salários são baixos e isto não vai ter futuro. Este desarmar da juventude é um drama para o país.
Então e como se enquadra o salário mínimo neste discussão?
É importante. As atualizações evitaram que o salário de uma parte significativa dos trabalhadores, em particular jovens, fosse ainda mais baixo. Mas como não há dinamização da contratação coletiva corre-se o risco de o salário mínimo se tornar o salário de referência.
E como vê os 600 euros prometidos pelo Governo para 2019?
É um valor baixo à luz da situação que vivemos. Se olharmos para os grandes centros urbanos, debaixo desta pressão do turismo, e começarmos a ver os preços de habitação, mobilidade, é um drama para os jovens, por isso é que emigram. Portanto, as leis laborais vão depender muito também da consciência que de forma coletiva se formar na sociedade portuguesa sobre o rumo do país.
Como é que os trabalhadores podem conseguir que as suas reivindicações tenham efeitos práticos? As greves funcionam?
A greve é o último recurso. O instrumento mais importante é a existência de liberdade sindical e de organização nos locais de trabalho.
Mas a sindicalização está em níveis reduzidos.
Sim, hoje em muitas empresas se um trabalhador quiser ser sindicalizado, é razão suficiente para não lhe renovarem o contrato. Se há democracia no local de trabalho, ou seja, se há liberdades, se há estruturação de diálogo social que se efetiva, se os trabalhadores têm direito a organizarem-se, automaticamente encontram caminhos de debate com as entidades patronais e soluções para os problemas. A greve é o último recurso nesse processo.
Os trabalhadores têm consciência disso?
Vivemos numa sociedade que exalta o individualismo até à estupidez. E a conjugação do individualismo com o consumo é um drama. Se juntarmos a isto a ideia de que o trabalho é uma mercadoria pura e simplesmente… Há condicionalismos enormes. Mas nos quase 200 anos de vida do sindicalismo esta não é a primeira crise. E sempre que houve impulsos de progresso nas sociedades, o sindicalismo retomou em força como elemento indispensável. E julgo que não está para deixar de cumprir esse papel. Em que formas, com que organização, como é que os jovens vão construir identidade coletiva, essas são grandes interrogações. Mas, entretanto, vamos vendo coisas de muito interesse, como recentemente na Bélgica, os trabalhadores ligados a plataformas digitais. E vemos coisas impensáveis há três ou quatro anos, a Ryanair por exemplo.
Que setores vão liderar isto?
Tem uma certa tendência para serem, em grande parte, as mesmas áreas que no passado. Por exemplo, um grande setor que esteve sempre no cerne do combate foi o dos transportes. Não tenhamos dúvidas de que vão estar novamente. Há muitos mais transportes e mais necessidade de mobilidade. Outra área é o Estado moderno, o sindicalismo nasce também no contexto das profundas alterações à estrutura e lógica do Estado. A outra é os chamados novos serviços, que trazem parte da produção de bens e de serviços. E há velhos serviços que se vão manter.
O sindicalismo não está em risco?
Está a atravessar múltiplos riscos. Mas continua a ser uma arma contra o medo extraordinariamente importante e é uma questão de reformulações e de atualizações de contexto. Se o trabalho está aí para se manter, e manter a sua centralidade nas sociedades, isso significa que a organização das pessoas em função do trabalho é absolutamente indispensável.
Francisco van Zeller: “Neste instante, a onda está a favor dos trabalhadores”
Há dez anos, a CIP assinou o acordo que precedeu a revisão do Código do Trabalho, mas queria ir mais longe. A lei do trabalho melhorou?
É muito difícil dizer, umas coisas sim, outras não. Nunca há na concertação social a vitória de uma parte, em que tudo ganha. Isso não existe. Há acordos, compromissos, cedências, há adiamentos muitas vezes. Há uma negociação que depois continua, porque todos nós continuamos a encontrar-nos — eu muito mais com a UGT do que com a CGTP, mas continuávamos a ter progressos por fora.
Entretanto houve novas alterações à lei, até durante o programa de ajustamento. O trabalhador ficou sempre a perder?
Não. Tem sempre ganho. Tudo é relativo, gostariam de ter tido mais, agora progrediu muito. Houve muitas concessões e melhorias sociais; durante a troika obviamente é que houve sacrifícios muito grandes de toda a parte. Metemo-nos num buraco tão grande que depois para sair de lá foi muito difícil e caro. Caro para quem investe, houve sacrifícios grandes para quem trabalha. Mas foram esses quatro anos, a partir daí recomeçou — parte foi a reposição de certos direitos e também valores.
