O Interior movimenta-se?

O relatório do Movimento pelo Interior é muito meritório, mas parece-me um documento que enferma, ele próprio, de uma certa orientação centralista.

Foi há dias publicado o relatório final do chamado Movimento pelo Interior. O trabalho, liderado por um conjunto de figuras públicas, com ligações à política e à sociedade civil, versou essencialmente três domínios de políticas públicas (política fiscal; educação, ensino e ciência, e; administração pública), tendo reunido no conjunto 24 propostas. O objectivo, pugnar pela valorização do interior do país, foi na minha opinião conseguido, independentemente de subscrevermos ou não todas as propostas apresentadas.

Infelizmente, como é habitual em Portugal na apresentação e, sobretudo, na análise deste tipo de relatórios, a maior parte dos que sobre ele opinaram não o leram (ou não o quiseram ler) na íntegra. É pena. O debate informado faz-se a partir da informação, pelo que se o debate é desinformado, o mesmo equivale a dizer que não há debate. Apenas balbúrdia mediática e alguma leviandade opinativa. É facto que, num país de tradição centralista como Portugal, as pessoas não têm grande incentivo em procurar informação e em quererem saber destas matérias de descentralização, mas ainda assim perdeu-se uma oportunidade.

O documento do Movimento pelo Interior evidencia três preocupações que o perpassam:

  1. A necessidade de discriminar positivamente o interior – que justifica até, nas palavras dos autores, um certo radicalismo das propostas por oposição ao gradualismo que nestes trabalhos tende a ser a regra.
  2. A ameaça do envelhecimento no interior.
  3. A oportunidade da descentralização administrativa como alavanca de desenvolvimento do interior.

O denominador comum é, naturalmente, o conceito de “interior”. A definição conceptual utilizada pelos autores é aquela que consta da portaria 203/2017 que, beneficiando da colaboração entre o Governo e a Associação Nacional de Municípios, estabelece um conjunto de indicadores sócio económicos para definir o que se entende por interioridade.

Temos, assim, no “interior” territórios localizados no Portugal profundo, mas também outros territórios que numa abordagem estritamente territorial não configurariam interior. É o caso de alguns concelhos no Alentejo e no Centro litorais, ou até no Minho. Em suma, a interioridade é definida do ponto de vista do desenvolvimento económico das regiões, e não necessariamente da sua distância geográfica face à costa atlântica.

Entre as recomendações do relatório, destaco as de natureza fiscal. Estas socorrem-se do quadro legislativo existente, promovendo adaptações cirúrgicas às leis vigentes, e fazem-no, do ponto de vista das finanças públicas, de forma muito responsável ao idealizarem despesa fiscal emergente inferior à despesa fiscal cessante que resultaria das propostas.

Este último ponto é, na minha opinião, até excessivamente conservador, porque o país mereceria outro alívio fiscal, mas realça a preocupação que os autores tiveram em evitar soluções que criassem outro tipo de problemas, nomeadamente, problemas de natureza orçamental que viessem a decorrer da implementação das propostas pelo interior.

Entre as medidas preconizadas, as mais emblemáticas são:

  1. A adopção de IRC de 12,5% para todas as empresas no interior, independentemente da sua dimensão e colecta de IRC.
  2. A elevação da contribuição estatal em investimentos que beneficiassem de “auxílios estatais com finalidade regional” de 25% para 45% em todo o interior, a exemplo do que já sucede na região (ultraperiférica) autónoma dos Açores. Segundo é afirmado no relatório, e parece-me que na mouche, “aqui se verá e medirá a força das ideias e a sinceridade dos políticos de Lisboa e de Bruxelas” (p.18).

Ao contrário do que foi dito e escrito, o relatório não defende o redireccionamento dos instrumentos fiscais de forma cega nem de forma irreversível. Ele defende, de facto, que a regra seja atribuir ao interior o exclusivo dos instrumentos, mas cria quadros de excepção que permitiriam acomodar a sua utilização também no litoral. Onde está então a principal lacuna do relatório?

Na minha opinião, o principal problema é que não apresenta (nem representa) uma verdadeira estratégia de descentralização. Na verdade, as medidas preconizadas estão, em geral, a jusante do problema. Podem contribuir para atenuar a diferença entre interior e não interior, mas dificilmente conseguirão equilibrar o plano de forças. E de que é que eu estou a falar? Estou a referir-me à necessidade de descentralizar o país quer na vertente administrativa quer na vertente orçamental.

Por outras palavras, em vez de ser o Estado central a definir o que se gasta e quanto se recebe em cada região, trata-se de inverter o “statu quo” e deixar às regiões a responsabilidade de gerir a sua própria despesa e a sua própria receita (conforme expus no meu artigo “O Estado Português está longe das pessoas” de 28/06/2017). Autonomia essa que seria reforçada através das medidas propostas para o interior.

Em suma, o trabalho apresentado pelo Movimento pelo Interior é muito meritório e estabelece um ponto de partida válido. O país está cada vez mais afunilado sobre as grandes cidades e assim o interior continuará a definhar. Na realidade, o que o Movimento pelo Interior propõe para o interior em relação ao não interior é muito semelhante ao que eu próprio, num âmbito mais alargado, tenho defendido ao longo dos anos para Portugal em relação à União Europeia. Mas os obstáculos são formidáveis: a começar na vontade política que ponha em marcha tal agenda e a terminar nos mecanismos de governança que seriam necessários à sua implementação.

Além disso, a descentralização como fim último exigiria uma mudança de cultura e uma maior responsabilização política dos decisores locais. Neste aspecto, e espero não ser injusto, o relatório do Movimento pelo Interior parece-me um documento que enferma de uma certa orientação centralista: ele parte do Estado central para o local. Sendo o relatório bondoso nos propósitos e incisivo nas medidas, corre o risco de perpetuar uma certa serventia do interior face ao não-interior. Ora, sendo precisamente aqui que as coisas deveriam mudar, temos de nos questionar: quererá o interior assumir essa mudança? Infelizmente não estou certo de que o queira.

Nota: Por opção própria, o autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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