Penso que neste instante se está num ascendente no que diz respeito aos trabalhadores, embora se diga que as desigualdades estão a aumentar. Eu não acredito, não vejo nenhum enriquecimento muito grande, não vejo grandes investidores portugueses, não se vê ricos em sítio nenhum. E os trabalhadores lá vão, dentro do que é possível. Porque a questão limitativa dos direitos ou dos valores, dos salários, é sempre a produtividade. E os trabalhos que têm aparecido ultimamente não são de produtividade elevada, o turismo tem uma produtividade baixa por natureza, e os trabalhos relacionados, por exemplo, a reabilitação do parque imobiliário, também.
O Código do Trabalho está outra vez na mesa. O Governo apontou para mudanças, nomeadamente no âmbito dos contratos a prazo ou do banco de horas individual. Concorda?
Não. Tudo quanto seja diminuir a flexibilidade vai diminuir a vontade dos investidores, que já é pouca. Eu percebo que os trabalhadores queiram sempre mais e mais, a regra é essa, mas não é possível continuar a dar mais quando se chega ao ponto de abolir a flexibilidade da relação. E a flexibilidade da relação já está muito constrangida.
Olhando para o futuro, é de esperar que tendencialmente as mudanças penalizem trabalhadores ou empresas?
Eu acho que o banco de horas foi uma ideia magnífica. Há muita gente que vê o banco de horas pelo lado mau, e pelo lado mau pode haver abusos. Pelo lado bom, é que o próprio trabalhador está interessado em ter o banco de horas. Embora pareça que tem grandes abusos, e se calhar haverá aqui e acolá, de uma forma geral é uma coisa que convém a ambas as partes. Acho péssimo que acabem com o banco de horas individual.
Mas olhando para o futuro numa tendência de longo prazo, entende que as alterações vão ser feitas em que sentido?
Neste instante, a onda está a favor dos trabalhadores.
E mais para a frente? O que vai ser o futuro da legislação?
Também. A regra é essa desde há um século e meio, passos sucessivos que vão sendo dados, sempre com os investidores a travar, sempre com os trabalhadores a empurrar. Quem começa negócios já sabe que vai para esse mundo, que pode não ser uma guerra. Pode ser uma luta, como dizem os comunistas, ou um movimento contínuo, em que as pessoas se vão adaptando. O que acontece é que o investimento pode ser mais rápido ou mais lento conforme as facilidades forem encontradas, e, sobretudo, como não há investidores internos, os estrangeiros têm mais sítio para onde ir. Se fechamos demais aqui dentro, eles vão para outro lado. Espanha por exemplo está com muito maior investimento e crescimento que nós.
Um trabalhador por conta própria trabalha imensamente mais do que um trabalhador assalariado. Porque tem um interesse. O que era preciso era criar os interesses ou os sistemas, ou o que quer que seja, para que as pessoas se sentissem incentivadas.
Estamos preparados para o que aí vem, com a digitalização e a robotização?
Não. Esse é um enorme problema. O que eu acho é que não vem tão cedo. É uma coisa apelativa, dá uns belos títulos, mas estamos muito longe. Será por passos sucessivos, vai haver adaptação, a nossa demografia está a descer, não acredito que cá dentro venha a ser um problema imediato.
E em termos salariais? O salário mínimo tem aumentado e para 2019 prevê-se 600 euros. Em que ponto estamos?
Estamos muito baixos. Porque a média baixou, os empregos novos que surgiram são todos de valores muito baixos. Em termos de comparação, entrámos em concorrência com países que só vivem do turismo. Turismo, reabilitação ou obras pequenas, tudo isso são salários muito baixos.
Concorda com os 600 euros em 2019?
Tenho que concordar. Não gosto, mas tenho que concordar. Não há outra solução neste instante.
Então e para a frente?
Era indispensável fazer aumentos de todos os salários, adorava que isso fosse possível. Mas para isso é preciso que aumente a produtividade. E a produtividade também está ligada à disciplina de trabalho. A produtividade não aumenta muito, não há estímulo para isso também.
Há um impasse?
Impasse não porque as gerações novas vão sempre trabalhando melhor que as antigas. Um trabalhador por conta própria trabalha imensamente mais do que um trabalhador assalariado. Porque tem um interesse. O que era preciso era criar os interesses ou os sistemas, ou o que quer que seja, para que as pessoas se sentissem incentivadas.
O que se devia fazer então?
Se fosse preciso, criar sistemas salariais em que o mérito é compensado, haveria de ver que os aumentos de salários seriam superiores.
Porque as pessoas estariam mais motivadas?
Exatamente. Mas isso é tabu para a CGTP, lembro-me que há dez anos já falávamos disso: que os salários tivessem duas componentes, uma fixa e uma variável, e é um tabu absoluto. Não querem o pagamento por mérito, querem igualdade e a igualdade nunca é justa, como se sabe.
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Os trabalhadores saem sempre a perder? Carvalho da Silva e van Zeller respondem
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